quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Morte e pancadaria em Espanha, 8 de abril de 1906.

 

8 de Abril de 1906 Data dos acontecimentos no Quinjo, (Espanha) em que vieram a morrer João Rodas, natural de Paradela, e José Gonçalves, natural da Várzea, Vila de Soajo.

 

Quinjo, Coto Rachado

Foto, M. Rodas


 

 

Manuel Rodas

Out. 2022


A ocupação humana da serra de Soajo é muito antiga, como a existência da Mamoa e  por um efetivo assinalável de gravuras implementadas em mais de 100 rochas, das Antas na serra de Soajo e, mais recentemente, um acampamento romano no Outeiro Maior, assim o confirmam.

Existiria em Soajo um, ou vários castros, cuja memória perdura até hoje apenas na designação local, lugares de Castro e Torre, na freguesia de Soajo, pois as pedras dessas habitações antigas estarão dispersas e integradas no casario, muros e caminhos da localidade.  [1]

A ocupação do território fez-se como a história da humanidade, passando da fase recolectora, para a pastorícia, e para a agricultura, ou mantendo no dia a dia, essas mesmas três fases, como se pode verificar no testamento da Condessa Mumadona Dias, onde se refere Soajo, como uma serra com mais de 1000 anos de pastoreio, com terras e pomares: "em Riba de Lima, a parte no Soajo em terras e pomares (...) e vacas quantas temos na Várzea e no Soajo e quantas possuímos nas comunhões com os nossos colonos". (Século X, ano de 950).

Os pastores, acompanhados pelos sabujos, com as vacas de raça cachena, as cabras e ovelhas, os garranos e demais gado cavalar pincelaram a serra com várias tonalidades ao longo dos anos e das várias estações, enquanto na agricultura se arroteavam terras, se erguiam socalcos e se plantavam árvores, semeavam cereais e mais tarde milho e batatas, assim como os diversos legumes da tradicional alimentação minhota.  A guarda das matas e a proteção dos animais selvagens estava destinada à Montaria Real, cujo Monteiro Mor era nomeado e remunerado pela Coroa e tinha os seus privilégios definidos em decreto real, bem como os monteiros menores, desde o início da monarquia, até à sua extinção, no sec.XIX. 

Em todos os lugares de Soajo a água e o sol dão a cor aos campos e matas, mas é o granito que que cria as fundações, para suster a água, as terras, os passos de quem vai e volta e abriga os homens e os medos, as alegrias e tristezas, nas casas erguidas a suor, sonho e granito.

A introdução do milho ‘mays’, no sec. XVI, obrigou a um melhor aproveitamento das terras disponíveis e rentabilizaram-se os terrenos onde antes estavam as hortas, os campos de feno, as cercas de carvalhos, as tapadas de tojo, os soutos de castanheiros, ou o generoso baldio, em toda a região norte e também em Soajo e lugares limítrofes.

 O processo de apropriação e adaptação do solo foi lento exigindo um denodado trabalho de reconstituição e melhoria dos solos agrícolas, incluindo a "despedrega", o nivelamento e a limpeza, assim como a reconstituição da camada de terra arável, a primeira sementeira em caso de pastagem e a replantação de árvores de fruto. Com o milho foi preciso aprender todo um novo ciclo do pão, que ia desde o roçar os matos, inventar novos instrumentos de corte e transporte - adaptando os que já havia, como carros de bois e enxadas -, estrumar os terrenos, lavrar, semear, mondar, regar, cortar, desfolhar, debulhar, moer o grão, peneirar, fermentar a farinha, enfornar e finalmente saborear um pão doce como o mel e loiro como o sol.

Para a rega do milho foi necessário fazer o alargamento do regadio por uma intrincada rede de regos e levadas partindo de nascentes, poças e charcos, explorar pequenos olheiros mais distantes, extrair o precioso líquido e encaminhá-lo para locais onde depois se faria a distribuição, de acordo com o tamanho dos campos e dando sentido a todo um conjunto de regras de rega.

aproveitamento da água também serviu os moinhos de rodízio horizontal, em granito, cujo número aumentou extraordinariamente e que anos mais tarde a insensibilidade dos construtores da estrada de acesso à barragem de Soajo/Lindoso e das autarquias locais, haveriam de destruir, em Paradela, enquanto todos os outros foram votados ao abandono. 

Com a introdução do milho também aumentou o número de galináceos, porcos e um aconchego às vacas parideiras permitindo maior quantidade de leite para os vitelos e seus donos, um quotidiano mais desafogado e planeado, não sujeito às improvisações de quem precisa de todos os dias procurar o que comer.

Com a farinha alteraram-se hábitos alimentares, aprendeu-se a fazer, além do pão, o bolo da pedra, farinha amassada e estendida em cima duma pedra estreita e circular esquentada e exposta ao fogo da lareira. Fizeram-se as bicas, os enchidos, o caldo de farinha, as papas de leite e bolos de milho. Com as barbas do milho fizeram chás e da farinha cozida com vinho se esquentaram muitas dores e entorses.

No interior dos agregados houve necessidade de ampliar a capacidade de armazenamento dos grãos, com caixas e baús, optando muitas famílias pela construção dos caniços em varas e as mais numerosas e abastadas, os canastros ou espigueiros em pedra, concentrando-se a maioria no mesmo local, Eira do Penedo, embora existam muitos outros dispersos pelos diversos lugares da freguesia.

Esta alteração no modo de viver dos minhotos e dos soajeiros, implantou outras rotinas e ao mesmo tempo, decorria o ciclo dos trabalhos agrícolas: estrumar, carrejar, lavrar e cavar, semear, mondar e regar, cortar os fenos, tratar das hortas, vindimar, roçar. Cada uma destas atividades subdividia-se num conjunto infinito de tarefas, que calejando as mãos e sem muitas perspetivas de ganharem dinheiro, atiram com os pensamentos para outras paragens, outras lisboas e américas onde se ganhe mais e crie novas perspetivas para a descendência! 

Com o cultivo do milho foi necessário ampliar a rede de trabalho solidário e comunal, já experimentado na divisão de tarefas na pastorícia, através da “bezeira”, em que cada “vizinho proprietário das rezes” se disponibilizava para a guarda da rês, à vez, uns tantos dias por semana, ou mês. Assim se desenvolveu o primeiro “banco de tempo”, onde cada indivíduo, de livre vontade, emprestava o seu trabalho a outro, durante um número de dias, que lhe seria devolvido, equitativamente, quando necessário nos seus próprios afazeres, em datas acordadas, consensualmente. 

Desde  a expulsão do paraíso que o trabalho é sempre duro, em qualquer parte!

Uma vida paralela decorre da manutenção dos gados. A pastorícia, vacas cachenas adaptadas às agruras da serra, ovelhas e cabras e alguns burros e cavalos, ocupa a outra parte do tempo, que o milho e as hortas e o cuidar dos filhos, velhos e doentes deixam livre.

O nascimento, venda ou criação das crias, ensinar a trabalhar no arado ou no carro de bois, às novas gerações de animais e pessoas, levar à serra na primavera e trazê-las no outono já prenhes, algumas para vender na feira de Soajo, no primeiro domingo de cada mês, e outras para assegurar a manutenção da família com leite, estrume e trabalho. 

A estes trabalhos, sobrepõe-se o ciclo da vida das gentes: batismos, namoros e casamentos, separações e funerais. 

O mesmo desenvolvimento agro-pastoril acontecia do lado galego, cujas trocas se foram fazendo em encontros casuais, ou definidos pelo calendário local, comércio, feiras de Soajo, Lobios, Entrimo ou festividades locais: Srª da Peneda, Srª da Madalena, S. Bento de Ermelo, S. Bento do Cando. Não raro, aconteciam romances e casamentos transfronteiriços. 

Pela semelhança do modo de vida e cultura e com a semelhança linguística entre o galego e o português, os povos vizinhos da fronteira viveram durante a maior parte do tempo, em paz, como se fossem povos da mesma nação.

Laços culturais e de identidade sobrepuseram-se, de novo, à fronteira política, em meados do séc. XX, no período da Guerra Civil espanhola (1933/36), com os lares lusos a servirem de refúgio às populações, que fugiam do terror e da fome, além da recolha possível de víveres e mantimentos, que eram enviados para os palcos da luta fratricida, segundo esquemas e planos capazes de iludirem o controlo e a vigilância de forças policiais tão poderosas, como era, por exemplo, a Polícia Internacional da Defesa do Estado. [2]

A existência do Coto do Fascista, próximo do lugar da Várzea é disso prova elementar!

O controlo da fronteira pela guarda fiscal, já no sec. XX, nunca foi bem entendido pelo raiano, que ao cair do sol, comerciava a  mercearia, bacalhau e a pana[3] para a família que, ansiosa, aguardava pelo sucesso de semelhante façanha, ou, então, inserido em grupos de três a quatro dezenas de companheiros, na calada da noite, transportando cargas, sempre, entre 30 a 40 Quilogramas, subia a serra, ou atravessava as poldras, calcorreava mais uns quilómetros e, finalmente, batia à porta do comerciante, que aumentava seus lucros, em função do contrabando. Por aí passaram muitos emigrantes e muitos exilados portugueses, fugidos a  Salazar, à PIDE e ao Estado Novo, em busca de novos futuros.

A zona da fronteira galega, com Soajo e Lindoso, desde sempre e até aos nossos dias, obedeceu mais a interesses das comunidades locais, à parte pequenos incidentes, do que, propriamente, à aplicação duma lei rígida de separação de fronteiras, determinada por Portugal e Espanha. 

Os primeiros registos que se referem expressamente à linha de fronteira das províncias do Minho e de Trás-os-Montes datam de 1538, (coincidindo com o Tombo de 1530), por ordem de D.  João III, tendo nomeado para o efeito, Mem Afonso de Resende.

Nesse documento, segundo Manuel da Cruz Fernandes ([4]) “a  linha  de  fronteira  parte da Cruz do Touro, situada na Serra das Eiras que é um braço da Serra do Gerês, vem por águas vertentes à Laja dos Candainhos, dali à Lobagueira da Mó, dali à Portela da Velha ou Sede dos Reis, onde desce pelo outeiro abaixo à Pedra do Bozelo, atravessando em seguida o  Lima  e  cortando  a  direito  ao  Castanheiro do  Crasto  na  cumeada da serra que se chama Quinjo, e deste ponto ao Esporão da Portela serra acima, e dali à Cruz do Travessão e da Cruz do Travessão à Portela do Couto, e dali aos Portos da Várzea descendo pela serra da Portela do Couto abaixo até ao rio e daí, pelo rio Tibo à confluência deste com o rio Lima”.

Os espanhóis pretendiam “que a raia venha da Cruz do Touro, pelo rio Cabril até à sua confluência com o Lima, para seguir por ele até à reunião deste com a ribeira do Tibo, ficando deste modo incluído no seu país o disputado Monte da Madalena e a serra do Quinjo” ([5]).

 Em 1538 os povos de Lindoso queixaram-se a Mem Afonso de Resende, de que nos últimos 60 anos, portanto desde 1470, os Galegos das aldeias vizinhas da serra do Quinjo se "meteram de posse mole mole até que de todo estavam já metidos em posse dela".  Lembravam ainda os moradores  mais  antigos  que  os  alcaides-mores da Vila de Lindoso a saber, Paio Rodrigues de Araújo,[6] avô de João Rodrigues Araújo, que por sua vez era alcaide em 1538, trazia a  sua  vacaria  pacificamente  na  serra  do  Quinjo,  enquanto  viveu  e depois pela sua morte, as trouxe aí também seu filho que ficou por alcaide-mor, de nome Lopo Rodrigues de Araújo.

Em  1538,  para  além  das  queixas  dos  habitantes de  Lindoso  de, depois de o alcaide ter vendido os seus gados que pastavam na serra  do  Quinjo,  terem  os  povos  da  margem  direita,  mole  mole,  se  ir apoderando desta serra até chegar ao rio de Tibo, nada mais havia a registar em relação ao reconhecimento da raia.

As queixas dos habitantes de Lindoso contra as pretensões dos galegos, estenderam-se ao longo do tempo, principalmente decorrente da posse dos Montes da Madalena.

Em 18 de Fevereiro de 1819, o Juiz de Lindoso, João Luís Lourenço, dirige a  D.  Miguel Pereira Forjaz[7]  um Requerimento, no qual pede que sejam levados ao conhecimento de Sua Majestade os vexames e agressões de fronteira provocados pelos Galegos, em 20 de Janeiro daquele ano, com o pedido de que sejam retomadas as negociações para ultimar a demarcação da raia, para não serem mais vexados pelos Galegos confinantes.

O juiz leva ao conhecimento superior uma síntese dos  atos  de  desrespeito  praticados  pelos Galegos, sem que a devida marcação de fronteiras se faça. 

A perda do Monte do Quinjo, a favor dos galegos, não foi sentida da mesma maneira pelas gentes de Lindoso e dos lugares de Soajo, tendo estes continuado a utilizá-la nas pastagens dos gados, enquanto (...) em relação ao Monte da Madalena, os problemas agravaram-se e foram alvo de renhidas contendas entre os vizinhos raianos. [8]

Se a relação com os povos vizinhos e irmãos da Baixa Limia atravessou os séculos com grande calmia, salpicada, de onde em onde, por pequenas quezílias ou atritos, o mesmo não se pode dizer da relação com os poderosos do país vizinho.

Um dia D. Afonso Henriques, tomado de fúria contra seu primo, Afonso VII de Leão, entrou pela Galiza adentro, e na margem direita do Lima, em Celme,[9] mandou aí construir um castelo, comandada por um homem da sua confiança, João Fernandes, cujos vestígios ainda hoje são visíveis.

Pouco depois de ele virar costas, o rei leonês, cercou e destruiu o castelo, tomou o alcaide como cativo, que ficou conhecido a partir daí, como João Fernandes Cativo e desceu o vale do Lima, muito para além do alinhamento geral da fronteira.

Esta parte da fronteira deve ter ficado entregue, por vários séculos, ao uso que os povos habitantes aí lhe deram.

Com a perda da independência para Espanha, em 1580, os galegos ganharem outra força contra as aldeias portuguesas, preferencialmente, contra Lindoso.

Pouco se sabe sobre os sessenta anos de sujeição a Espanha, mas sabe-se que, mal se deu a Restauração, os povos raianos se bateram rijamente para derrotarem o General espanhol D. Vicente Gonzaga, governador de Armas da Galiza, em 1641 e 1647.

Em 1657 voltaram os Espanhóis a atacar Portugal, pela serra Amarela, com seiscentos homens de infantaria e alguns de Cavalaria.

Manuel de Oliveira Pimenta, com as forças de Lindoso, desbaratou-os, apoderando-se da presa, que eles tinham tomado.

Este combate está descrito por uma testemunha ocular e fazia parte dos manuscritos do grande genealogista Manuel J.C Felgueiras Gaio e veio-lhe parar à mão por amabilidade do seminarista Leonardo de Oliveira Faria, 

“ No dia em que tive esta relação, chegou um criado meu com sua mulher, de Lindoso, que me recolhiam a renda, e disseram que os galegos seriam oitocentos homens de pé e mais dum cento a cavalo. Vinham três mangas, uma da parte norte do castelo e outra do sul, que era a de maior poder e outra que era menor trazia oitocentas cabeças de gado de Vileirinho e Fornos da Ermida de Lindoso.

Começaram a queimar o lugar de Lindoso, que foram cinquenta e duas casas, fora os cereais e celeiros.

A esta guerra acudiram de Soajo, duzentos homens de um lugar de Paradela, (Soajo) que andando os nossos a brigar com os galegos da parte norte, mataram muitos e os fizeram fugir, acudiram os nossos e os soldados e de outro lugar que tem aí na serra de Soajo e deram na manga do sul, de maneira que os fizeram fugir. E na retirada mataram mais de duzentos e se eles não fossem fugindo, não havia de ficar nenhum galego que eles não matassem. E de um monte alto botaram penedos que faziam muito pezar na cavalaria.

As mulheres também brigaram num lugar que está junto a Lindoso, no Real e o defenderam com pedradas para que o não queimassem. Os soldados que eram cinquenta, com mais oito da Ponte da Barca e com os moradores de Lindoso e os que acudiram de Soajo fizeram maravilhas e depois acudiram ao gado que o tomaram todo” , segundo refere o Padre Avelino Jesus  da Costa. [10]  

Em 1755, os galegos, numa das suas arruaças entram nos Montes da Madalena, cortam vinhas queimam colmeias, derrubam pedras de assento e muros divisórios e atiram ao rio a pedra de Vozelo, um dos marcos divisórios de fronteira.

Em 1807 houve várias diligencias entre os dois reinos, mas sem se chegar a um consenso sobre a demarcação da linha de fronteira nesta zona do Lima, por se terem iniciado as invasões francesas, tendo o povo da Ponte da Barca, com a participação de muitos soajeiros, mostrado grande coragem e heroísmo.

As conversações sobre a fronteira foram retomadas em 1820 e 1821, mas voltaram a ficar suspensas até 1855. Já depois de Lindoso deixar de ser concelho e pertencer a Ponte da Barca, 1836, há uma exposição coletiva do povo de Lindoso, datada de 5 de junho de 1863, a pedir ao rei de Portugal que mantenha posse dos Montes da Madalena.

As Comissões encarregues da delimitação da fronteira vão-se sucedendo, sem resultados definitivos, até que a 1 de Dezembro de 1906 era, finalmente, assinada a Acta geral de delimitação entre Portugal e Espanha, com  demarcação bem precisa “ (ARTIGO 4º A linha divisória partindo do ponto designado no rio de Castro, continuará pela veia fluida deste rio, e depois pelo rio Tibo ou Várzea, até á sua junção com o Lima, pela corrente do qual subirá até um ponto equidistante entre a confluência do rio Cabril e a Pedra de Bousellos. Do referido ponto subirá ao elevado rochedo da serra do Gerez chamado Cruz dos Touros. O terreno questionado entre os portuguezes de Lindoso, e os hespanhoes da freguezia de Manim, será dividido pela linha de fronteira em duas partes iguaes”. [11]

Deste modo, toda a serra do Quinjo deixou de ser reivindicada como portuguesa, embora sua utilização pelos gados de Paradela, Várzea, Cunhas e Soajo, sempre tenha ocorrido, até hoje.

Ao longo dos tempos os pastores portugueses partilharam a posse e usufruto da Serra do Quinjo, com os galegos, sendo breves os incidentes, mas multisecular a reivindicação dessa posse e usufruto.

José de Sousa Rodas, in, POR SOAJO, (2018) refere, que por volta dos anos 20 do sec. XX, a relação de proximidade com as gentes do Olelas, nomeadamente, com rapazes da mesma idade:

“Havia uma certa rivalidade entre jovens da Várzea e do Olelas (Espanha), sendo frequente haver pancadaria entre ambos, embora também houvesse amizade e compreensão. No dia 18 de Dezembro vinha eu e o meu vizinho João Pedro (Gigante), com animais nossos e, ao chegar a Monteiro, deparamos com 4 rapazes de Olelas mais ou menos da nossa idade. Conseguimos correr com eles até ao Cabeço da Vigia. 

Noutra ocasião fomos à festa, na Terça-feira de Pentecostes, em honra de Nª Sª Virgem de Olelas. Neste dia, grandes e pequenos, rapazes e raparigas lá vestiam a sua melhor fatiota, e ala, de abalada à festa da Virgem. Geralmente, os rapazes levavam compridas varas de pau; só que nesse ano a Guarda Civil obrigou a guardá-las no comércio do Sr. Inácio. Nós éramos oito e a rixa começou logo que chegámos, mas ainda só com palavras. O pior foi à tarde no arraial. A certa altura, um rapaz da Ilha passou uma rasteira ao Refia quando este andava a dançar. Formou-se logo ali uma zaragata enorme entre os moços pequenos. Como eu e o Refia éramos os piores, a Guarda Civil prendeu-nos. Pelo Refia respondeu o guarda-fiscal Leites, mas teve de se retirar com ele, para a Várzea. Por mim, respondeu o meu tio João Manuel, que me fez as orelhas negras e obrigou a estar junto das pessoas mais velhas o resto do dia “. 

Apesar dessa animosidade juvenil, o crescimento e a vida adulta eram pautadas por relações de proximidade, ajuda mútua e respeito: “(...) existiam fortes amizades entre nós e os galegos. Quando havia festas, nós íamos comer a casa deles e eles às nossas. Havia uma convivência íntima até nos trabalhos, indo nós ajudá-los e eles vinham também ajudar-nos.  Aos sábados, os rapazes iam lá aos bailes e eles vinham cá noutros sábados e tudo na melhor ordem, respeito e amizade. As desavenças eram só entre moços pequenos. Logo que principiassem a namorar, acabavam as rixas”[13] . 

O mesmo autor descreve o pastoreio sazonal, na serra do Quinjo, com o pai, Manuel Preto Rodas, o que era habitual entre as gentes da Várzea e Paradela, naquela data.

“Na Primavera, em fins de Março, eu e meu pai levávamos (Várzea) os touros e touras com menos de 4 anos ao Carvalhal, monte espanhol que fica junto ao Campo do Louro, no Quinjo, e permaneciam lá até Maio. Durante este tempo, duas a três vezes por semana, meu pai ia-nos passar ao rio no Salto e nós lá íamos pelas Baijas, Figueira Moura e, muitas vezes, até Brengula, juntar os animais. Meu pai aconselhava para no regresso passarmos o rio no Porto-à-Várzea, mas como a volta era grande, quando chegávamos ao Salto, pegava no meu irmão às costas e aventurava-me a atravessar assim o rio. Estes animais em meados de Maio juntavam-se com os outros e iam para a Seida (...) Em meados de Setembro regressávamos da Seida e voltávamos ao Quinjo, mas desta vez para Trabação, Brengula, Chã do Marco, Seixedo e Bris, ficando por aí, até fins de Novembro, altura em que vinham para o lugar, a fim de passar o Inverno “[14]

Na memória recente de muitas pessoas dos lugares da Várzea, Paradela e Cunhas, da freguesia de Soajo, perdura um acontecimento com final trágico, ocorrido, entre pastores portugueses e as autoridades galegas, no dia 8 de abril de 1906.[15]

Como seria uma prática secular, os povos da raia, Paradela, Várzea, Cunhas e Soajo levavam os gados para o Quinjo. José de Sousa Rodas refere que, apenas, iam para o Quinjo, antes da ida para a Seida (maio) e no regresso da Seida, (setembro) até ao inverno. Mas há outros testemunhos que afirmam que havia lá gado português todo ano, exceto no inverno. 

Tudo corria em concórdia e paz, até que em determinada altura os espanhóis de Buscalque e Quintela exigiram aos portugueses que pagassem uma certa quantia para os animais poderem continuar a pastar nos ditos montes. Como estes se tivessem recusado, invocando senão o título de proprietários, pelo menos o de usufrutuários, um direito adquirido ao longo dos séculos, um dia os galegos, apoiados pelos Carabineiros, ameaçaram aprisionar o gado pertencente aos portugueses. Marcado o encontro, a fim de resolver o problema, para dia 8 de abril, por ser domingo, num local a que testemunhos orais situam no Quinjo, nos planaltos do Coto Rachado, lá no cimo da Corga do Port'Abilheira, mais ou menos em frente do Poulo da Laceira, ali compareceram quase todos os donos dos animais das duas aldeias portuguesas. As opiniões estavam divididas e alguns não se importavam de pagar “15 mil reis por cabeça”, mas a maioria reafirmava o seu direito ao usufruto das pastagens.

Os que mais se salientavam nas reivindicações dos direitos de pastagem eram, da Várzea, José Gonçalves, Domingos Preto Rodas e Manuel Preto Rodas, os irmãos António  Videira e  Manuel Videira. Estes com bons modos conseguiram reaver os gados sem pagar. Os de Paradela, um grupo de 18 homens, onde avultavam, António Rodas e seu filho, João Rodas, João Martins, Domingos Rodas, o Careca, Firmino da Piedade Barbosa, João Curto, José Rego, entre outros, defendendo os seus direitos, armaram uma discussão que gradualmente subiu de tom e foram proferidas várias ameaças de aprisionamento dos gados, às quais responderam os paradelenses com varapaus, em que eram mestres no jogo do pau. No meio da refrega, João Rodas apontou a arma de pederneira ao Carabineiro, mas esta não disparou, ou por deficiência da carga ou do rastilho. Na resposta, os guardas dispararam e atingiram pelas costas José Gonçalves, da Várzea, que se retirava com os seus gados.

“Um dos guardas prostrado com duas cacetadas, pode ajoelhar-se e, disparando a espingarda, feriu numa perna a Luís Rodrigues Belchior, do lugar de Paradela”.[16]

Estes acontecimentos levaram à prisão do pai, António Rodas e o filho, João Preto Rodas, e levados para Quintela, foram aprisionados num curral, com 15 cabeças de gado. Segundo testemunho oral de Maria Custódio Preto Barbosa, toda a noite o filho se queixou das dores no corpo e pediu água ao pai, que, por estar preso, lha não podia dar.

Houve vários feridos dos dois lados, sendo Domingos Rodas, o Careca, de Paradela, um deles.

Ficou João Rodas muito maltratado das pancadas e socos que levou dos carabineiros, sendo levado, no outro dia para Ourense, onde veio a falecer dos maltratos, enquanto o pai, ferido, foi libertado e voltou para sua aldeia, Paradela. 

Na quarta-feira seguinte (11 de abril) chegou aos Arcos de Valdevez uma força de 65 praças de Infantaria 3, metade da qual seguiu, no dia seguinte, para a Vila de Soajo, de modo a procederem a um auto de averiguações, após inquirirem quatro testemunhas. Ficaram intimadas umas vinte testemunhas, que foram depor à sede do concelho na quinta-feira, 19 de abril.

Os animais aprisionados pelos galegos foram devolvidos aos seus legítimos donos, ficando sem se saber se houve lugar a qualquer pagamento.

Pela sua violência e pelo sentimento de perda de vida e benefício dum espaço que sempre julgaram seu, estes acontecimentos ficaram a fazer parte do património oral destas aldeias.

Curiosamente os animais continuaram a pastar naqueles montes até quase ao final do seculo XX, sem qualquer pagamento.

A emigração e o abandono da agricultura e pastorícia vieram diminuir a necessidade de pastoreio na serra do Quinjo, bem como a construção da barragem de Soajo/Lindoso, projetada em 1983 e concluída em 1992, cuja albufeira alagou as aldeias galegas ribeirinhas e todo o vale do rio da Várzea, incluindo a sua veiga, impedindo a passagem dos animais pelo rio de Tibo. 

A questão da fronteira deixou de ter relevância para o quotidiano dos povos transfronteiriços com a adesão dos dois países à União Europeia. “ Hoje foi a minha vez de atravessar a fronteira sem cancelas de nenhuma ordem. Nem fiscais alfandegários, nem polícia a carimbar o passaporte. Apenas um painel de doze estrelas a mandar seguir. (...) [12]

Com a maior mobilidade com estradas alcatroadas e viaturas modernas, a comunicação e interação entre os povos transfronteiriços conhece um novo desenvolvimento, entre a vizinhança e a fraternidade de gente que partilha o mesmo espaço e o mesmo tempo histórico e sociocultural, salientando-se a esperança de projetos transfronteiriços, que tragam nova dinâmica a estas terras, bem como uma autoestrada que ligue Ourense a Viana e a Braga, euma  ligação rodoviária entre os lugares de Olelas e da Várzea, separados pelas águas da produção elétrica, mas unidos  pelas suas histórias e identidades.

 

Manuel Rodas

 10/2022

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] A cultura castreja teria vivido sensivelmente entre 900 a.C. e o séc. I d.C. Contudo, certos castros ascendem ao Neolítico, outros foram romanizados, muitos mantiveram-se ininterruptamente povoados durante dois ou três milénios, conservando, no seu espólio a marca de várias influências de civilização.

[2] Paisagens e espaços de fronteira, Carvalho, Elza, Edições Afrontamento, Lda.  e CITCEM, 2020

[3] Designação local atribuída a um tecido resistente, muito próximo das bombazinas.

 

[4] http://vctopac.bibliopolis.info/OPAC/documentos/VianadoCastelo/20081028153448.pdf

 

[5] Idem

[6] Paio Rodrigues de Araújo, nasceu no lugar de Vilafranca, freguesia de Riofrio onde era um abastado proprietário. Foi comendador, senhor das Casas de Araúxo, em Lóbios, na Galiza, e das de S. Fins e Penojas, em Portugal, Alcaide-mor de Lindoso e Guarda-mor de D. João I e de D. Henrique, infante e filho deste, em Guilhadeses.

[7] D. Miguel Pereira Forjaz Coutinho Barreto de Sá e Resende de Magalhães (1 de Novembro de 1769 — 6 de Novembro de 1827), 10.º Conde da Feira, foi um militar e político português que se distinguiu durante a ocupação francesa de Portugal e as Guerras Napoleónicas. Foi um dos nomeados governador do Conselho de Regência de 1807 e do de 1809 para tomarem conta do Reino de Portugal quando a corte se deslocou para o Brasilhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Pereira_Forjaz 

 

[8] Paisagens e espaços de fronteira, Carvalho, Elza, Edições Afrontamento, Lda.  e CITCEM, 2020

[9] Localizado no município de Rariz da Veiga, freguesia de Sta Maria de Congostro, é opinião aceite pelos investigadores que foi mandado construir por Afonso Henriques, numa das suas incursões à Límia, mantendo-se divergências, apenas no que diz respeito à data, 1133 ou 1139. Atualmente, não existem nem a torre, nem o castelo, apenas alguns vestígios.

[10] In, Subsídios para História da Terra da Nóbrega e do Concelho de Ponte da Barca,  CostaPadre Avelino Jesus, ED. Centro Cultural Frei Agostinho da Cruz e Diogo, Bernardes, Ponte da Barca,1997

[11] Finis Portugaliae, nos  confins de Portugal, cartografia militar e identidade de Portugal, Dias, Maria Helena, Instituo Geográfico do Exército, 2009

[12] 3 de Setembro de 1993, Miguel Torga, Diário

[13] José de Sousa Rodas, in, POR SOAJO, (2018)

[14] José de Sousa Rodas, in, POR SOAJO, (2018)

[15] El Diário de Pontevedra, 16 de abril, 1906

(16)  O Arcuense, 15 de Abril de 1906, 21º anno, nº 1:048

 


 

ANEXOS

 

1-    Coto Rachado, Quinjo

 

 

 

 

2-    Ruínas Castelo de Celme, Congostro,  32652. Rairiz de Veiga

 

 

Uma imagem com mapa

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Miradouro

https://www.turismo.gal/recurso/-/detalle/16683/ruinas-castelo-de-celme?langId=pt_PT&tp=4&ctre=17

 

3-    Echos do Vez, 12 de Abril, de 1906, Anno 3, Nº 15

 

 

 

 

 

 

 

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4- O Arcoense, 15 Abril de 1906, 2º Anno, Nº 1:048

 

 

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