sábado, 2 de janeiro de 2021

Desculpa

 



Desculpa. 


Fiz por ti o que pude e ainda mais faria

se me pedisses e

eu achasse necessário e disso fosse capaz.

Canto os teus sucessos

empolgo-me com as tuas aventuras e as traições que te fizeram

os amores que te ajudaram a ser quem és

e os desamores que também te ajudaram a recusar quem não és.


O que eu faria e ...fiz!

Mas não estava à espera que medisses com régua e esquadro o que fiz por ti

nem contabilizaste o que poderia ter feito por ti

com débitos e créditos.

Não, não estava à espera que medisses os meus passos

como se fosse o Zé do Telhado,

a saltar-te ao caminho para te roubar, 

ou exigir a devolução do que te tinha dado.


Não estava à espera e isso magoou-me

vim para casa a espremer a ilusão dum amigo

e depois de me contornar e abrir ao meio

sorri.

De que sorri eu?

Sorri a agradecer a  amizade incompreendida. 

A quem poderia eu desculpar 

se não tivesse um amigo que me ofendesse?

Sim, quem me viria pedir desculpa por me ter ofendido? 

Quem mais me pode ofender que não seja meu amigo?

Por isso, obrigado, amigo.

Sem saberes, deste nova vida à amizade, 

pintaste de preto, para que eu pudesse estender o branco e o azul

partes para que eu possa consertar

arrancas e eu semeio

destróis e eu reconstruo

sujas e eu limpo

feres e rasgas e eu coso.

Quanto vale uma amizade?


MRodas

2 janeiro


sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Estava frio nesse dia

 




Sim,

 Estava muito frio e nós tínhamos acordado em cima dum vulcão!

Melhor, nem chegamos a dormir, porque queríamos estar acordados, para que o mundo não dormisse mais. Como podiam estar todos a dormir, quando a vida gritava por amor? 

Foi pela neve que regressamos. Em silêncio.

Não fomos nós que abandonamos o paraíso, foi o Éden que não suportou o amor. Não tinha sido concebido para isso. 

Pegamos nas brasas, ainda quentes, e fomos incendiar o mundo!

Até hoje!


MRodas

Ano novo?

 



Gostava de te desejar um ano novo

Um ano de lhe tirar o chapéu

Com promessas e realizações 

Sonhos e obras

Beijos e abraços com amor dentro


Mas o ano novo é velho

Velho de problemas

De lágrimas que não secam

Injustiças  ameaças e morte!


Os mesmos se sentarão à mesa e os mesmos ficarão de fora, apanhar migalhas,

À espera da morte

Que quando vem

Não é igual para todos

Como nunca foi

Nem a morte

Nem a vida

Nem o amor

Nem a alegria

Nem a tristeza


E o que esperas de 2021?

Que a nuvens sejam cor de rosa?

Ou que os rios transbordem de açúcar e perfume?

Que o teu vizinho te convide para jantar? 

Nem para chorar querem saber de ti!


Por isso, não vale  a pena esperar um 21 melhor.

Acredito que vais precisar de mim e eu de ti, de nós

Para lutarmos

Denunciar

Gritar

Criar

Dizer que a vida vale a pena e a humanidade é a maior possibilidade

Em liberdade!


MRodas

 

domingo, 27 de dezembro de 2020

Rios

 



Quando te vi, o rio cresceu em mim e percebi que não sabia nadar, eu era apenas uma gota e tu...um rio voluptuoso que prometia arrastar-me para desaguar num oceano inventado, de água doce!

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Obrigado

 Obrigado aos leitores deste blogue. Sem vocês, já teria desistido. Até sempre!


Pítia


 

de ti absorvo os vapores nus

onde se eleva o frenesim da inquieta busca

....

agora que o estertor me invade e a palpitação acelera

a noite cai na vastidão do impossível

tremem as vértebras de reverberação 

estrondo de beijos que se desfazem no céu

e irrigam a flores

e o verde que de ti brota


vai

vai embrulhado nessa escuridão

livre das serpentes e leões

cuidado com as setas que em sílabas formam palavras

para dizeres o que ouviste

se ouviste

ouviste?


mata o que tem de morrer

 e que o povo se defenda dos males

que os deuses espalharam 

no luar da ironia 

quanto mais há para comer

mais a fome ganha tirania-jejuai!


MRodas


segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Pégaso


 Meu cavalo alado

Meu sonho ou teimosia

Em cada palavra um brado

Um suspiro um novo dia


Sentir em cada passo teu

A imensa energia

Que a natureza nos deu

Mistura de raiva e alegria


Pégaso, cavalo, coração

Alma de eterna viagem

Colorida no meu chão

A sombra da tua passagem


Arte  sonho ou grito

Raiva fúria e estertor

Cada dia dito e reescrito

Alegria saudade e dor



MRodas




segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O meu avô Marujo

Citações poéticas



 


Palavras e magia foram, no princípio, a mesma coisa. 

Sigmund Freud


Eu sei que a poesia é indispensável, mas não sei para quê. 

Jean Cocteau


A poesia não quer adeptos, quer amantes. 

Federico Garcia Lorca


A poesia é a luta contra a iniquidade. 

Charles Baudelaire


A poesia é uma música que se faz com ideias, e por isso com palavras. 

Álvaro de Campos


A poesia é libertada do mito e da razão, mas contém em si sua união. O estado poético nos transporta através da loucura e da sabedoria, e para além delas.
Edgar Morin


O fim da poesia é o de nos colocar em estado poético.

Edgar Morin


Preciso de poesia para viver e quero tê-la sempre ao meu alcance. 

Antonin Artaud

Eu quis realizar minha poesia na vida. 

Antonin Artaud


A poesia transforma a vida: e isso, em determinadas ocasiões, pode ser o pior.
Franz Kafka


Como agente de propaganda, a poesia é o mais frouxo dos veículos literários.
Fialho de Almeida


A poesia não tem presente: ou é esperança, ou saudade. 

Camilo Castelo Branco


A poesia é uma religião sem esperança. 

Jean Cocteau


A poesia aumenta o campo do pensável. 

Vilém Flusser

sábado, 17 de outubro de 2020

Anjos de máscara

 




Quatro  anjos  voaram     de Inglaterra para minha casa.

Durante anos mantiveram conversas animadas na chaminé da lareira, entre o candelabro e um candeeiro de sal.

Mais tarde, pela mão da criança que sou, mudaram-se para cima do aquecedor e fiquei a vê-los a rodarem numa dança patética, em cima das minhas visões, para gáudio e ironia da minha família. A sombra projectava-se na parede, em formas deixando desenhos de festas e danças na minha memória.

Como no verão o aquecedor está desligado, a minha criança voltou a colocá-los em cima do frigorífico e, deste modo, com o calor da ventoinha voltaram a dançar, mas mais devagarinho. As histórias e conversas eram agora mais demoradas e compassadas.

Outro dia, a criança tentou pôr o iogurte a fermentar em cima do frigorífico, aproveitando o calor que dali emanava. 

Um dos anjos não gostou de tanta mudança e desapareceu.

Por isso, os outros  três anjos ficaram suspensos e inclinados no carrocel, cabisbaixos e mudos, deixaram de poder dançar. Também não conseguia ouvir o que diziam, pois a sua voz saía distorcida.

Procurei o anjo, pus anúncios, recompensas, cantei, fiz desenhos que colei na porta do frigorífico e...nada.

Quando imaginei o que poderia substituir o anjo desaparecido, brilhante e  dançarino, só me lembrava de prender  uma mosca que fizesse voar os outros três anjos. Também imaginava que viagem teria feito o desaparecido. Teria voltado para Inglaterra, ou para outras paragens?

Acordei aos gritos vindos da cozinha:

- O anjo, o anjo voltou!

Olhei para ele, de frente, à espera que me gritasse, o céu existe, mas nada! Silencioso e mudo, pensei que não gostava de ser substituído por uma mosca.

E agora, não tenho coragem de o voltar a prender no carrocel dourado, mas também não quero que fuja para Inglaterra e muito menos para a América. 

Libertei a mosca e pus o anjo no seu lugar, para gáudio dos outros três! 

Puxei a cadeira, sentei- me à sua frente e, todos à uma, perguntamos: 

-Diz lá o que viste, por onde andaste  e o que fazes de máscara?

MRodas



sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Caminha


 

Foto, Manuel Rodas


O chafariz do Terreiro
mesmo no meio da praça
Reza ao teu olhar matreiro
que sejas a minha taça!

Do teu olhar ao meu
da tua vida à minha,
Foi uma ida e vinda ao céu
Passando por Caminha!


MRodas 18 set.2020

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

A máscara

 

Tenho sede da tua voz sem cortinas e máscaras
Tenho sede da sede que eu tinha

Bebíamos do mesmo copo
fumávamos do mesmo cigarro
respirávamos o mesmo ar
o mesmo abraço a dizer, meu irmão!

Tirem as amarras que inventaram 
para nos calarem
Tirem as mãos da minha cara
Não queremos morrer silenciados
Roubados

Construímos janelas e pontes
caminhos cartas e mares
Igrejas festas e danças

Dançamos com as palavras pela mão

Se a poesia salva afogados
também mata a sede de viver!

À nossa saúde!

MRodas



terça-feira, 15 de setembro de 2020

Fronteira


 Era um rio e um caminho

uma fronteira que a água e o vento cavaram

em direção ao mar


Surpreendeu-se o mar

por ver as águas vermelhas de sangue

que escorriam dos corpos mutilados

de cavalos estropiados e homens mortos

e uma bandeira a boiar


Atrás duns correram os outros 

a pé e de barco

com mastros e naus

Foram-se daqui a Ceilão e Malaca

deram a volta ao mundo

enquanto a fronteira ficou sempre aqui

e as mulheres esperaram 

noivas por se casarem

e filhos sem saberem dos pais


Foi a espera que os esperou

até os levar de volta ao combate

guerreiros duma Guerra inicial

e obreiros de terras e cidades


Mais uma vez a fronteira os esperou

sempre igual e verde

um rio de águas mansas

breves e loucas 

donas do tempo, preces eternas

grito de amor promessa de regresso 

memória de princesa cigana

vestida de negro e descalça

de mãos estendidas para o lado de lá

onde a saudade mais dói...


Valença 15 set. 2020





terça-feira, 1 de setembro de 2020

Acredito

Acredito que vou morrer
e não tenho medo da morte
desse ir silencioso
sem ruído nem luz ou aplauso
só o silêncio frio a paz sem emoção
a tranquilidade tranquila e segura

A vida vai continuar
e talvez um dia
nos encontremos nas estrelas
ou num grão de areia à beira mar
ou apenas 
na leitura destes poemas

Por eles virei até ti
saber como sorris
e se ainda queres mudar o mundo
com tintas e bandeiras
riso e amor profundo...

MRodas


A bruxa


Quem foi a bruxa alada
que te levou de mim
ver-te parada e suspensa
numa névoa opaca 
de paredes prestas sem luz, nem sombra?

Quem foi o malfeitor 
que suspendeu o teu riso
deixou-te ao frio
presa nas palavras
que não sabemos?

Agarro-te, abraço-te
mas estás moribunda 
em tua vida mais profunda

Ó deuses
ó nuvens, ó sol e lua
forças azuis e verdes da natureza
raio sideral
a vós apelo
que o vosso sussurro
se erga em luz
 e indique o caminho
e nos liberte
do labirinto e do silêncio
destrua estas paredes
que fingem sentimento
mas não deixam passar 
nem luz, nem vento

Eu olho, mas não me vês
Eu olho, mas não te vejo...

Se o olhar cegasse e a alma, finalmente, visse...

MRodas

Agosto existe


Agosto existe
na memória do tempo quente 
abraçar a gente
e de repente
ficar triste

Porque

Agosto já não existe
foi-se
nas noites quentes e suadas
de desejo e frenesim
último mês do ano

Porque

Agosto já não existe
na memória do tempo
e dos corpos suados
suspendeu-se o frenesim
Abel matou Caim

Porque

Este Agosto nunca existiu
fugiu
e nós à espera duma vacina
para a raiva 
de ver o tempo a fugir!

MRodas

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Sol da rua

Para a Inês Pinto, no dia do seu aniversário!




O sol nasce à esquerda da nossa moradia
E espera todo o dia
Pelo teu riso e pela lua 
Para Namorar na nossa rua
E ir adormecer na imaginação
Do teu sorriso pela mão

Onde habitam os sonhos!

MRodas

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Desfolhada

A partir duma fotografia com 5 espigas vermelhas de Diamantino Fernandes


Eram cinco espigas vermelhas
rubras do desejo na saliva do teu olhar
Eram cinco noites de luar
Cinco vezes outras tantas
E o suspiro de te abraçar
E a raiva de te perder

Cinco vezes te percorri
E cinco vezes tu me tiveste
Em cada grão de milho rubro
Da cor de cada despedida

Não sei se era desfolhada ou vindima
Sabias a mosto
A pão e fruta madura

Em cada dia
até o sol morrer
Em cada vida
Até a vida nascer

MRodas

terça-feira, 25 de agosto de 2020

O gaio






Quando era menino tirei um gaio dum ninho
Todos os dias tratei dele e ficava encantado a olhar as suas penas coloridas

Eu cresci e fui de férias!
Quando voltei alguém o tinha libertado e eu nunca mais parei de voar!

Voava no teu sorriso e nos teus sonhos
Voava nos textos de sacola às costas a caminho da escola
Voei enquanto as asas quiseram
E antes das penas se soltarem.

Não foi o sol que derreteu as minhas asas
Foi antes a falta dele
Que deixou de iluminar a minha rota
E as flores foram morrendo no meu caminho.

As asas murcharam e empunhei a espada
Em vão.
Morri na mesma!

MR

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

É o fogo






Ouvia os meu passos na escada de madeira
e íamos passear os teus 4 anos ao jardim dos patos
Ias de saia azul e fita no cabelo
e os teus pés aprendiam o doce equilíbrio da vida

Reparávamos em tudo à nossa volta
as ervas, as flores, os arbustos verdes e a nuvem refletida na água
dançando em círculos reflexos nas patas dos patos
e nas cabeças hesitantes dos cágados

Um dia quiseste rebolar na relva dum alto
que para ti seria uma montanha
Esperei ao fundo
enquanto te via bolear na erva verde
e o meu coração ansioso pelo mal que te poderia acontecer

Mas perguntava me
que mal pode acontecer
a não ser a tua saia com manchas de verde
e as faces róseas pintadas de vermelho?
Também eu já tinha rolado por quantas montanhas
quantos declives de ervas e pedras...

Fomos crescendo
com essa imagem de crianças felizes
a confirmar nos meus olhos
a felicidade que ia nos teus

Todas as manhãs corríamos para a carruagem
que nos iria levar ao teu palácio
onde aguardavam outros príncipes e princesas
entregues às mãos duma rainha
tendo a certeza que no final do dia
iríamos descobrir a forma de levar água ao loureiro
e matar a sede dos peixes vermelhos

Foi mais tarde que vieram os estranhos
e habitaram as tuas noites
enquanto eu ficava à espera
sentado no tapete da entrada
que o declive trouxesse nova luz
e os maus desaparecessem para sempre

As sombras  instalaram-se nas nossas vidas
usurpando os abraços e sorrisos que tínhamos guardados
Resistimos aqui, onde a humanidade começou
e alguém gritou: não é! É fogo!

Agora sei que a viagem não terminou
que sou pai, irmão, avô, primo e sobrinho
todas as formas que o amor pode ser
por mais verde que seja o verde
e mais escuras as sombras que nos habitam

Deixa- me dizer-te
com as mãos a agarrar as raízes de flores que hão de vir
tenho saudades de nós e ...dos patos!

MRodas



segunda-feira, 20 de julho de 2020

Alcobaça e a invenção do amor


A visita ao mosteiro de Alcobaça deixou-me a pensar quando foi a primeira vez que o amor apareceu na história da humanidade. A amiga Lena disse que foi antes da invenção do fogo! Achei graça, pois o frio a isso conduziria...
Podia ter sido com Adão e Eva, disse o Vitor. 
Para mim, não podia ter sido com Adão e eEva porque eles não tinham opção de escolha. Eram únicos e nem sabiam da existência de outros e todo o amor implica escolher e ser escolhido. 
No filme da Guerra do Fogo, o amor surge entre duas pessoas de diferentes tribos, que ousam enfrentar os desafios que a vida lhes oferece, mudar de tribo, de hábitos e adotar uma nova comunidade e...olhar de frente o companheiro quando fazem amor! A mudança de posição convoca- nos para a humanidade do amor!
Nesta visita, sentei-me num degrau lateral e, contemplando os dois túmulos de Pedro e Ines, pensei em histórias  de amor e desamor que conheço da literatura, Amados de Gaula, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Frei Luís de Sousa e o nosso esquecido Amor de Perdição...
Mas este drama de Inês e Pedro perdura na nossa memória coletiva como referência aos amores impossíveis...
Foi assim que os vi, ali deitados, um ao lado do outro, para sempre, sem se poderem tocar, embora possa imaginar as longas conversas na solidão noturna do mosteiro, porque de dia é impossível, com os visitantes em volta, a tirar fotografias e espiolhar os pormenores das pedras frias...





quarta-feira, 8 de julho de 2020

Paradela de Soajo





Em 1657, D. Vicente Gonzaga, governador de Armas da Galiza, mandou atacar o castelo de Lindoso. Foi renhido o combate, mas os portugueses levaram os espanhóis de vencida, causando-lhes duzentos mortos, entre eles alguns oficias e nobres.

Pouco depois voltaram os Espanhóis a atacar Portugal, pela serra Amarela, com seiscentos homens de infantaria e alguns de Cavalaria.

Manuel de Oliveira Pimenta, com as forças de Lindoso, desbaratou-os, apoderando-se da presa, que eles tinham tomado.

Este combate está descrito por uma testemunha ocular no documento que vou transcrever. Fazia parte dos manuscritos do grande genealogista Manuel J.C Felgueiras Gaio e veio-me parar à mão por amabilidade do seminarista Leonardo de Oliveira Faria

Uma testemunha, que era criado de Amaro Pimenta, sobrinho do poeta Diogo Bernardes e Frei Agostinho da Cruz, narra os factos numa linguagem despretensiosa e popular, que respeito o mais possível. Começa por fazer referência a uma anterior notícia do combate, que não aparece na miscelânea, onde encontrei o documento que passo a transcrever.

 

No dia em que tive esta relação, chegou um criado meu com sua mulher, de Lindoso, que me recolhiam a renda, e disseram que os galegos seriam oitocentos homens de pé e mais dum cento a cavalo. Vinham três mangas, uma da parte norte do castelo e outra do sul, que era a de maior poder e outra que era menor trazia oitocentas cabeças de gado de Vileirinho e Fornos da Ermida de Lindoso.
Começaram a queimar o lugar de Lindoso, que foram cinquenta e duas casas, fora os cereais e celeiros.
A esta guerra acudiram de Soajo, duzentos homens de um lugar de Paradela, que andando os nossos a brigar com os galegos da parte norte, mataram muitos e os fizeram fugir, acudiram os nossos e os soldados e de outro lugar que tem aí na serra de Soajo e deram na manga do sul, de maneira que os fizeram fugir. E na retirada mataram mais de duzentos e se eles não fossem fugindo, não havia de ficar nenhum galego que eles não matassem. E de um monte alto botaram penedos que faziam muito pezar na cavalaria.
As mulheres também brigaram num lugar que está junto a Lindoso, no Real e o defenderam com pedradas para que o não queimassem. Os soldados que eram cinquenta, com mais oito da Ponte da Barca e com os moradores de Lindoso e os que acudiram de Soajo fizeram maravilhas e depois acudiram ao gado que o tomaram todo ...[1]
Paradela, o pequeno povoado, situado em dois terraços rochosos, sobranceiros à margem direita do Lima está concentrado em dois núcleos habitacionais, em torno de duas fontes de água fresca, a do Regueiro e a do Santo. 
É a água que organiza as casas e alimenta os campos e são estes que condicionam a vida. A água e o sol dão a cor aos campos e matas, mas é o granito que que cria as fundações, para suster a água, as terras, os passos de quem vai e volta e abriga os homens e os medos, as alegrias e tristezas, nas casas escuras e frias.
Um caminho feito de pedras e terra ladeia a todo o comprimento a sul enquanto outro, norte sul, delimita os que estão de Cima dos que estão em Baixo, todos abraçados na mesma identidade.
A introdução do milho ‘mays’ por altura destes acontecimentos, obrigou a um melhor aproveitamento das terras disponíveis e rentabilizaram-se os terrenos onde antes estavam as hortas, os campos de feno, as cercas de carvalhos, as tapadas de tojo, os soutos de castanheiros, ou o generoso baldio, em toda a região norte e também em Soajo e lugares limítrofes.
 O processo de apropriação e adaptação do solo foi lento exigindo um denodado trabalho de reconstituição e melhoria dos solos agrícolas, incluindo a "despedrega", o nivelamento e a limpeza, assim como a reconstituição da camada de terra arável, a primeira sementeira em caso de pastagem e a replantação de árvores de fruto. Com o milho foi preciso aprender todo um novo ciclo do pão, que ia desde o roçar os matos, inventar novos instrumentos de corte e transporte - adaptando os que já havia, como carros de bois e enxadas -, estrumar os terrenos, lavrar, semear, mondar, regar, cortar, desfolhar, debulhar, moer o grão, peneirar, fermentar a farinha, enfornar e finalmente saborear um pão doce como o mel e loiro como o sol.
Para a rega do milho foi necessário fazer o alargamento do regadio por uma intrincada rede de regos e levadas partindo de poças e charcos, explorar pequenos olheiros mais distantes, extrair o precioso líquido e encaminhá-lo para locais onde depois se faria a distribuição, de acordo com o tamanho dos campos e dando sentido a todo um conjunto de regras de rega.
aproveitamento da água também serviu os moinhos de rodízio horizontal, em granito, cujo número aumentou extraordinariamente e que anos mais tarde a insensibilidade da EDP e das autarquias haveriam de destruir.
Com a introdução do milho também aumentou o número de galináceos, porcos e um aconchego às vacas parideiras permitindo maior quantidade de leite para os vitelos e seus donos, um quotidiano mais desafogado e planeado, não sujeito às improvisações de quem precisa de todos os dias procurar o que comer.
Com a farinha alteraram-se hábitos alimentares, aprendeu-se a fazer, além do pão, o bolo da pedra, farinha amassada e estendida em cima duma pedra estreita e circular esquentada e exposta ao fogo da lareira. Fizeram-se as bicas, os enchidos, o caldo de farinha, as papas de leite e bolos de milho. Com as barbas do milho fizeram chás e da farinha cozida com vinho se esquentaram muitas dores e entorses.
No interior dos agregados houve necessidade de ampliar a capacidade de armazenamento dos grãos, com caixas e baús, optando muitas famílias pela construção dos caniços em varas e as mais numerosas e abastadas, os espigueiros em pedra, concentrando-se a maioria no mesmo local.
Esta alteração no modo de viver destas gentes, implantou outras rotinas e ao mesmo tempo, decorria o ciclo dos trabalhos agrícolas: estrumar, carrejar, lavrar e cavar, semear, mondar e regar, cortar os fenos, tratar das hortas, vindimar, roçar. Cada uma destas atividades subdividia-se num conjunto infinito de tarefas, que calejando as mãos, atiram com os pensamentos para outras paragens, outras lisboas, onde se ganhe mais ! 
Com o cultivo do milho foi necessário ampliar a rede de trabalho solidário e comunal, já experimentado na divisão de tarefas na pastorícia, através da “vezeira”, em que cada “vizinho” se disponibilizava para a guarda da rês, à vez, uns tantos dias por semana, ou mês. Assim se desenvolveu o primeiro “banco de tempo”, onde cada indivíduo, de livre vontade, emprestava o seu trabalho a outro, durante um número de dias, que lhe seria devolvido, equitativamente, quando necessário nos seus próprios afazeres, em datas acordadas, consensualmente. 
O trabalho é sempre duro, em qualquer parte!
Uma vida paralela decorre da manutenção dos gados. A pastorícia, vacas cachenas adaptadas às agruras da serra, ovelhas e cabras e alguns burros e cavalos, ocupa a outra parte do tempo, que o milho e as hortas e o cuidar dos filhos, velhos e doentes deixam livre.
O nascimento, venda ou criação das crias, ensinar a trabalhar no arado ou no carro de bois, às novas gerações de animais e pessoas, levar à serra na primavera e trazê-las no outono já prenhes, algumas para contrabandear ou vender na feira de Soajo e outras para assegurar a manutenção da família com leite e trabalho. Só são comidas quando por acidente, os donos se obrigam a matá-las, por necessidade, e os vizinhos a comprar uma porção, por solidariedade. 
A estes, sobrepõe-se o ciclo da vida das gentes: batismos, namoros e casamentos, separações e funerais. 
 Passaram 15 gerações depois dos acontecimentos em que a solidariedade antiga se manifestou com os povos de Lindoso, em 1657, e a valentia destes homens e mulheres ficou na memória, de pais para filhos, de geração em geração.
Durante três séculos a vida correu entre sobressaltos, preocupações e cuidados de quem sabia estar entregue a si próprio, aos vizinhos e a Deus! 
  A aldeia continuou como uma ilha viva, que se mexe, respira e vive, por ciclos,  ciclo da vida das gentes, batismos, namoros e casamentos, separações e funerais, o ciclo dos trabalhos agrícolas e da pastorícia e o ciclo das festas periódicas, onde se cruzam a fantasia, a cultura e a religião. A saúde e a doença, o amor e desamor, a vida e a morte.
Por volta dos anos cinquenta e até final do século XX a aldeia sangrou-se de gente. Correram mundo, outras lisboas e outras franças, ajudaram outros lindosos, por lá ficaram e os filhos e netos não querem voltar. 
Hoje, os Bombeiros fazem simulação de incêndios e reunem 30 pessoas em volta da capela, depois do toque a rebate do sino. 
É agonia duma terra antiga, agonia do interior perante a cidade, hidra devoradora, que tudo consome, de goela aberta até se consumir a si própria!

7/2020
Manuel Rodas



[1] [1] In, Subsídios para História da Terra da Nóbrega e do Concelho de Ponte da Barca, ed. Centro Cultural Frei Agostinho da Cruz e Diogo, Bernardes, Ponte da Barca,1997