quarta-feira, 8 de julho de 2020

Paradela de Soajo





Em 1657, D. Vicente Gonzaga, governador de Armas da Galiza, mandou atacar o castelo de Lindoso. Foi renhido o combate, mas os portugueses levaram os espanhóis de vencida, causando-lhes duzentos mortos, entre eles alguns oficias e nobres.

Pouco depois voltaram os Espanhóis a atacar Portugal, pela serra Amarela, com seiscentos homens de infantaria e alguns de Cavalaria.

Manuel de Oliveira Pimenta, com as forças de Lindoso, desbaratou-os, apoderando-se da presa, que eles tinham tomado.

Este combate está descrito por uma testemunha ocular no documento que vou transcrever. Fazia parte dos manuscritos do grande genealogista Manuel J.C Felgueiras Gaio e veio-me parar à mão por amabilidade do seminarista Leonardo de Oliveira Faria

Uma testemunha, que era criado de Amaro Pimenta, sobrinho do poeta Diogo Bernardes e Frei Agostinho da Cruz, narra os factos numa linguagem despretensiosa e popular, que respeito o mais possível. Começa por fazer referência a uma anterior notícia do combate, que não aparece na miscelânea, onde encontrei o documento que passo a transcrever.

 

No dia em que tive esta relação, chegou um criado meu com sua mulher, de Lindoso, que me recolhiam a renda, e disseram que os galegos seriam oitocentos homens de pé e mais dum cento a cavalo. Vinham três mangas, uma da parte norte do castelo e outra do sul, que era a de maior poder e outra que era menor trazia oitocentas cabeças de gado de Vileirinho e Fornos da Ermida de Lindoso.
Começaram a queimar o lugar de Lindoso, que foram cinquenta e duas casas, fora os cereais e celeiros.
A esta guerra acudiram de Soajo, duzentos homens de um lugar de Paradela, que andando os nossos a brigar com os galegos da parte norte, mataram muitos e os fizeram fugir, acudiram os nossos e os soldados e de outro lugar que tem aí na serra de Soajo e deram na manga do sul, de maneira que os fizeram fugir. E na retirada mataram mais de duzentos e se eles não fossem fugindo, não havia de ficar nenhum galego que eles não matassem. E de um monte alto botaram penedos que faziam muito pezar na cavalaria.
As mulheres também brigaram num lugar que está junto a Lindoso, no Real e o defenderam com pedradas para que o não queimassem. Os soldados que eram cinquenta, com mais oito da Ponte da Barca e com os moradores de Lindoso e os que acudiram de Soajo fizeram maravilhas e depois acudiram ao gado que o tomaram todo ...[1]
Paradela, o pequeno povoado, situado em dois terraços rochosos, sobranceiros à margem direita do Lima está concentrado em dois núcleos habitacionais, em torno de duas fontes de água fresca, a do Regueiro e a do Santo. 
É a água que organiza as casas e alimenta os campos e são estes que condicionam a vida. A água e o sol dão a cor aos campos e matas, mas é o granito que que cria as fundações, para suster a água, as terras, os passos de quem vai e volta e abriga os homens e os medos, as alegrias e tristezas, nas casas escuras e frias.
Um caminho feito de pedras e terra ladeia a todo o comprimento a sul enquanto outro, norte sul, delimita os que estão de Cima dos que estão em Baixo, todos abraçados na mesma identidade.
A introdução do milho ‘mays’ por altura destes acontecimentos, obrigou a um melhor aproveitamento das terras disponíveis e rentabilizaram-se os terrenos onde antes estavam as hortas, os campos de feno, as cercas de carvalhos, as tapadas de tojo, os soutos de castanheiros, ou o generoso baldio, em toda a região norte e também em Soajo e lugares limítrofes.
 O processo de apropriação e adaptação do solo foi lento exigindo um denodado trabalho de reconstituição e melhoria dos solos agrícolas, incluindo a "despedrega", o nivelamento e a limpeza, assim como a reconstituição da camada de terra arável, a primeira sementeira em caso de pastagem e a replantação de árvores de fruto. Com o milho foi preciso aprender todo um novo ciclo do pão, que ia desde o roçar os matos, inventar novos instrumentos de corte e transporte - adaptando os que já havia, como carros de bois e enxadas -, estrumar os terrenos, lavrar, semear, mondar, regar, cortar, desfolhar, debulhar, moer o grão, peneirar, fermentar a farinha, enfornar e finalmente saborear um pão doce como o mel e loiro como o sol.
Para a rega do milho foi necessário fazer o alargamento do regadio por uma intrincada rede de regos e levadas partindo de poças e charcos, explorar pequenos olheiros mais distantes, extrair o precioso líquido e encaminhá-lo para locais onde depois se faria a distribuição, de acordo com o tamanho dos campos e dando sentido a todo um conjunto de regras de rega.
aproveitamento da água também serviu os moinhos de rodízio horizontal, em granito, cujo número aumentou extraordinariamente e que anos mais tarde a insensibilidade da EDP e das autarquias haveriam de destruir.
Com a introdução do milho também aumentou o número de galináceos, porcos e um aconchego às vacas parideiras permitindo maior quantidade de leite para os vitelos e seus donos, um quotidiano mais desafogado e planeado, não sujeito às improvisações de quem precisa de todos os dias procurar o que comer.
Com a farinha alteraram-se hábitos alimentares, aprendeu-se a fazer, além do pão, o bolo da pedra, farinha amassada e estendida em cima duma pedra estreita e circular esquentada e exposta ao fogo da lareira. Fizeram-se as bicas, os enchidos, o caldo de farinha, as papas de leite e bolos de milho. Com as barbas do milho fizeram chás e da farinha cozida com vinho se esquentaram muitas dores e entorses.
No interior dos agregados houve necessidade de ampliar a capacidade de armazenamento dos grãos, com caixas e baús, optando muitas famílias pela construção dos caniços em varas e as mais numerosas e abastadas, os espigueiros em pedra, concentrando-se a maioria no mesmo local.
Esta alteração no modo de viver destas gentes, implantou outras rotinas e ao mesmo tempo, decorria o ciclo dos trabalhos agrícolas: estrumar, carrejar, lavrar e cavar, semear, mondar e regar, cortar os fenos, tratar das hortas, vindimar, roçar. Cada uma destas atividades subdividia-se num conjunto infinito de tarefas, que calejando as mãos, atiram com os pensamentos para outras paragens, outras lisboas, onde se ganhe mais ! 
Com o cultivo do milho foi necessário ampliar a rede de trabalho solidário e comunal, já experimentado na divisão de tarefas na pastorícia, através da “vezeira”, em que cada “vizinho” se disponibilizava para a guarda da rês, à vez, uns tantos dias por semana, ou mês. Assim se desenvolveu o primeiro “banco de tempo”, onde cada indivíduo, de livre vontade, emprestava o seu trabalho a outro, durante um número de dias, que lhe seria devolvido, equitativamente, quando necessário nos seus próprios afazeres, em datas acordadas, consensualmente. 
O trabalho é sempre duro, em qualquer parte!
Uma vida paralela decorre da manutenção dos gados. A pastorícia, vacas cachenas adaptadas às agruras da serra, ovelhas e cabras e alguns burros e cavalos, ocupa a outra parte do tempo, que o milho e as hortas e o cuidar dos filhos, velhos e doentes deixam livre.
O nascimento, venda ou criação das crias, ensinar a trabalhar no arado ou no carro de bois, às novas gerações de animais e pessoas, levar à serra na primavera e trazê-las no outono já prenhes, algumas para contrabandear ou vender na feira de Soajo e outras para assegurar a manutenção da família com leite e trabalho. Só são comidas quando por acidente, os donos se obrigam a matá-las, por necessidade, e os vizinhos a comprar uma porção, por solidariedade. 
A estes, sobrepõe-se o ciclo da vida das gentes: batismos, namoros e casamentos, separações e funerais. 
 Passaram 15 gerações depois dos acontecimentos em que a solidariedade antiga se manifestou com os povos de Lindoso, em 1657, e a valentia destes homens e mulheres ficou na memória, de pais para filhos, de geração em geração.
Durante três séculos a vida correu entre sobressaltos, preocupações e cuidados de quem sabia estar entregue a si próprio, aos vizinhos e a Deus! 
  A aldeia continuou como uma ilha viva, que se mexe, respira e vive, por ciclos,  ciclo da vida das gentes, batismos, namoros e casamentos, separações e funerais, o ciclo dos trabalhos agrícolas e da pastorícia e o ciclo das festas periódicas, onde se cruzam a fantasia, a cultura e a religião. A saúde e a doença, o amor e desamor, a vida e a morte.
Por volta dos anos cinquenta e até final do século XX a aldeia sangrou-se de gente. Correram mundo, outras lisboas e outras franças, ajudaram outros lindosos, por lá ficaram e os filhos e netos não querem voltar. 
Hoje, os Bombeiros fazem simulação de incêndios e reunem 30 pessoas em volta da capela, depois do toque a rebate do sino. 
É agonia duma terra antiga, agonia do interior perante a cidade, hidra devoradora, que tudo consome, de goela aberta até se consumir a si própria!

7/2020
Manuel Rodas



[1] [1] In, Subsídios para História da Terra da Nóbrega e do Concelho de Ponte da Barca, ed. Centro Cultural Frei Agostinho da Cruz e Diogo, Bernardes, Ponte da Barca,1997

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