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quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Testamento de Dulcineia

 

Partilho no meu blogue este texto, que achei interessantíssimo e vem assinado por um tal Alexandre Inácio e que quer manter uma reserva, acerca da sua vida privada! 


Em nome de todos os ventos que sopram nas planícies áridas e das estrelas que guiam os corações destemidos, eu, Dulcineia, lúcida e consciente das minhas escolhas, faço este testamento para expressar meus desejos finais.

Declaro que neste ato, por minha própria vontade e discernimento, revogo qualquer testamento anterior e designo o Primeiro Ministro de Portugal, como o principal beneficiário de meus bens, propriedades e recursos. Reconheço sua lealdade inabalável, seu amor genuíno e sua dedicação incansável. É ele quem se mostrou digno de minha confiança e afeto, oferecendo seu serviço sem pedir nada em troca além de minha amizade e afeição sincera.

A partir deste dia, todas as terras, posses, objetos de valor e quaisquer outros ativos que me pertençam, passam para as mãos do  Primeiro Ministro de Portugal. Peço-lhe que cuide deles com a mesma devoção que demonstrou em nossas jornadas e aventuras compartilhadas. Seja zeloso em sua administração, assegurando que os frutos de meu trabalho possam trazer benefícios e conforto para sua vida e para aqueles que lhe são queridos.

Quanto a Dom Quixote e a Sancho Pança declaro que não lhes concedo parte alguma de meus bens neste testamento. Apesar das ilusões românticas e das proezas cavalheirescas que Dom Quixote sempre buscou, percebo que sua busca por glória e idealismo o levou a se desconectar das realidades terrenas e das necessidades práticas. Acredito que minhas escolhas são justas e equitativas, baseadas nas ações e nos méritos de cada um ao longo de nossos encontros.

Deixo registado que esta decisão é definitiva e irrevogável. Convido a todos os que lerem este testamento a respeitar minha vontade e a aceitar minha escolha com a mesma dignidade que busquei em todas as minhas ações. Que minhas palavras sirvam como guia e exemplo para o respeito às escolhas pessoais e à justiça que permeia nossas vidas.

Assino este testamento na presença de testemunhas, como um ato de clareza e determinação, buscando a harmonia entre as histórias que compõem nosso mundo.

Assinado,

Dulcineia



Alexandre Inácio

sábado, 12 de agosto de 2023

Entre palavras e sombras, Pessoa e Saramago

 



Título: Entre Palavras e Sombras

I ACTO


Cena I: O Encontro

(Um café sombrio e pouco iluminado. Fernando Pessoa está sentado a uma mesa, com uma caneta e papel, absorto em seus próprios pensamentos. Saramago entra e se aproxima.)

Saramago: (olhando para Pessoa) Ah, Fernando Pessoa, o poeta das múltiplas faces. Sempre absorto em seu mundo interior.

Pessoa: (levantando os olhos) Saramago, o contador de histórias com uma visão única do mundo. Que surpresa tê-lo aqui.

Saramago: (senta-se) Uma mente inquieta como a sua merece um ambiente à altura.

Pessoa: E você, Saramago, o que o traz a este café sombrio?

Saramago: (sorri) A busca por inspiração, como sempre. Minhas palavras precisam de um solo fértil para crescer.

Cena II: O Pacto

(Pessoa e Saramago estão agora mais envolvidos na conversa, enquanto o Diabo, disfarçado como um homem comum, se aproxima lentamente.)

Diabo: (sussurra no ouvido de Pessoa) Você deseja reconhecimento, não é? Poder além da vida? Um pacto e tudo isso será seu.

Pessoa: (olhando intrigado) Quem é você e o que oferece?

Diabo: (sorri sinistramente) Chamam-me de Diabo, e posso conceder-lhe fama, riqueza e a imortalidade literária em troca de algo que você tem, mas não usa.

Pessoa: (pensativo) E o que é isso que diz que tenho?

Diabo: Suas múltiplas personalidades, sua alma fragmentada. Deixe-me usá-las e você terá tudo o que deseja.

Pessoa: (olhando para Saramago) E você, o que acha disso?

Saramago: (franzindo a testa) Pactos com o Diabo nunca resultam em boa coisa. Suas palavras seriam vazias, suas conquistas falsas.

Cena III: O Confronto Interno

(Pessoa está agora em um dilema, dividido entre a oferta do Diabo e a advertência de Saramago. Ele se vê diante de um espelho, refletindo as várias faces de sua personalidade.)

Pessoa (vozes sussurrantes): Aceite o pacto, torne-se imortal, deixe suas palavras ecoarem através dos séculos.

Pessoa (outras vozes): Saramago está certo, essa busca por fama efêmera não vale a pena. Sua arte deve ser genuína.

(Ambas as personalidades de Pessoa debatem internamente, enquanto Saramago observa de longe.)

Cena IV: A Escolha

(Pessoa se afasta do espelho, olhando para o Diabo com determinação.)

Pessoa: Recuso sua oferta. Minhas palavras pertencem a mim e ao mundo, não a você.

Diabo: (ri sombriamente) Sua escolha é sua queda.

(Saramago se aproxima de Pessoa, colocando uma mão em seu ombro.)

Saramago: A verdadeira imortalidade está na autenticidade de suas palavras, na conexão com as mentes dos leitores. Não se perca em promessas vazias.

(O Diabo se afasta, desaparecendo nas sombras.)

Cena V: Reflexões

(Pessoa e Saramago estão novamente sentados, retomando a conversa.)

Saramago: Cada palavra que escrevemos é uma batalha contra nossos próprios demônios. A verdadeira vitória está em enfrentá-los e criar com sinceridade.

Pessoa: (assentindo) A luta entre nossas personalidades nos molda. A autenticidade, como você disse, é a verdadeira chave para a imortalidade.

(Fim da cena. As luzes diminuem enquanto Pessoa e Saramago continuam conversando, deixando para trás as sombras do pacto proposto pelo Diabo.)


II ACTO



Título: "O Diálogo das Almas Desgarradas"

Cena 1: O Café das Palavras Perdidas

(Local: Um café acolhedor e empoeirado. Mesas com pilhas de livros e xícaras vazias. Ao fundo, uma lousa com rabiscos poéticos. FERNANDO PESSOA está sentado em uma mesa, escrevendo em seu caderno. SARAMAGO entra e se aproxima.)

SARAMAGO: (com ar intrigado) Boa tarde, amigo. Vejo que o universo das palavras o mantém cativo novamente.

FERNANDO PESSOA: (olhando para SARAMAGO e sorrindo) Boa tarde, José. As palavras são minha fuga e prisão, como o mar é para o marinheiro solitário.

SARAMAGO: (ironicamente) Ah, vejo que ainda brinca com suas múltiplas personas.

FERNANDO PESSOA: (suspirando) Não são personas, meu caro. São fragmentos de uma alma que luta para encontrar um significado.

SARAMAGO: (caminhando pelo café) Significado... uma busca tão humana, não é mesmo? No entanto, às vezes me pergunto se nossas palavras realmente importam, se têm algum impacto duradouro.

FERNANDO PESSOA: (levantando-se) Cada palavra é uma chama que pode iluminar o escuro ou queimar o que toca. Elas são nossa herança, nossa forma de eternidade.

SARAMAGO: (sorrindo de lado) Eternidade... você fala como se fosse um deus.

Cena 2: No Labirinto das Dúvidas

(Local: Um labirinto de espelhos distorcidos. FERNANDO PESSOA e SARAMAGO caminham por corredores confusos, seus reflexos multiplicados.)

SARAMAGO: (olhando para os espelhos) Somos apenas marionetes das palavras, meu amigo. Será que algum dia encontraremos a verdade em meio a essa ilusão?

FERNANDO PESSOA: (tocando o reflexo distorcido) Cada espelho reflete uma parte de nós, mas quem somos verdadeiramente está além da imagem.

SARAMAGO: (com um toque de melancolia) Falando como um poeta romântico perdido nas nuvens. Eu, por outro lado, questiono a própria existência, a coerência deste mundo.

FERNANDO PESSOA: (olhando intensamente para SARAMAGO) E se a incoerência fosse o fio invisível que tece nossa realidade? Um deus brincalhão que ri de nossos esforços para entender?

Cena 3: A Convergência dos Destinos

(Local: Um espaço etéreo e abstrato. FERNANDO PESSOA e SARAMAGO estão diante de um ser transcendental, DEUS.)

DEUS: (com uma voz que ecoa pelos confins) Vejo duas almas perdidas, cada uma com sua busca única e seu conflito interno.

SARAMAGO: (olhando para DEUS) Somos meras criações de nossas próprias mentes, prisioneiros de nossa capacidade de questionar.

DEUS: (sorrindo) E, no entanto, essa capacidade é o que os torna especiais. Fernando, suas palavras tecem sonhos e ilusões, dando vida a mundos inteiros. José, suas dúvidas incisivas sondam os abismos da existência.

FERNANDO PESSOA: (olhando para DEUS) E qual é o propósito de nossas jornadas, senão encontrar um vislumbre de significado?

DEUS: (com ternura) O significado está na busca. Cada palavra, cada questionamento, molda o tecido do universo. O que importa não é a resposta, mas a jornada para encontrá-la.

SARAMAGO: (sorrindo levemente) Então, somos apenas viajantes em um labirinto sem fim, em busca de um sentido que se desvanece constantemente?

DEUS: (com um olhar sereno) E assim como as palavras são eternas em seu impacto, também o são as jornadas de suas almas. Sigam em frente, explorando o desconhecido, pois é nesse explorar que encontram a essência da vida.

(FERNANDO PESSOA e SARAMAGO se entreolham, refletindo sobre as palavras de DEUS, enquanto a cena se desvanece em um jogo de luzes e sombras.)


III ACTO


Título: Teias do Destino

Cena I: O Encontro Inesperado

(No cenário cinzento e melancólico de uma praça, a estátua de Fernando Pessoa olha para além do horizonte. Uma figura encurvada e vestindo óculos escuros, reminiscente de Saramago, se aproxima.)

Fernando Pessoa: (com um olhar distante) "O poeta é um fingidor que finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente."

Saramago: (com um sorriso irônico) Ah, Fernando, sempre a brincar com as palavras e as emoções. Você e suas múltiplas personas, cada uma como um mundo inteiro.

Fernando Pessoa: (suspira) No fundo, Saramago, todos nós usamos nossas máscaras para lidar com a complexidade da vida.

Cena II: A Vida Despedaçada

(Enquanto isso, um jovem desempregado, vestindo roupas desgastadas, observa a conversa de longe.)

Jovem Desempregado: (para si mesmo) Que diferença faz toda essa conversa literária para alguém como eu? Enquanto eles discutem palavras e abstrações, minha vida desmorona a cada dia.

Cena III: Reflexões e Conflitos

(Os três personagens se encontram em um café, em uma mesa repleta de livros e café. O jovem desempregado olha com curiosidade para os dois escritores renomados.)

Jovem Desempregado: (com uma pitada de ressentimento) Vejam vocês, discutindo sobre fingimentos e palavras bonitas. Enquanto isso, eu luto para encontrar um emprego, para sobreviver neste mundo real.

Fernando Pessoa: (com um olhar compassivo) Meu jovem, não subestime o poder das palavras. Elas podem ser uma forma de escapar das agruras da vida, uma maneira de encontrar significado mesmo nas situações mais difíceis.

Saramago: (com um sorriso sutil) No entanto, meu amigo, as palavras por si só não podem preencher o vazio do estômago ou fornecer um teto sobre a cabeça.

Jovem Desempregado: (com amargura) Eu entendo o que vocês estão dizendo, mas a realidade que enfrento é implacável. Não posso me dar ao luxo de perder tempo com abstrações.

Cena IV: O Desfecho Poético

(Os três personagens continuam a conversar, trocando pontos de vista e experiências. O jovem desempregado começa a compreender a importância das palavras e das histórias para enfrentar a adversidade.)

Jovem Desempregado: (com uma mistura de resignação e esperança) Talvez haja um meio-termo, uma forma de encontrar minha própria voz e narrativa enquanto enfrento os desafios reais da vida.

Fernando Pessoa: (com um sorriso enigmático) Você está descobrindo o verdadeiro poder da literatura, meu jovem. Ela não é apenas uma fuga da realidade, mas também uma maneira de entender e transformar essa realidade.

Saramago: (assentindo) De fato, jovem amigo. Cada um de nós é fruto das circunstâncias sociais, económicas e políticas. É a nossa história pessoal, num mundo de contradições, de fome, guerra. Um mundo sem Deus, onde os pobres estão cada vez mais sozinhos e indefesos. A arte transforma- nos a nós, que transformaremos o mundo num lugar mais saudável e justo!

(A cena termina com os três personagens, Saramago, de pé, gesticula, enquanto Pessoa mostra uma expressão de surpresa e o jovem se entusiasma, batendo palmas, que o público já não ouve, enquanto o palco escurece lentamente.)

Fim

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Não deixes que a mentalidade “Que se Lixe” tome conta do teu Natal

Que se lixe o Natal.

Sim, que se lixe! Quem quer saber do Natal? O governo? Ora, os partidos políticos e os governos só querem saber do Natal se as eleições - onde as há- estiverem próximas. Nessa altura é vê-los a correr, aos beijinhos, tudo sorrisos, bandeirinhas na mão, fotografias dos candidatos em cima dum pinheirinho verde, estampado num panfleto, autocolantes do Pai Natal, de colar no frigorífico, tudo a correr, de mão em mão. Cumprimentos no mercado, como vai, nas ruas, boas festas, à saída dos espetáculos, bom Natal, à porta dos templos e campos de futebol.

NÃ, que se lixe o Natal.

O presidente distribui abraços e beijinhos durante todo o ano. Não precisa do Natal para nada.

A câmara municipal e os comerciantes bem podem pôr os arranjinhos de luzes nas árvores e erguer presépios nas rotundas. Os centros comerciais fazem propaganda, de preços imbatíveis, ofertas miraculosas, viagens extraordinárias, seguros indesmentíveis, o raio que os parta. Para quê? Para incrementar as compras, com preços mais elevados, a explorar a onda de afetos que o Natal seria suposto ter.

NÃ, que se lixe o Natal.

Estou mesmo para ver se o Putin e o Zelenski mandam parar a guerra, por causa do Natal. Ou se declaram a paz em honra da Humanidade e do Natal. Ou se os países da CEE aceitam os refugiados, que fogem para a Europa e distribuem a riqueza acumulada, ou fazem investimentos, de modo a criarem riqueza para todos. E aqueles que não acreditam na ciência, nas alterações climáticas, nem na democracia? Há algum Natal que os salve? Tá bem, tá!

Nã, que se lixe o Natal.

Quem quer saber do Natal?

Os poetas? Esses querem é vender os seus livrinhos, serem conhecidos e, quem quer fazer poemas ao Natal? Os poemas são emoções e o Natal não desperta emoção nenhuma. Aquela emoção da menina pobre a vender fósforos, essa já deu...

Os pintores e todos os outros artistas querem é vender as suas obras, não querem saber do Natal para nada. Os outros, os informáticos, bancários, pessoal dos serviços, saúde, segurança, nada, ninguém quer saber do Natal, só se for para se prepararem para o trabalho a dobrar. Nas escolas ainda fazem uns presépios em que ninguém já acredita. Gostam porque se altera a rotina, trabalha-se em grupo e as relações são mais próximas. De resto... mal começam as interrupções, já ninguém se lembra do presépio e do menino jesus exposto à chuva e ao frio. Parece ser mais uma tortura do que uma celebração. Assim conseguem ensinar o sado/masoquismo às crianças.

NÃ, que se lixe o Natal.

Apenas alguma saudade da infância e tristeza pelos que partiram e já cá não estão. Tudo o que resta é solidão. Escuro e triste, frio... mais nada.

Nem esperança nos vizinhos, nem confiança na humanidade. Nada!

NÃ, que se lixe o Natal.

Bem vejo o ar trocista do vizinho do andar de cima a desejar bom Natal à empregada doméstica e aflito com medo de que ela lhe peça aumento, no próximo ano. Ou o senhorio a receber as desculpas do atraso, por mais um mês, só mais um mês, por favor, da renda do andar e da loja. Ou o modo como ele olha para mim, que tenho uma renda baixa, a perscrutar no meu olhar algum sinal de envelhecimento precoce e morte súbita para lhe deixar o andar vazio. Bem o vejo.

NÃ, que se lixe o Natal.

Até o Banco Alimentar e a Caritas se queixam das poucas dádivas que recebem, mas, em contrapartida, os bancos e as grandes empresas anunciam os lucros do último trimestre. Milhões de lucros, para engordar a ganância dos acionistas.

NÃ, que se lixe o Natal.

Valeu bem a pena ouvir o Presidente dizer que ia falar com o governo para acabar com os sem abrigo. Ia, ia, mas não foi! Vai para todo o lado, até os visita e lhes dá abraços. Tirá-los daquela vida é que não! Nem ele, nem o governo.

NÃ, que se lixe o Natal.

Os padres querem o Natal para permitir mais aproximações e disfarçar o ar lascivo com que afagam as moças novas ou os rapazinhos tímidos e frágeis. Agora é tudo amor, comunidade, espírito cristão...uma ova!

Até o Vaticano abriu um Centro Comercial de luxo. Pois claro, de luxo é onde eles sempre andaram, basta visitar os museus das igrejas, ouro, prata, safira, incenso... e do Natal? Nada! Mirrou ou desapareceu!

NÃ, que se lixe o Natal.

No meu tempo, sim. Éramos crianças e o Natal era, depois das férias grandes, o melhor que nos podia acontecer. Não era tanto pelas guloseimas, nem pelas poucas prendas que recebia. Não, isso ajudava, contribuía, mas não era o essencial.

Era um encadeado de pormenores e situações, que criavam a expetativa do Natal. Toda aldeia começava cedo a guardar o canhoto para a noite de Natal. Um canhoto que dê para a noite toda, dizia alguém, a despedir-se da vizinha.

Já em outubro plantavam as couves para a consoada. O bacalhau, comprado muitos dias antes, era para o Natal! A lã começava cedo a ser cardada pois ainda havia que lavar, fiar e fazer as meias grossas, para as ofertas. Os tecidos e rendas adquiridos com antecedência para fazer as prendas, mais um cinto, uns sapatos ou botas, casaco e uma camisola grossa.

- O seu marido vem pró Natal, comadre? E os filhos?

- O mais novo, vamos ver se no quartel o deixam vir. O que está em França, esse, pensa em vir, vamos ver. O meu marido este ano não vem e não vindo, se calhar o filho fica com ele. Vamos ver.

E neste vamos ver estava um mundo de expetativas. Vamos ver. Vamos aguardar e esperar o que há de vir ou suceder.

Se viessem, a casa ficaria cheia de amor, ternura e... adeus saudades. Se não viessem, paciência, fariam quase tudo como se eles estivessem.

O pai a cortar o bacalhau, esse peixe misterioso, que nunca vinha inteiro, mas sempre de espinha à mostra e sem caabeça. Ele parava, contava mentalmente as pessoas à volta da mesa e ia atirando com as postas para o balde, meio de água. Juro que o ouvia a dizer baixinho, mãe, pai, filho, filha, avó, irmão, tia, tio, compadre, comadre...

Enquanto a lenha no fogão de ferro crepitava e a água borbulhava na caldeira, o calor inundava a casa e as almas. A filha mais velha, de cara afogueada, ia fazendo as filhoses, arroz-doce e a letria. As rabanadas, não. Quem fazia as rabanadas era o pai, segundo uma receita que aprendeu com a mãe dele, ou que ele tentava imitar.  De leite e de vinho.

A mãe escolhia as couves, descascava as batatas e as cebolas, procurava o polvo e os ovos e sorria a imaginar a mesa farta.

A tia tratava das bebidas e aquecia o vinho com mel e canela.

Os rapazes faziam pequenos recados na ânsia de receberem os restos das guloseimas, ou a panela vazia do arroz-doce, para rapar. Jogavam ao Xarramil, ou jogo do galo, enquanto iam saboreando a concórdia, a partilha e amor filial, imaginando a mesa posta e as prendas no sapatinho, que o menino jesus havia de deixar, depois de descer pela chaminé.

Era preciso pôr a mesa, para que nada faltasse. E distribuir os lugares. Já todos os convivas estavam presentes, mas não havia, ainda, comida na mesa, ninguém se tinha sentado, todos aguardavam um sinal, pois este era o momento mais perfeito de todos. Uma calma ansiosa, o tempo congelado nas vontades cheias de ternura, uma antevisão do paraíso, com a toalha branca salpicada de pequenos lagos e jardins, pássaros a esvoaçar e um cavalo pintado, de patas dianteiras levantadas no prato, a condizer. Havia a expetativa de que caísse, ou havia de tomar a posição quadrúpede, mas não. Mantinha-se lá no alto, no pedestal com o seu cavaleiro, ambos imunes à gravidade.

Esse tempo é que era belo e esplêndido. Ali estava toda a imaginação à solta, a correr pelos pormenores abraçada a realidade sentida, fraternal e quente. O mundo parava nas nossas almas e apenas os olhos brilhavam de contentamento e de promessas irrealizáveis.

Depois, já não tinha muita graça. Era comer, saborear, dizer umas graças e aplaudir os cozinhados e seus autores, falar do tempo, de quem não tinha podido vir, quem estava doente, quem não ultrapassaria o ano, e outras coisas que só interessavam aos adultos.

Ela voltaria mais tarde, adormecendo na promessa dos brinquedos que o Menino Jesus traria na manhã, mas, nunca trazia o que ambicionávamos.

Agora? O Natal que se lixe.

........

Quem assim perorava contra o Natal era um homem de idade avançada, que a vida tinha atirado para um canto, a remoer o passado e sem perspetivas mobilizadoras no presente. Estava só, trôpego e pronto a desistir. Mulher morta e filho moribundo pela ausência, sem comunicação, sem um olá. Tantos anos, onde estaria? Teria casado? Teria filhos?

- Se calhar morreu, mas se morresse eu saberia, sabe-se lá, em breve saberei...

Era assim que se preparava para o encontro com a esposa e com o filho, no além, com muito azul e cor-de-rosa, sem vento, nem frio, nem fome, só música angelical. Às vezes pensava, porque não um planeta distante, como esses dos filmes?

- Pois que seja assim, será a última vez, mas vou fazer a ceia de Natal para dois, eu e o outro, num encontro final, sozinhos, eu o outro, que para mim, significa todos os outros que amei, amigos, familiares, conhecidos e alguns parvos que tropeçaram na minha vida. É uma pequena loucura que não faz mal a ninguém, nem os ricos ficam mais ricos, nem os pobres mais pobres, nem os enfermos, sãos, nem estes, doentes.

E foi assim que encomendou na mercearia da rua o bolo-rainha, as filhoses, as rabanadas, o vinho do Porto, Champanhe e vinho tinto e branco, os pinhões, as nozes, o bacalhau, o polvo, as batatas e os legumes.

-Sim, agradeço que entreguem em casa, ao fundo da rua, sim, muito obrigado.

Todo o dia foi intercalado por tarefas inerentes à ceia, com momentos de descanso e retemperança. Começou de manhã cedo a descascar as batatas e sorria, de pé, no lavatório da cozinha. Na sua cabeça iam passando várias imagens do passado, da sua infância em casa dos pais, na guerra colonial, da vida de professor, em Moçambique, o retorno a Portugal, os alunos, a morte da esposa, o desaparecimento do filho, as várias operações a que foi sujeito, a aprendizagem do convívio com a solidão, de que esta ceia seria o último capítulo.

Posta a mesa para dois, aberto o vinho tinto, enquanto o champanhe aguardava no frigorifico, pôs uma valsa a tocar, acendeu as velas, foi tomar banho, vestir as calças do fato, camisa branca, colete, sapatos pretos, alisou o resto dos cabelos e de olhos brilhantes, sentou-se, finalmente, a afagar as dores que iam arruinando a sua coluna.

Caro leitor, o homem já está sentado à mesa, as velas acesas, o vinho aberto e... agora? Como encontrar um final feliz e que contraste com o “Natal que se lixe”, que ele passou o tempo quase todo a gritar?

O menos surpreendente seria o toque na campainha e finalmente, o filho regressava a casa, qual cavaleiro da Dinamarca, com o caminho iluminado por uma estrela, caíam nos braços um do outro, chorariam, pediriam desculpa, erros meus, má fortuna, amor ardente e tal... e acabaria assim.

Noutra versão menos dramática, a campainha tocava, e uma jovem loira diria: -Avô, sou a sua neta! Bom Natal, avô! E ela contaria a sua história, como o pai tinha vivido, algures em França e como tinha morrido. A surpresa seria grande, mas menos empolgante e dolorosa. A noite seria um inquérito permanente do avô à sua neta. Monótono e cruel!

Bem...e se campainha tocasse e o homem do quiosque, o sr. Armindo trouxesse a lotaria premiada, que o velho tinha adquirido, mas se tinha esquecido de trazer.

- Premiada, a sua lotaria! Veja lá que sorte a sua! Boas festas e, depois de amanhã, passe lá no quiosque para eu o orientar e levantar a maquia! Boas Festas, amigo!

Esta versão parece pouco convincente, não parece? O leitor ficará a pensar que não é nada plausível, até porque o sr. Armindo teria ficado com a massa, numa perspetiva mais realista da mente humana- “que se lixe o velho!” e não seria natural o esquecimento da lotaria no balcão, depois de a ter pago.

Ainda pensei no padre, mas esse estava muito ocupado com as festas e as múltiplas tarefas das cerimónias e com a missa da meia-noite. O padre a tocar à campainha não seria boa ideia. Nem teria tempo para se sentar e jantar com o velho. Nem o velho iria apreciar a sua companhia, pelo que ele já disse no início da história. O padre, não. O mesmo aconteceria com o presidente da junta que nessa noite também estava super ocupado e o velho professor criticava constantemente.

Ah! A vizinha! Aquela que há muito tempo andava de olho nele, tocava à campainha e oferecia a malga de arroz-doce.

- Para si, amigo! Boas festas!

Ele mandaria entrar, comiam em silêncio, viam televisão e ela sairia, com ar mais triste do que quando chegara e diria, boa noite!

Não era grande coisa este final, pois não?

Subi a rua deserta, dei mais uma volta pela praça, a ver se encontrava algum mendigo, mas ...nada. Tudo iluminado, o pinheiro gigante, o presépio ao lado, mas nem vivalma.

Quem haveria de tocar à campainha? Diga lá, leitor, quem tocaria à campainha, na vida deste homem tão só?

Caro leitor, fui à porta do vizinho e envergonhei-me, vim para a minha e governei-me. Não queria fazer a apologia do individualismo, mas às vezes, acontece a solução estar debaixo da mão e nós a olhar para os pés ou para a lua, que eu até gosto muito de ficar a olhar para ela, longas horas. E o amigo leitor? Olhe, venha comigo, e vamos tocar à campainha do velho e discutir com ele a solução que mais lhe agradaria, para o final da sua ceia e final desta história. Será o nosso presente de Natal. Mais um prato, menos um prato, que mal fará? E o velho, já agora, deixe-me dizer-lhe o seu nome, Víctor Manuel, é esse o seu nome, ficará tão contente, que não se importará nada com isso. Ah! Foi seu aluno? Ora ainda bem. Ele vai gostar de o ver. Eu levo uma flor de Natal e o meu amigo traga o que lhe aprouver. Combinado? Entramos e dizemos, Boas festas, Professor Vitor! Viva o Natal! Viva!

Manuel Rodas

Oeiras, Nov.2022