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quarta-feira, 7 de março de 2018

Professor na Damaia, Amadora




Cheguei a uma escola nova na Damaia, Amadora. Era o meu 14º ano de trabalho no final dos anos 80. Vinha ainda consternado pela forma como os governantes tinham acabado com a experiência pedagógica em que tinha participado com tanto entusiasmo, as Unidades de Orientação Educativa (UOE). Era um serviço de apoio às escolas, ainda hoje necessário, e contudo, bastou uma assinatura dum secretário de estado qualquer e.... acabou-se! Foram cinco anos de prática pedagógicas inovadoras, refletidas e sistematizadas, interrompidas por uma assinatura.
Tinha de fazer o luto. Dos colegas e dos alunos. E duma parte significativa da minha vida. Aqueles cinco anos passados perdurarão como uma ilha fantástica, na minha memória profissional e  na minha vida.
 A vida de professor não dá muito tempo livre para lamber as feridas da indignação. A exigência do dia a dia é tão grande que nos empurra para novas realidades, novos colegas, novos alunos e novas dinâmicas.

A nova escola do 1º ciclo tinha à volta de 22 professores e um diretor eleito pelos colegas. Havia um grande espaço exterior, mas não tinha ginásio, nem biblioteca.
Eu iria fazer apoio pedagógico a crianças com dificuldades escolares. Neste grupo cabiam alguns deficientes, outros imaturos e a maior parte, contestatários da ordem ou desordem reinante na família, na escola ou em ambas, enfim, alunos com Necessidades Educativas Especiais. 
Os Professores das turmas sinalizavam os alunos em questão e de acordo com a sua problemática, assim eram selecionados para o apoio pedagógico.
Os alunos iam à sua turma de origem e em horário alternativo tinham apoio pedagógico, bissemanal, durante 1hora e 30m. 
Passado estes anos, consigo lembrar-me do esforço em encontrar materiais e mobiliário que aproximassem mais a minha sala da imagem duma oficina, ou atelier, que da escola tradicional. Assim, para além dum sofá, havia um pequeno quadro, onde os alunos gostavam de ir desenhar, rabiscar, fazer a catarse das frustrações, culpabilidades  e memórias de insucessos públicos, na família e na turma de origem. Tinha organizado um quadro de tarefas, e registo da produção individual, quer em textos livres produzidos e trabalhados, quer da realização de fichas e outros exercícios na área da matemática e leitura, experiências...
No meio da sala estava uma mesa maior com cinco cadeiras. Uma para mim e as outras para eles. Nos cantos havia mais mesas que serviam de apoio aos diversos materiais e cantos de trabalho. Em toda a volta havia murais, onde sobressaiam os trabalhos dos alunos, registos de trabalho e aspectos de organização.
O material de desgaste, canetas, lápis, folhas de papel, cartolinas, tintas, pincéis estavam disponíveis livremente, para quem quisesse servir-se.
Existia ainda, uma pequena biblioteca organizada por temas: poesia, histórias, matemática e livros de consulta. Na lombada tinha colado uma cor diferente para cada secção, o que permitia aos alunos mais distraídos, ou que não soubessem ler e escrever, arrumá-los na prateleira certa!
Eu e os alunos tínhamos muito gosto em trabalhar naquele espaço, um pouco alternativo à aridez da sala de aula, mais tradicional.

Tinha conseguido uma imprensa Freinet, umas máquina antigas, de escrever e de calcular,  as mais apetecidas, porque eles adoravam fazer girar as manivelas e ver os números a saltar,  numa dança difícil de entender. Pensava, com isso, suscitar-lhes a curiosidade para a descoberta das letras, dos números e...do mundo. 
Um dos jogos interessantes era cada um fazer cálculos de probabilidades de quanto seriam, por exemplo,  11x11, 12x12... Verificávamos o resultado na máquina e ganhava quem se aproximasse mais do resultado exato. As dificuldades iam aumentando ou diminuindo de acordo com o nível de competência dos alunos. Claro que também a utilizávamos para apoio a outros cálculos, mas era destes jogos que mais gostavam, e uma das razões é que todas as contribuições eram valorizadas, os disparates eram tentativas de aproximação e os erros eram divertidos. Os erros podiam ser meios de aprendizagem e divertidos!
Quando os textos eram pequenos, compúnhamos na imprensa Freinet, que era uma adaptação duma caixa com caracteres de chumbo, tipográficos. Após a escolha das letras e colocação invertida nos componedores, podiam ser lidas recorrendo a um espelho. Com um rolo embebido em tinta tipográfica espalhávamos a tinta e numa prensa... aparecia no papel gravado o texto. 
No rosto deles aparecia sempre a revelação, a surpresa da descoberta da comunicação à distância, que a escrita permite, e da memória e poder da palavra escrita: É o meu texto!
Para textos maiores, tinha encontrado nos armazéns do Património do Estado, em Xabregas, um duplicador a tinta, que trabalhava com um stencil. Então, o processo era diferente. Escolhíamos o texto, trabalhávamos no quadro e depois o autor passava par o stencil na máquina de escrever e duplicávamo-lo, as vezes necessárias, para distribuir  pelos colegas na turma, na escola, em casa, aos amigos, etc.
Havia ainda, um computador onde só experimentávamos o programa Logo, do projeto Minerva. Era um tempo em que não havia mais nada. Nem jogos, nem processador de texto. Era uma tartaruga que obedecia a ordens, para a frente (PF), para trás (PT), vira a direita (VD), vira a esquerda (VE), com a indicação do nº de passos necessários, por exemplo VD 90, assim se obtida um ângulo recto. A tartaruga com um lápis na barriga deixava no ecrã um rasto que poderia ser figuras geométricas, esboços de casas, carros...
Fazíamos slides com tintas entre dois acetatos, ou intercalando pequenos insectos, folhinhas, cabelos, etc. e projetavamos na parede. Extasiados com a ampliação na parede, os olhos brilhavam e analisávamos alguns pormenores interessantes. E no ar ficava sempre um e se?  Sim,  e se fosse desta forma? E se puséssemos mais cor, outra cor, outra forma, outra coisa? E se? 
No próximo dia experimentávamos. Novamente os olhares curiosos de quem não quer desistir, de descobrir o mundo.
Também fazíamos experiências semelhantes com um retroprojetor. Colocávamos no projetor objetos ocultos (livro, apagador de giz, caneta, bola, etc..) e tentávamos descobrir na projeção, a duas dimensões, a que objetos se referiam. Transformávamos assim as três dimensões em duas. Pena era o retroprojetor não fazer o caminho inverso! Teríamos que esperar anos e anos pelo computador!
Havia ainda um pequeno estojo de carpintaria, com uma pequena bancada e material mínimo, martelo, alicate, serra, serrote, lixa, um pirogravador, onde depois de cortar e lixar faziam pequenos trabalhos pintados ou gravados a quente.
Era assim que estes alunos despertavam para a vida e para a cultura. Este processo era tão interessante e natural, que era frequente algum dizer: 
“Aqui já sei ler e escrever, mas na sala ainda não”. 
Fazia um esforço constante de valorização do papel do professor, da turma e uma preocupação de transferir os êxitos individuais para o reconhecimento na turma. 
O seu entusiasmo e investimento nestas atividades era notório. A novidade, a valorização e respeito pela sua pessoa, a empatia com os seus problemas e o funcionamento em pequenos grupos de 3 ou 4 alunos, permitiam relativizar as dificuldades e ultrapassá-las com a ajuda de todos.
Quando havia algum problema de comportamento, fazíamos um contrato, explicitando as regras de funcionamento social, que eles se comprometiam a respeitar e todos os dias, e depois semanalmente avaliávamos e decidíamos prosseguir ou suspender. Os êxitos eram sempre valorizados socialmente, no grupo e na turma. 
Havia ainda bolas e jogos que, como os livros, podiam requisitar para casa.
Como no recreio tinham dificuldade em serem aceites pelos outros, que normalmente só jogavam futebol, combinamos com o diretor da escola e pintamos no recreio um conjunto de jogos tradicionais, para que todos pudessem jogar: o caracol, o polícia e os ladrões, a macaca, etc. Escrevemos as regras dos jogos e colocamos no interior da janela, para que todos pudessem ler do recreio. Foi um êxito. Os colegas de turma, no intervalo, vinham regularmente jogar e era um prazer imenso ver estes alunos a explicar as regras aos outros.
A maior dificuldade residia na comunicação com os professores das turmas. A maioria eram professoras. Havia apenas três homens. Um era o diretor, o outro lia o jornal durante as reuniões. Elas tinham pouca disponibilidade para permanecer na escola, mais tempo que o das aulas. A vida exigia-lhes muito.
As únicas oportunidades para falar dos alunos era na meia hora do intervalo, enquanto tomávamos café. Era precisamente o tempo que elas precisavam para desanuviar da tensão da sala de aula. 
Normalmente as conversas versavam tudo menos a escola e os alunos. AS colegas usavam os intervalos para descomprimir da tensão da sala de aula. O vestuário, a moda e a culinária deviam ocupar a maior parte do tempo, o que me dificultava a comunicação. 
Perante a frustração das minhas tentativas iniciais em falar dos alunos, resolvi que o melhor era pelo menos experimentar algumas receitas em casa, ler outras e saber pequenos truques, para poder entrar na conversa. Por exemplo, na Beira Baixa há o costume de passar a faca no limão, antes de cada corte no melão. 
E foi desta forma que os pequenos grupos de colegas se alargaram para me dar espaço a falar de culinária. Primeiro ouvia, ouvia, quando achava oportuno, introduzia uma novidade, recolhia a admiração geral e antes que a campainha tocasse, tinha dois ou três minutos para elogiar o trabalho da colega com o aluno comum, salientando os seus progressos  na aprendizagem. Às vezes a colega ruborizava, incomodada pelas palavras elogiosas, e manifestava a admiração: 
- Ai sim... Ele falou de mim?
Eu dizia que sim. E muito bem. Está a começar a gostar da escola e de aprender. Graças à colega. 
Reconheço que às vezes exagerava um bocadinho. Era preciso que a Professora dirigisse o seu olhar, atenção, o cuidado, a expectativa para aquele aluno, de quem já tinha desistido, e por isso, ele não aprendia. Claro que também dizia ao aluno que a Professora tinha perguntado por ele e se interessava pela sua aprendizagem. E se esta preocupação recíproca funcionasse, iria repercutir-se no êxito dos alunos, principalmente nos que tinham problemas de comportamento e dificuldades de aprendizagem. 
Tinha sido eleito um novo diretor, o Prof. Alexandrino. Ele tinha tirado o curso de Educação Especial, mas tinha regressado à turma até agora. Esse facto facilitou muito a nossa comunicação e início de amizade.
Um dia veio dizer-me que a colega nova, a quem tinha sido atribuída uma turma deslocada compulsivamente, doutra escola em obras, estava com muitas dificuldades. Os alunos eram quase na totalidade negros e sentiam a rejeição da escola dos brancos. O diretor estava a pedir-me ajuda para este caso. Falamos muito sobre esta turma, o modo de constituição, as razões que impediram a sua dissolução noutras turmas, promovendo assim a integração destes meninos negros, escorraçados do seu meio e sentindo a hostilidade com que foram recebidos numa escola estranha.
No final acabei por lhe dizer que a colega podia contar com a minha ajuda. Quando pudesse que viesse falar comigo.
Os dias iam passando. Os problemas continuavam. Ou dentro da turma, ou no recreio com outros alunos da escola e com as Auxiliares também. 
Ele continuava a lamentar-se, mas ela não vinha falar. Mandava recado por ele. Eu resistia. Ela teria de pedir ajuda se queria ser ajudada. Sabia que devia resistir a meter-me na sua sala e sabe-se lá, ouvir as suas queixas, à frente dos alunos.
Um dia, ela não aguentou mais e veio. Recebia-a muito bem na minha sala de trabalho e conversamos. Era o seu 4º ano de trabalho e não estava preparada para enfrentar esta situação. Casada recentemente, morava em Benfica e tinha uma vida familiar e financeira muito tranquila. A escola tinha-lhe entregue a turma mais difícil e ficaram todos a ver  a colega a tentar sobreviver.
Penso que ainda hoje não há estruturas e preocupação de acompanhamento aos colegas novos e sem experiência. Normalmente, como na tropa, entregam os piores trabalhos aos recrutas. O que os mais experientes e sabedores, “os coronéis” não querem. Desabafou... chorou e queixou-se de quase todos os alunos. Eu disse como me propunha ajudar. Conversando com ela e ajudando-a a refletir, planear e executar as atividades  necessárias. 
Fomos marcando reuniões regulares e comecei por lhe dizer como organizava o meu trabalho e como ela podia ir introduzindo na sua sala alguns desses instrumentos e atividades, de forma que eles se sentisse valorizados.
Corajosamente ela foi implementando o Jornal de Parede e  a Assembleia de Turma. As regras da sala definidas em conjunto e duma forma positiva. O Plano Semanal de Trabalho. A divisão das tarefas e atribuição de  responsabilidades. 
Também falamos na expressão livre, nos textos livres e no jornal de turma. No dicionário de crioulo, pois os alunos eram de origem caboverdeana. Da música e da alimentação crioula. Do respeito que nos mereciam estes meninos e a sua história de vida.
O tempo foi passando e lentamente a colega recuperou o sorriso. 
Um dia ela disse que a turma estava muito diferente, os alunos mais calmos e trabalhadores. Respeitosos e cumpridores, embora alguns tivessem muitas dificuldades. Mas sentia que ainda faltava qualquer coisa, mas não sabia bem o quê. 
Olhei-a fixamente nos olhos. Após um período de silêncio, ousei dizer-lhe:
-  Falta dizeres-lhes que gostas deles. Tu gostas deles?
Quando acabei de perguntar tive algum receio. Não me tinha precipitado a fazer esta pergunta? E se ela agora me dissesse que não, o que faria, ou diria eu?
Já não havia nada a fazer. Tínhamos construído uma relação profissional de grande compreensão e solidariedade. Por isso, me senti à vontade para o passo grande, que tinha dado. E eu sentia isso.  Ela tinha sido uma boa professora, responsável a implementar as sugestões negociadas em conjunto. Mas ... faltava uma chama, um calor que contagiasse aquele grupo e os fizesse acordar com entusiasmo e vontade de vir para a escola.
Por fim, ela compreendeu, sorriu-me e disse, primeiro receosa, mas depois com convicção:
-  Gosto... gosto deles. Eles são giros! 
E pela primeira vez vi-lhe um sorriso largo e farto...
-  Então vai e diz-lhes isso. Inventa tu a forma de lhes dizer. A melhor maneira que tu entenderes... e souberes!
O ano acabou bem. O diretor reconheceu a forma como ultrapassamos a situação. Mas um dia, a sós, perguntou-me: Mas porque demoraste tanto tempo a ajudar a colega?
Porque era preciso que ela entendesse que teria de ser ela a dar a volta. Eu não podia apoiar a turma toda, desresponsabilizando-a. Para termos êxito, ela teria de arregaçar as mangas, aceitar a ajuda, e ir à luta. 
No ano seguinte soube que participou na elaboração de manuais escolares e se tinha inscrito na Licenciatura em Ciências da Educação, na Universidade de Lisboa. Foi uma surpresa muito agradável...  Tal como com os alunos, também nos adultos, o êxito mobiliza energias e cria uma dinâmica de sucesso.

Manuel Rodas

terça-feira, 19 de maio de 2015

Um exemplo da nossa escola

Fui com o Luís tirar umas fotos a uma escola abandonada.
O que encontrei deixou-me visceralmente aturdido.
E não era o dinheiro desperdiçado que mais me incomodava.
Sabes, Luís?
Era o retrato da educação e da cultura no meu país!

Porque não sou feliz?























O Público de hoje anuncia:


Escola onde ia passar a terceira ponte sobre o Tejo continua ao abandono

A Escola Secundária Afonso Domingues (ESAD), em Marvila, na zona oriental de Lisboa, encerrou em 2010 porque os terrenos onde está instalada seriam necessários para a construção da terceira travessia sobre o Tejo. Cinco anos depois, nem este projecto avançou nem o Estado encontrou uma solução para as instalações da antiga escola industrial, que estão ao abandono e à mercê de quem lá quiser entrar.
“Amo-te Afonso”. Vista ao longe, a frase desenhada à mão num placard vermelho em forma de coração, pendurado no portão principal da escola, parece coisa de adolescentes mas não é. O autor assina em letras pequeninas Alberto Pereira, o “Máfias”, 77 a 81 – serão as datas em que frequentou o estabelecimento. Nos anos seguintes ao fecho da Afonso Domingues multiplicaram-se as manifestações de antigos alunos, revoltados com o encerramento apressado que pôs fim a mais de um século de história.
A decisão de fechar portas foi comunicada à direcção da ESAD por ofício em Março de 2010, com efeitos a partir de Agosto. Em Julho desse ano, o Ministério da Educação, então tutelado por Isabel Alçada, justificava ao PÚBLICO que a urgência se devia ao facto de a Refer ter manifestado, no final de 2009, a intenção de avançar com a “expropriação da escola no âmbito da construção da linha de alta velocidade e da terceira travessia do Tejo”. Para evitar “uma perturbação maior” durante o período de aulas, mesmo perante os avanços e recuos do projecto da alta velocidade, a tutela resolveu fechar antes que começasse um novo ano lectivo. Alunos (eram 290, apesar de o espaço ter capacidade para 840) e professores (mais de 80) foram distribuídos por outras escolas da zona.
“Puseram o carro à frente dos bois”, resume hoje o presidente da Junta de Freguesia de Marvila, Belarmino Silva (PS), classificando o argumento da construção da terceira travessia como “um mero pretexto” para fechar esta escola, como aconteceu com tantas outras pelo país. "A travessia nem daqui por 30 anos está feita", afirma.
O autarca critica o Governo por não ter salvaguardado as instalações, os materiais e os equipamentos existentes. Um ano antes do encerramento tinham sido feitos investimentos avultados em quadros interactivos, computadores e na rede de Internet sem fios, que abrangia todo o recinto. “Quando se fechou a escola ficou lá todo o recheio, excepto os arquivos. É como uma pessoa que sai de casa e fecha a porta, mas deixa a janela aberta para os ladrões entrarem”, descreve Belarmino Silva.
Os ladrões acabaram por entrar. Em 2011, a Afonso Domingues foi assaltada quatro vezes numa semana, em Agosto. Os suspeitos, detidos pela PSP, levaram material informático como computadores, impressoras e um router. Desde então, foi fartar vilanagem.
Um dos portões da frente está aberto. Passando o autêntico matagal que foi crescendo livremente em volta da escola, entra-se sem esforço no edifício principal, cuja estrutura está ainda em bom estado. As portas estão escancaradas. Apenas as janelas do rés-do-chão foram emparedadas. Nos dois pisos superiores do grande edifício cor-de-rosa (cujas paredes estão ainda impecavelmente pintadas), as janelas estão abertas ou já sem vidros. Aqui e ali há cortinas a adejar com o vento.
Nos corredores e nas salas de aula parece que passou um tornado e ficou tudo de pernas para o ar: papéis espalhados pelo chão (cadernetas de alunos, exemplares de testes, fichas de avaliação, documentos administrativos), restos de trabalhos manuais, caixotes, muitos armários de madeira vazios caídos. Das instalações eléctricas só há vestígios: foram arrancadas as tomadas, os fios, as lâmpadas, os candeeiros. Dos quadros interactivos restam as marcas nas paredes. E os painéis de azulejos que adornavam as escadarias interiores desapareceram.
No grande pátio das traseiras há pneus espalhados pelo chão cimentado. No antigo ginásio, que mantém os espaldares nas paredes e pouco mais, há rastos de pessoas sem-abrigo, como roupa e cobertores amontoados nos balneários. Mas é nos amplos edifícios das oficinas, onde em tempos funcionaram os laboratórios da antiga escola industrial – que formou electricistas, soldadores, serralheiros e carpinteiros –, que mais se nota o vandalismo. Paredes rabiscadas a tinta, mais armários de madeira empilhados e vazios, esqueletos de carros velhos destruídos. Por todo o lado há marcas de tinta amarela deixadas por "balas" utilizadas para a prática do paintball. Diz-se também que a PSP tem feito ali alguns treinos, uma informação que o PÚBLICO não conseguiu confirmar.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Como me tornei Professor de Educação Especial




As balas do 25 de Novembro de 1976 ainda ecoavam nos meus ouvidos e no meu sonho ferido!
Na madrugada do dia 26 de Novembro, o Jaime Neves e “sus muchachos” reuniram-nos na Calçada da Ajuda, em Lisboa e mais tarde, na parada do Quartel de Lanceiros 2 e mandou os vencidos soldados da Policia Militar, de férias provisórias.
Quando cheguei ao fundo da rua, vestido de verde e saco de viagem na mão, não pude conter as lágrimas e a culpa que os populares nos apontavam de dedo erguido: Vocês perderam a revolução!
Na estação e no comboio em Stª Apolónia ninguém parecia muito importado com isso.
As pessoas continuavam na sua vida, indiferentes à revolução ... perdida! Encontrei o meu lugar, sentei-me e deixei correr as imagens dos acontecimentos passados, ao ritmo das rodas nos carris.
Como já não dormia há duas noites, só acordei, no Porto, a mulher da limpeza a gritar: 
- Sr. soldado, o comboio vai para a Régua!
  • Régua não!
Saltei, e de saco na mão, fui encontrar-me com o Enes em Viana do Castelo.
Ele tinha sido meu colega em Braga, No Magistério Primário, era lá professor e sabia da possibilidade de ir trabalhar na escola em Monserrate.

Com um intervalo de 3 meses, depois de ter respondido numa Comissão de Inquérito Militar e se ter apurado a minha inocência nesses acontecimentos - eu era apenas um soldado recruta, que nem juramento de bandeira tinha feito - comecei a trabalhar como professor de uma 2ª classe na escola de Monserrate, em Março de 1977.
O Diretor do Magistério da altura, Inspector Silva, pretendia organizar ali uma escola inovadora, que servisse de referência para a formação dos alunos, futuros professores, em Viana do Castelo.

Era o meu 2º ano de trabalho e havia muitas coisas para aprender.
Eu mantinha os olhos, os ouvidos e o coração, o mais abertos possíveis, para reter o que era importante, melhorar o meu desempenho e ser bem aceite pelos colegas que já lá trabalhavam e justificar assim a aposta que o Director tinha feito ao convidar-me - na altura os professores eram convidados pelo Diretor do Magistério a trabalhar nas escolas Anexas, onde os alunos faziam os estágios.

A escola era um modelo P3, com áreas abertas permitindo o trabalho conjunto dos 20 e tal professores, e áreas definidas para serem utilizadas nas actividades de expressões.
Os professores tinham sido escolhidos a dedo, com experiências muito diversificadas, o que me intimidava um pouco, pois tinha a insegurança de quem inicia e é avaliado pelos pares!
Sabia que tinham expectativas positivas a meu respeito, mantinham um clima afectivo calmo e amigável, mas sentia no ar alguma inquietação com as minhas prestações. Tinha a barba e o cabelo comprido, pouca experiência e como tinha formação nas pedagogias ativas e pugnava por um ensino moderno, poderia ser ... uma ameaça!

Os alunos eram na maioria filhos do bairro e de pescadores, gente simples. Lembro-me dalguns, mas aquele que ainda irá dar origem a uma crónica é o Zé Luís; repetente, madraço, com ar de podengo, morrendo com falta de afecto a todo o instante e provocador nas horas vagas.
Mas isso fica para mais tarde.
Entre os alunos, havia um com um funcionamento intelectual muito deficitário, mas que não incomodava muito, pois mantinha-se apático e pouco participativo.
Com regularidade, uns tantos professores do Ensino Especial, passavam pela escola, um deles ia à minha sala, falava comigo e com o aluno, deixava alguns materiais e contava-me “coisas e pormenores da vida dele” que eu nem suspeitava ( problemas durante o nascimento, a separação dos pais, e a entrega à guarda dos avós -que já muito idosos poucos cuidados prestavam ). Ele mostrava-se bastante atento aos pormenores, descrevia o quadro familiar, os problemas do seu crescimento, o seu modo de funcionamento e quase sempre com uma certa ironia, o que me deixava surpreendido, pois não restava espaço para a compaixão, para as comiserações que o destino dita para alguns e que muitos se comprazem por não lhes ter acontecido a eles ou a elementos da sua família.

Deste modo, os colegas pretendiam que a minha intervenção tivesse essas informações em consideração e fosse compreensivo na mediação da relação com outros colegas e educador atento das suas necessidades.
Todos os êxitos e sucessos deveriam ser reconhecidos, se possível em público, e as dificuldades deveriam ser decompostas em sub tarefas permitindo-lhe, adequar a atividade às suas capacidades de realização e obter a satisfação com o êxito alcançado.
Cada dificuldade dos alunos era um desafio e nós... tínhamos de aprender a gratificar-nos com os pequenos êxitos alcançados.
Os tais colegas mantinham uma relação afável e afectiva entre eles, estabeleciam relação fácil com os colegas e ... gostavam do que faziam; falavam da sociedade e da vida de forma alegre, crítica, com esperança na mudança e tinham uma perspectiva realista sobre as coisas.
Toda esta maneira de estar seduziu-me! Eram uns colegas ... diferentes!
Como eu gostaria de trabalhar com eles!

Os 3 meses passaram muito rápidos. Um dia, em conversa informal, disse-lhes o quanto os apreciava e a forma gentil e afectiva como se relacionavam com os colegas e a forma conhecedora, sensível e atenta aos pormenores dos alunos que apoiavam. E manifestei-lhes a minha vontade de ir trabalhar com eles.
Gostaria de trabalhar numa equipa onde a relação fosse cordial, amistosa e se aprofundasse o conhecimento sobre os alunos.
O Basílio sorriu, e disse:
- Quem sabe? Talvez um dia.
Sinceramente não pensei mais nisso. Com a entrada na “normalização” e fim do processo revolucionário, o Ministro da Educação, Sotto Mayor Cardia, do governo de Mário Soares, acabou com as experiências pedagógicas e fomos quase todos mandados para casa e aguardar novo concurso que nos iria colocar noutra qualquer escola, era o que nos restava!
Concorri. E fui colocado na Telescola de Paradela, Soajo.
O ano passou muito depressa. Era uma experiência nova e muito absorvente. Quando tomei consciência da velocidade do tempo passado, estávamos perto da Páscoa.
Um dia, recebo um telefonema do Basílio a perguntar se ainda queria ir trabalhar com eles. Sorri! Um sorriso confirmatório da minha expectativa.
Eles tinham sentido o meu desejo e ... não se tinham esquecido. Não se tinham esquecido!
Claro que queria! E FUI.
E foi assim que iniciei a minha atividade na educação especial, com um grupo de crianças surdas em Viana do Castelo, em regime de integração escolar.
Lembro-me de pedir por favor, a uma Professora duma escola, para me deixar lá aqueles dois alunos. E dois dias por semana vinham ter apoio comigo. Era um favor que me fazia a mim, seu colega!
Eu ia passando por lá e deixaria alguns materiais que poderia utilizar com eles. Porque ela não era obrigada a aceitá-los na sua sala. E agora vejo o caminho que já percorremos,   todos os que acreditam na inclusão, como dimensão ética e humana da sociedade!  Da integração à inclusão!

O ano escolar correu como tinha previsto. Tive todo o apoio destes colegas. Percebi o esforço que o Ministério da Educação e a Drª Ana Maria Bénard da Costa estavam a fazer, para implementarem uma rede nacional de Integração Escolar, através do apoio prestado por estes docentes.
Entretanto, em consequência do acordo Luso-Sueco, as Equipas de Educação Especial e os alunos apoiados beneficiaram dum conjunto de materiais didáticos inovadores, coloridos e muito estimulantes.
Os professores mantinham uma formação contínua e como eram poucos, conheciam-se praticamente todos a nível nacional.

No início do ano seguinte, a Direção Geral promovia um curso de 3 meses, no Instituo António Aurélio da Costa Ferreira, em Lisboa, para os professores sem especialização.
Quando iniciei o curso percebi que ia começar outro de 3 anos, em regime de bolsa, para professores sem especialização.
Pedi a transferência de curso e ... fiquei em Lisboa o resto da minha vida profissional!
Ao fim de três anos na capital, já não queria voltar ao norte.
Nunca me abandonou o sentimento de ter traído aquele grupo de colegas, com quem tanto aprendi, que tão bem me receberam e com quem tanto gostei de trabalhar.

Fiquei a trabalhar na Damaia, Amadora.
Mas esta incomodidade, este desconforto, acompanharam-me até hoje. 
Perdoaram-me?!