Cheguei a uma escola nova na Damaia,
Amadora. Era o meu 14º ano de trabalho no final dos anos 80. Vinha ainda
consternado pela forma como os governantes tinham acabado com a experiência
pedagógica em que tinha participado com tanto entusiasmo, as Unidades de
Orientação Educativa (UOE). Era um serviço de apoio às escolas, ainda hoje
necessário, e contudo, bastou uma assinatura dum secretário de estado qualquer
e.... acabou-se! Foram cinco anos de prática pedagógicas inovadoras, refletidas
e sistematizadas, interrompidas por uma assinatura.
Tinha de fazer o luto. Dos colegas e dos
alunos. E duma parte significativa da minha vida. Aqueles cinco anos passados
perdurarão como uma ilha fantástica, na minha memória profissional e na minha vida.
A vida de professor não dá muito
tempo livre para lamber as feridas da indignação. A exigência do dia a dia é
tão grande que nos empurra para novas realidades, novos colegas, novos alunos e
novas dinâmicas.
A nova escola do 1º ciclo tinha à volta de
22 professores e um diretor eleito pelos colegas. Havia um grande espaço
exterior, mas não tinha ginásio, nem biblioteca.
Eu iria fazer apoio pedagógico a crianças
com dificuldades escolares. Neste grupo cabiam alguns deficientes, outros
imaturos e a maior parte, contestatários da ordem ou desordem reinante na
família, na escola ou em ambas, enfim, alunos com Necessidades Educativas
Especiais.
Os Professores das turmas sinalizavam os
alunos em questão e de acordo com a sua problemática, assim eram selecionados
para o apoio pedagógico.
Os alunos iam à sua turma de origem e em
horário alternativo tinham apoio pedagógico, bissemanal, durante 1hora e
30m.
Passado estes anos, consigo lembrar-me do
esforço em encontrar materiais e mobiliário que aproximassem mais a minha sala
da imagem duma oficina, ou atelier, que da escola tradicional. Assim, para além
dum sofá, havia um pequeno quadro, onde os alunos gostavam de ir desenhar,
rabiscar, fazer a catarse das frustrações, culpabilidades e memórias
de insucessos públicos, na família e na turma de origem. Tinha organizado um
quadro de tarefas, e registo da produção individual, quer em textos livres
produzidos e trabalhados, quer da realização de fichas e outros exercícios na
área da matemática e leitura, experiências...
No meio da sala estava uma mesa maior com
cinco cadeiras. Uma para mim e as outras para eles. Nos cantos havia mais mesas
que serviam de apoio aos diversos materiais e cantos de trabalho. Em toda a
volta havia murais, onde sobressaiam os trabalhos dos alunos, registos de
trabalho e aspectos de organização.
O material de desgaste, canetas, lápis,
folhas de papel, cartolinas, tintas, pincéis estavam disponíveis livremente,
para quem quisesse servir-se.
Existia ainda, uma pequena biblioteca
organizada por temas: poesia, histórias, matemática e livros de consulta. Na
lombada tinha colado uma cor diferente para cada secção, o que permitia aos
alunos mais distraídos, ou que não soubessem ler e escrever, arrumá-los na prateleira
certa!
Eu e os alunos tínhamos muito gosto em
trabalhar naquele espaço, um pouco alternativo à aridez da sala de aula, mais
tradicional.
Tinha conseguido uma imprensa Freinet, umas
máquina antigas, de escrever e de calcular, as mais
apetecidas, porque eles adoravam fazer girar as manivelas e ver os números a
saltar, numa dança difícil de entender. Pensava, com isso, suscitar-lhes
a curiosidade para a descoberta das letras, dos números e...do mundo.
Um dos jogos interessantes era cada um
fazer cálculos de probabilidades de quanto seriam, por
exemplo, 11x11, 12x12... Verificávamos o resultado na máquina e
ganhava quem se aproximasse mais do resultado exato. As dificuldades iam
aumentando ou diminuindo de acordo com o nível de competência dos alunos. Claro
que também a utilizávamos para apoio a outros cálculos, mas era destes jogos
que mais gostavam, e uma das razões é que todas as contribuições eram
valorizadas, os disparates eram tentativas de aproximação e os erros eram
divertidos. Os erros podiam ser meios de aprendizagem e divertidos!
Quando os textos eram
pequenos, compúnhamos na imprensa Freinet, que era uma adaptação duma
caixa com caracteres de chumbo, tipográficos. Após a escolha das letras e
colocação invertida nos componedores, podiam ser lidas recorrendo a um espelho.
Com um rolo embebido em tinta tipográfica espalhávamos a tinta e numa prensa...
aparecia no papel gravado o texto.
No rosto deles aparecia sempre a revelação,
a surpresa da descoberta da comunicação à distância, que a escrita permite, e
da memória e poder da palavra escrita: É o meu texto!
Para textos maiores, tinha encontrado nos
armazéns do Património do Estado, em Xabregas, um duplicador a tinta, que
trabalhava com um stencil. Então, o processo era diferente. Escolhíamos o
texto, trabalhávamos no quadro e depois o autor passava par o stencil na
máquina de escrever e duplicávamo-lo, as vezes necessárias, para
distribuir pelos colegas na turma, na escola, em casa, aos amigos,
etc.
Havia ainda, um computador onde só
experimentávamos o programa Logo, do projeto Minerva. Era um tempo em que não havia mais nada. Nem
jogos, nem processador de texto. Era uma tartaruga que obedecia a ordens, para
a frente (PF), para trás (PT), vira a direita (VD), vira a esquerda (VE), com a
indicação do nº de passos necessários, por exemplo VD 90, assim se obtida um ângulo
recto. A tartaruga com um lápis na barriga deixava no ecrã um rasto que poderia
ser figuras geométricas, esboços de casas, carros...
Fazíamos slides com tintas entre dois acetatos,
ou intercalando pequenos insectos, folhinhas, cabelos, etc. e projetavamos na
parede. Extasiados com a ampliação na parede, os olhos brilhavam e analisávamos
alguns pormenores interessantes. E no ar ficava sempre um e se? Sim, e
se fosse desta forma? E se puséssemos mais cor, outra cor, outra forma, outra
coisa? E se?
No próximo dia experimentávamos. Novamente
os olhares curiosos de quem não quer desistir, de descobrir o mundo.
Também fazíamos experiências semelhantes
com um retroprojetor. Colocávamos no projetor objetos ocultos (livro, apagador
de giz, caneta, bola, etc..) e tentávamos descobrir na projeção, a duas
dimensões, a que objetos se referiam. Transformávamos assim as três dimensões
em duas. Pena era o retroprojetor não fazer o caminho inverso! Teríamos que
esperar anos e anos pelo computador!
Havia ainda um pequeno estojo de
carpintaria, com uma pequena bancada e material mínimo, martelo, alicate,
serra, serrote, lixa, um pirogravador, onde depois de cortar e lixar faziam
pequenos trabalhos pintados ou gravados a quente.
Era assim que estes alunos despertavam para
a vida e para a cultura. Este processo era tão interessante e natural, que era
frequente algum dizer:
“Aqui já sei ler e escrever, mas na sala
ainda não”.
Fazia um esforço constante de valorização
do papel do professor, da turma e uma preocupação de transferir os êxitos
individuais para o reconhecimento na turma.
O seu entusiasmo e investimento nestas atividades
era notório. A novidade, a valorização e respeito pela sua pessoa, a empatia
com os seus problemas e o funcionamento em pequenos grupos de 3 ou 4 alunos,
permitiam relativizar as dificuldades e ultrapassá-las com a ajuda de todos.
Quando havia algum problema de
comportamento, fazíamos um contrato, explicitando as regras de funcionamento
social, que eles se comprometiam a respeitar e todos os dias, e depois
semanalmente avaliávamos e decidíamos prosseguir ou suspender. Os êxitos eram
sempre valorizados socialmente, no grupo e na turma.
Havia ainda bolas e jogos que, como os
livros, podiam requisitar para casa.
Como no recreio tinham dificuldade em serem
aceites pelos outros, que normalmente só jogavam futebol, combinamos com o diretor
da escola e pintamos no recreio um conjunto de jogos tradicionais, para que
todos pudessem jogar: o caracol, o polícia e os ladrões, a macaca, etc.
Escrevemos as regras dos jogos e colocamos no interior da janela, para que
todos pudessem ler do recreio. Foi um êxito. Os colegas de turma, no intervalo,
vinham regularmente jogar e era um prazer imenso ver estes alunos a explicar as
regras aos outros.
A maior dificuldade residia na comunicação
com os professores das turmas. A maioria eram professoras. Havia apenas três
homens. Um era o diretor, o outro lia o jornal durante as reuniões. Elas tinham
pouca disponibilidade para permanecer na escola, mais tempo que o das aulas. A
vida exigia-lhes muito.
As únicas oportunidades para falar dos
alunos era na meia hora do intervalo, enquanto tomávamos café. Era precisamente
o tempo que elas precisavam para desanuviar da tensão da sala de aula.
Normalmente as conversas versavam tudo
menos a escola e os alunos. AS colegas usavam os intervalos para descomprimir
da tensão da sala de aula. O vestuário, a moda e a culinária deviam ocupar a
maior parte do tempo, o que me dificultava a comunicação.
Perante a frustração das minhas tentativas
iniciais em falar dos alunos, resolvi que o melhor era pelo menos experimentar
algumas receitas em casa, ler outras e saber pequenos truques, para poder
entrar na conversa. Por exemplo, na Beira Baixa há o costume de passar a faca
no limão, antes de cada corte no melão.
E foi desta forma que os pequenos grupos de
colegas se alargaram para me dar espaço a falar de culinária. Primeiro ouvia,
ouvia, quando achava oportuno, introduzia uma novidade, recolhia a admiração
geral e antes que a campainha tocasse, tinha dois ou três minutos para elogiar
o trabalho da colega com o aluno comum, salientando os seus
progressos na aprendizagem. Às vezes a colega ruborizava, incomodada
pelas palavras elogiosas, e manifestava a admiração:
- Ai sim... Ele falou de mim?
Eu dizia que sim. E muito bem. Está a
começar a gostar da escola e de aprender. Graças à colega.
Reconheço que às vezes exagerava um
bocadinho. Era preciso que a Professora dirigisse o seu olhar, atenção, o
cuidado, a expectativa para aquele aluno, de quem já tinha desistido, e por
isso, ele não aprendia. Claro que também dizia ao aluno que a Professora tinha
perguntado por ele e se interessava pela sua aprendizagem. E se esta
preocupação recíproca funcionasse, iria repercutir-se no êxito dos alunos,
principalmente nos que tinham problemas de comportamento e dificuldades de
aprendizagem.
Tinha sido eleito um novo diretor, o Prof.
Alexandrino. Ele tinha tirado o curso de Educação Especial, mas tinha
regressado à turma até agora. Esse facto facilitou muito a nossa comunicação e
início de amizade.
Um dia veio dizer-me que a colega nova, a
quem tinha sido atribuída uma turma deslocada compulsivamente, doutra escola em
obras, estava com muitas dificuldades. Os alunos eram quase na totalidade
negros e sentiam a rejeição da escola dos brancos. O diretor estava a pedir-me
ajuda para este caso. Falamos muito sobre esta turma, o modo de constituição,
as razões que impediram a sua dissolução noutras turmas, promovendo assim a
integração destes meninos negros, escorraçados do seu meio e sentindo a
hostilidade com que foram recebidos numa escola estranha.
No final acabei por lhe dizer que a colega
podia contar com a minha ajuda. Quando pudesse que viesse falar comigo.
Os dias iam passando. Os problemas
continuavam. Ou dentro da turma, ou no recreio com outros alunos da escola e
com as Auxiliares também.
Ele continuava a lamentar-se, mas ela não
vinha falar. Mandava recado por ele. Eu resistia. Ela teria de pedir ajuda se
queria ser ajudada. Sabia que devia resistir a meter-me na sua sala e sabe-se
lá, ouvir as suas queixas, à frente dos alunos.
Um dia, ela não aguentou mais e veio.
Recebia-a muito bem na minha sala de trabalho e conversamos. Era o seu 4º ano
de trabalho e não estava preparada para enfrentar esta situação. Casada
recentemente, morava em Benfica e tinha uma vida familiar e financeira muito
tranquila. A escola tinha-lhe entregue a turma mais difícil e ficaram todos a
ver a colega a tentar sobreviver.
Penso que ainda hoje não há estruturas e
preocupação de acompanhamento aos colegas novos e sem experiência. Normalmente,
como na tropa, entregam os piores trabalhos aos recrutas. O que os mais
experientes e sabedores, “os coronéis” não querem. Desabafou... chorou e
queixou-se de quase todos os alunos. Eu disse como me propunha ajudar.
Conversando com ela e ajudando-a a refletir, planear e executar as atividades necessárias.
Fomos marcando reuniões regulares e comecei
por lhe dizer como organizava o meu trabalho e como ela podia ir introduzindo
na sua sala alguns desses instrumentos e atividades, de forma que eles se
sentisse valorizados.
Corajosamente ela foi implementando o
Jornal de Parede e a Assembleia de Turma. As regras da sala
definidas em conjunto e duma forma positiva. O Plano Semanal de Trabalho. A
divisão das tarefas e atribuição de responsabilidades.
Também falamos na expressão livre, nos
textos livres e no jornal de turma. No dicionário de crioulo, pois os alunos
eram de origem caboverdeana. Da música e da alimentação crioula. Do respeito
que nos mereciam estes meninos e a sua história de vida.
O tempo foi passando e lentamente a colega
recuperou o sorriso.
Um dia ela disse que a turma estava muito
diferente, os alunos mais calmos e trabalhadores. Respeitosos e cumpridores,
embora alguns tivessem muitas dificuldades. Mas sentia que ainda faltava
qualquer coisa, mas não sabia bem o quê.
Olhei-a fixamente nos olhos. Após um
período de silêncio, ousei dizer-lhe:
- Falta dizeres-lhes que gostas
deles. Tu gostas deles?
Quando acabei de perguntar tive algum
receio. Não me tinha precipitado a fazer esta pergunta? E se ela agora me
dissesse que não, o que faria, ou diria eu?
Já não havia nada a fazer. Tínhamos
construído uma relação profissional de grande compreensão e solidariedade. Por
isso, me senti à vontade para o passo grande, que tinha dado. E eu sentia
isso. Ela tinha sido uma boa professora, responsável a implementar
as sugestões negociadas em conjunto. Mas ... faltava uma chama, um calor que
contagiasse aquele grupo e os fizesse acordar com entusiasmo e vontade de vir
para a escola.
Por fim, ela compreendeu, sorriu-me e
disse, primeiro receosa, mas depois com convicção:
- Gosto... gosto deles. Eles são
giros!
E pela primeira vez vi-lhe um sorriso largo
e farto...
- Então vai e diz-lhes isso.
Inventa tu a forma de lhes dizer. A melhor maneira que tu entenderes... e
souberes!
O ano acabou bem. O diretor reconheceu a
forma como ultrapassamos a situação. Mas um dia, a sós, perguntou-me: Mas
porque demoraste tanto tempo a ajudar a colega?
Porque era preciso que ela entendesse que
teria de ser ela a dar a volta. Eu não podia apoiar a turma toda,
desresponsabilizando-a. Para termos êxito, ela teria de arregaçar as mangas,
aceitar a ajuda, e ir à luta.
No ano seguinte soube que participou na elaboração
de manuais escolares e se tinha inscrito na Licenciatura em Ciências da
Educação, na Universidade de Lisboa. Foi uma surpresa muito
agradável... Tal como com os alunos, também nos adultos, o êxito
mobiliza energias e cria uma dinâmica de sucesso.
Manuel Rodas