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terça-feira, 19 de julho de 2022

No café

 


Estava sentado a tomar o meu café da manhã, junto à Praça da Fruta, nas Caldas da Rainha, quando uma inglesa, de cabelos grisalhos e calças rotas nos joelhos, tentava extrair cigarros da máquina automática. 

Ao seu lado passa uma senhora baixa e gordinha, muito sorridente com o seu troféu nas mãos,  uma caixa de doces.

Volve-lhe a inglesa com ar irónico e o dedo indicador:

-Diabetes... 

Sorriu a senhora, com algo de culpabilidade, a desmaiar o conforto da sua vitória, enquanto sorria, acusadora a inglesa, com aquele ar enigmático dos britânicos.

Era a minha oportunidade e não a desperdicei, apontando para a máquina:

-Cigarros...

Ela, do alto da sua crónica ironia, respondeu:

- Não sou diabética!

Sorvi a última parte do café e sorri, mais uma vez, deste humor britânico, que tanto contrasta com o nosso, pois para obter o mesmo efeito precisaria aí dumas duas ou três boas anedotas!

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O meu cão Porto



Lembro-me quando ele chegou a casa. 

Era Inverno e acordamos sobressaltados com as pancadas na porta. O tio João Manuel da Várzea veio trazê-lo preso por uma corda. “É um sabujo, valente!”
Ainda pequeno, talvez quatro ou cinco meses, segundo meu pai, talvez mais, de acordo com o homem. 
As patas como punhos fechados, o peito largo e possante, e as pernas compridas indicavam a meu pai, que iria ser um belo animal.
“Porto, anda cá Porto!” Assim o batizou o meu pai, sem mais, nem menos. E o animal parecia responder, abanava o rabo e com ar tímido procurava os afagos nas mãos dele. Eu tinha algum receio e curiosidade. Era grande e escuro, mas tinha um ar amistoso. Foi o meu companheiro de muitas aventuras, ditas e desditas, embora a sua boca enorme, com os dentes brancos, fosse sempre, para mim, uma fonte de preocupações...
Aos poucos cresceu e era um belo animal! Possante, destemido, dava coragem a qualquer um. Até a minha mãe dizia que com ele podia atravessar a serra, à noite, sozinha. 
O Tio João da Fonte também tinha um cão possante e nalguns domingos, para combater o tédio e acrescentar alguma adrenalina à sua vida, vinha até nossa casa, para pegar os cães. Falavam do tempo, quem tinha nascido e morrido em Cunhas e por fim 
- Vamos lá comadre? 
A minha mãe ria-se a lembrar-se das lutas de cães, em casa do pai. O meu pai ficava contrariado, não gostava de ver os cães à luta, mas parecia mal, virar as costas a um desafio. Era dar parte de fraco, de medo de perder…
- Tire a coleira de pregos ao seu cão, compadre!- dizia minha mãe.
O meu pai ia soltar o Porto e no largo, em volta da casa dava-se início ao espetáculo: Os cães engalfinhavam-se, quase sem ladrar ou rosnar e tentavam abocanhar o pescoço do outro. 
- Parecem dois homens assim direitos! - dizia minha mãe, entre o divertido e preocupada, com o desfecho.
Os cães mantinham-se de pé, rodopiavam a tentar morder o outro, descobrir o seu ponto fraco, com os olhos em chamas, e por fim, num golpe de maior destreza, um dentava o outro e já não mais o largava até que era preciso ir buscar uns baldes de água para os separar...
Cada um agarrava o seu e o combate estava terminado, entre latidos, saliva, sangue e raiva, ou por uma vitória clara, ou por um empate técnico. Em qualquer dos casos, haveria sempre uma próxima vez.
Eu gostava que o Porto ganhasse, mas sempre me afligia quando via sangue e ficava repartido entre o aplauso da minha mãe e a reprovação de meu pai, que não concordava, achava selvagem esse costume, mas não tinha coragem para dizer não. A minha mãe ria-se, voltava às memórias da casa do pai e dizia:
- Deixa lá Zé, mais buraco menos buraco não faz mal, não queremos a pele para fole de farinha!
O meu pai mostrava o seu descontentamento, “ Ele esfrega-lhe os lábios com piripiri e deita-lhe pólvora moída na comida, para ficar mais nervoso e com mais garra... Isto é bárbaro!”
Assim se iam passando os dias, com o Porto sempre a meu lado, mas naquele dia chorei abundantemente. O meu cão Porto, castrejo, castanho às manchas claras e escuras, alto, garboso e possante, revirava os olhos, espumava da boca e contorcia-se no terreiro, como eu nunca tinha visto.
- Acode Zé! - gritava minha mãe.
O azeite ou sabão. É o veneno. Abram-lhe a boca com um pau. Assim atravessado para não morder a língua e agora deita azeite. Para vomitar. Vomita. Vomita Porto. Mais azeite. Mas assim não, está a escorrer para fora. Segura a cabeça.
O azeite borbulhava ao fundo da boca rósea, ao mesmo tempo que o cão arfava, cada vez mais lentamente e os olhos reviravam-se numa agonia de despedida a lembrar-se das nossas corridas e brincadeiras: Apanha Porto, vai buscar o pau, vai Porto. Anda Porto, não te vás ainda. Quem brincaria comigo? Não Porto. Não fiques frio e amarelo. Porto! Porto, Porto, meu amigo…que me deixas nesta solidão…fria de morrer! Porto! Quem me lamberá as feridas como tu? E como vou dormir debaixo da "canacipe" sem ti? A quem afagarei? Quem me faz companhia enquanto meus pais não chegam? Como posso ir mais longe que o terreiro sem ti, Porto? Portu... meu amigo, meu irmão, não morras… Portu…Poortuu… não vás já, uma última corrida antes de ires... Pooortuuuu…
- Deixa Zé, já não vale a pena. Foi-se! Perdeu-se o cão e perdeu-se o azeite e tão caro que está. Que pena! Com o que gastei com ele dava para alimentar um porco!
O meu pai, com ar resignado, arrastava-o pelas pernas e com a enxada, silenciosamente abria-lhe a cova, no quintal, no canteiro das flores, e só mais tarde recordávamos os melhores momentos da vida do cão e abríamos a porta à saudade.
- E agora, pai?
“Deixa lá, qualquer dia arranjamos outro”!
Outra vez aquele muro alto com tecto escuro, inexpugnável, a circundar-me, a agarrar-me... Tinha de fugir!
Uma parte de mim morreu e outra nasceu com o meu cão Porto!

terça-feira, 24 de setembro de 2019

As aventuras do Manual de Ramil

O filme “O maravilhoso reino da terra” (2017), do Carlos Silveira, com texto do livro Manual de Ramil, foi escolhido para integrar a 17.ª Mostra da Cultura  Portuguesa em Espanha.
https://www.culturaportugal.com/artistas/
Será exibido no âmbito de uma mesa redonda sobre Miguel Torga no dia 12 de Novembro, no Instituto Cervantes em Madrid, às 19 horas, com a presença de Julio Llamazares e de César Antonio 
Molina. 

O programa da Mostra Cultural, pode ser consultado aqui: 
https://www.culturaportugal.com/programa/

O filme “O maravilhoso reino da terra” com legendagem em espanhol, pode ser visto aqui: https://vimeo.com/204606835

Podes adquirir o livro aqui
https://www.amazon.es/…/…/ref=cm_sw_r_fa_apa_i_rxwFDbGDS68PM



quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Os figos na lua





 



Os figos na lua

Um dia estavam todos à mesa e quase no final, o pai disse:
“Pelas minhas contas hoje devia chover” - e sorriu. Aliás sorriram todos, uns mais que outros, pois ouviram-se até gargalhadas da mãe.
- Tás maluco, Zé! Hoje, em agosto com este dia de sol? Falta fazia, lá isso fazia...
“Pois sim, devo ter-me enganado - disse o pai. Devo ter tirado mal as têmporas”.
- As têmporas? O que é isso? –perguntaram todos.
O pai lá explicou que de Santa Luzia ao Natal, assim vai o ano de igual a igual. A cada um desses doze dias, corresponde um mês do ano seguinte. A cada manhã, a primeira quinzena e a cada tarde a segunda quinzena e assim até se chegar à previsão de cada dia do ano. E insistia que devia chover de tarde. Mais riam todos com a previsão tresloucada do pai.
O dia ia passando e ainda antes da merenda já o céu estava todo cheio de nuvens. Na cara do pai ia aumentando o ar vitorioso, em contraste com a mãe que meio desconfiada, não percebia bem o que se estava a passar, mas já olhava para o marido com alguma admiração. Mesmo que não chovesse, a confirmação da previsão do marido, com o céu carregado de nuvens, no inicio de agosto, era obra.
Dali a pouco todos tiveram que fugir para dentro de casa. Chovia que deus a dava.
- É uma bênção, dizia  mãe.
“ Afinal a têmpora estava certa, dizia o pai.
E assim ia ganhando créditos perante a esposa e os filhos.

Já no primeiro dia de agosto o pai dizia, primeiro de agosto, primeiro de inverno.
Ele barafustava perante semelhante ameaça, não diga isso, pai, não diga essas coisas.
Era das piores coisas que lhe podiam dizer, não tanto pela entoação, mas mais pelo significado. O fim do verão representava o regresso à aldeia, ao fim do sol, dos banhos no rio, da serenidade natural da vida, O inverno, pelo contrário, era o regresso ao mundo das trevas, das ameaças, dos castigos, do isolamento, da separação, do frio.
Desde que o pai assim falava, todos os dias perscrutava nas nervuras das folhas das árvores, ou arbustos, algum sinal que indicasse alteração da cor. O amarelo das folhas, e mais tarde, em setembro, toda a variação de amarelos, castanhos e vermelhos, significavam a concretização do dito, ou ameaça do pai, era o inverno que se anunciava.
Não valia a pena empurrar o tempo para trás ou impedir que avançasse. Era uma luta perdida e inexoravelmente, ele percorria-nos a todos, arrastava-nos com ele, não valia a pena insistir. O melhor era mesmo ignorá-lo.
Bastava olhar a alteração progressiva das cores, nas plantas, nos caminhos, até na roupa.
Dum dia pra o outro estava na aldeia em casa dos tios. O verão tinha terminado. Todos se admiravam, tinha crescido, as férias tinham-lhe feito bem e parecia outro.
Ele não via diferença nenhuma, tudo se mantinha igual. Tudo.
Os tios, em conluio com a natureza, esperavam que os figos amadurecessem ao mesmo tempo que ele regressasse à escola. Em outubro, os figos reluziam com o mel a chamar por quem os comesse.
Subia à figueira grande, junto à casa e sobranceira à fonte. Levava numa mão um balde de plástico, o primeiro que se tinha visto por aquelas bandas, e ouvia com um sorriso, o que o tio lhe dizia. Tem cuidado, olha onde pões os pés, não andes na lua, segura-te bem, olha que se cais não há quem te salve!
Ele subia do muro para o tronco, agarrava-se aos ramos e sabia que naquele instante era o herói da história. Eles não podiam subir, não podiam fazer o que ele fazia, subir aquele castelo verde, cheio de figos, olhar o horizonte, que se espraiava desde o Cubão, na serra de Soajo, à serra Amarela. Não podiam ver o que ele via, nem sentir o que ele sentia. Não havia quem o salvasse.
Apanhava os figos, ouvia o tio dar-lhe conselhos de segurança, mas já ia nas nuvens dos desejos, rei daquelas paragens, herói destemido das montanhas a voar com um balde de figos, em direção à lua. E se não voltasse?
Quando regressava de balde meio, sabia que a experiência se ia repetir mais 3 ou quatro vezes. Da próxima vez, havia de voar mesmo e quem sabe, ficar na lua para sempre, ou entrar-lhe pela janela dentro e assustá-la. Ou somente dizer-lhe, queres vir aos figos? Definitivamente, não havia quem o salvasse.
A tia estendia os figos na mesa da sala e mais tarde na varanda da porta rasa. Ali iam secando os que restavam do desejo, a conta gotas.
E tinha a certeza que o olhar deles era de reconhecimento e de dádiva. Tinha feito o que se esperava dele, subir à figueira e apanhar figos.
Havia algo de que os tios não eram capazes e o pai não tinha previsto, apanhar figos na grande figueira e viver na lua.

Oeiras
MRodas

sábado, 13 de janeiro de 2018

A casa, in Manual de Ramil, Rodas, Manuel, Ed. A. 2015



A casa. 

O meu pai era Guarda-Florestal e vivíamos no meio da serra, numa casa com três quartos, um escritório, uma cozinha, duas arrecadações grandes e uma casa de banho. 

O chuveiro era um balde de zinco, com um alçapão no interior e descia através duma roldana presa no teto, para se encher de água morna e, lá no alto, desabava em chuva sobre nós, quando se puxava o guito, uma corrente de metal.
A cozinha era grande e tinha quatro portas: uma de entrada, a seguir a um pequeno pátio de granito, outra para a arrecadação, a terceira para o quarto de meus pais e a última para o corredor de acesso à casa de banho! Havia uma mesa, com duas gavetas, encostada à parede, onde guardávamos os talheres e era lá que fazíamos as refeições. Havia ainda um balcão com pia e lavatório, alguns armários, um fogão a gás e do que eu mais gostava, uma lareira grande, que, quando acesa, perfumava a casa toda, com o fumo acre do pinho, da giesta, da urze, as risadas das pessoas, a tosse de meu pai e os suspiros e lágrimas de minha mãe.
- Porque choras, mãe?
- É do fumo!

Mais tarde, às costas duns homens suados, cobertos de escuro, apareceu um fogão de ferro. Aí crepitavam as achas e fumegavam panelas e tachos. Tinha uma torneira donde saía água quente e um forno, onde às vezes minha mãe assava carne e batatas e cozia broas de milho. No resto do tempo, guardava os tachos.

Os quartos tinham paredes brancas, uma cama de casal, com um crucifixo na parede, uma mesinha de cabeceira de madeira e um guarda-fatos com espelho grande, onde a minha mãe se ria, observando as minhas caretas e momices.

O escritório, com uma janela e uma porta verde para o exterior – em casa todas as portas e janelas eram verdes -, era para meu pai como a sacristia para o padre. Lá escrevia, fazia as listas de nomes, que mandava para a Administração Florestal em Arcos de Valdevez. Somava, subtraía, com uma caligrafia muito regular e arredondada, as parcelas muito verticais, sem um milímetro de desvio, enquanto a caneta Lamy deslizava como numa dança, em diálogo preciso e sincronizado, com a mão e os olhos que tudo controlavam: a forma, a pressão, a velocidade, a linearidade...
Mais tarde apareceu uma máquina de escrever com uma capa alaranjada, a imitar a rugosidade e as saliências do couro. Na secretária escolheu logo o melhor espaço: o do centro. Era impossível entrar no escritório e não ver a máquina. Aí, ele batia com os dedos nas teclas, que por estímulo preciso e ponderado se transcreviam em letras, frases, parágrafos, páginas e páginas, relatórios, exposições, artigos de jornal e...cartas de amor.
Eu ficava de longe a espiá-los e depois encostava-me sorrateiramente a ele, a ouvir o ronronar daquela máquina que tudo parecia saber e ao mínimo toque, zás, as teclas, primeiro como moscas voando, depois num enxame, deixavam o refúgio e num voo picado, aterravam ao de leve na folha de papel em branco, deixando lá impressas as asas, ou as pegadas de tinta! Mas a máquina dava sentido ao que ele escrevia e mais tarde nos lia na cozinha e posteriormente aparecia numa coluna no Jornal A Vanguarda. Semana após semana, durante vinte e tal anos assim fez. Primeiro em Ramil, depois em Germil, lá no alto da serra Amarela. Na Junqueira esteve calado durante sete anos – todos os que lá esteve -, mas ao voltar a Ramil, ganhou novo ânimo e só se calou quando se reformou e foi para Paradela.
.....

Havia ainda um sótão escuro e misterioso e as gateiras sob a casa por onde entrava o ar e se escondia um coelho doméstico, mas que resolvera viver em liberdade e ficar a ver o que acontecia... até que um dia um cão amarelo e vindo, sabe-se lá donde, comeu-o, para tristeza de meus pais e desespero meu.
Circundando a casa, havia um grande largo, onde, quando me deixavam, corria de manhã à noite. A cozinha era o coração da casa, mas o terreiro para além de ser sala de estar e de visitas, era verdadeiramente o pulmão do lar. Nada acontecia que não se soubesse primeiro no largo e nada acontecia no largo que não se soubesse primeiro em casa.
Do lado de baixo do terreiro (Sul) e num patamar inferior havia o quintal, que se espraiava colina abaixo, num rosário de parcelas de terreno. Descia-se através dumas escadas íngremes até uma cancela de ferro. De lá víamos os montes do Murço, parte da serra Amarela e ao longe Soajo, como um presépio de luzinhas rutilantes, a serra do Gião e um rosário de serras e montes até ao mar, numa névoa doce, que nunca descobri, se se formava nos meus olhos ou afagava mesmo os cumes dos montes e às vezes descia aos vales e rios.
Do lado Este, a mais ou menos 40 metros, a ribeira, o cortelho dos porcos, o caminho para Soajo, Assureira e Adrão, esta última a uma boa hora a pé, pela serra, entre matos e giestas. Foi neste caminho, junto ao poste com fio do telefone (pau do fio, como lhe chamávamos), que o meu pai, de cabeça perdida perante a recusa persistente do nosso burro “Cadete” em ir a Soajo trazer duas garrafas de gás, disse ao Tio Chico da Florinda, de Cunhas :
- Vá lá a casa e diga à minha mulher que lhe dê a pistola, que eu mato este cabrão!

O tio Chico, com a cara picada das bexigas e ar maroto, ensaiou umas passadas com as pernas arqueadas e as costas gingonas com saudades do jogador de boxe nas esquinas de Lisboa. Por lá tinha andado a ganhar o sustento, tendo agora, no último terço da sua vida, regressado ao seu eido, a Cunhas.
O Cadete, depois de ouvir este bafo desesperado, bateu as orelhas e começou a andar, disposto a ir onde fosse preciso!
Grande burro, o Cadete, ah!

Do lado Norte, havia o cortelho dos pitos, onde as galinhas chocavam os pintos, à sombra do caniço de varas de giestas entrelaçadas numa malha vegetal, para guardar as poucas espigas, que o quintal produzia. Depois o cortelho dos cães à esquerda, a seguir, o das ovelhas à direita, a corte das vacas, galinheiro e o forno ao fundo, e lá no alto, sobre a esquerda, o dos burros.
À direita, ficava o caminho para a Várzea e Paradela, sempre a subir até à Fonte Fiães, Lapa dos Defuntos[1] e mais à frente, a Portela do Galo. Era neste cortelho que a burrinha branca do meu avô Marujo vinha parar, quando o peso dos cinco netos era excessivo. Incapazes de a fazer parar, o primeiro fazia força com as mãos na padieira da porta e os detrás iam caindo, uns por cima dos outros, às fatias de risadas, enquanto ela se refugiava lá dentro, resguardada dos netos, pelo escuro das pedras.
A Oeste ficava o tanque, onde minha mãe lavava e estendia a roupa e nós nos refrescávamos no verão, bifurcando-se o caminho de terra e pedras, para a mina e contornando o quintal, à direita, para Soajo.
A água fresca era extraída duma mina, mesmo do interior da serra. Brotava dela mais clara e transparente que todas as águas do mundo.

Andou lá um homem a trabalhar dias sem fim e, no final dos dias, vinha apresentar contas a meu pai e requisitar mais carbureto para o dia seguinte. Despejava as sobras do carbureto no chão e eu cobri-as com terra e água, chegava-lhe fogo e a terra ardia. Tal como as teclas da máquina de escrever, também havia outros segredos a descobrir...

....

Na parte de trás da casa, virada a sul, existia outro pátio com três degraus de granito e a porta do escritório. Esta só se abria quando vinha o engenheiro, ou o mestre fazerem os pagamentos aos trabalhadores, ou em alturas cerimoniosas, como por exemplo a visita do padre, pela Páscoa!

A casa era térrea e de granito, com gateiras para a entrada de ar. Tinha quatro portas exteriores, pintadas de verde e seis janelas, também da mesma cor. Era caiada de branco e as telhas vermelhas formavam um conjunto que sobressaía, ao longe, do verde das árvores, do castanho das plantas rasteiras e do granito cinzento.
Era uma pincelada de nada, no meio do verde e do granito.
Em volta da casa, o meu pai mandou pôr os canteiros com lírios que todas as primaveras se abriam em cânticos de azul, amarelo e branco.
 Foi ele que escolheu aquele sítio e aquela organização: a casa, o quintal, a mina, o poço, a casa do forno e os cortelhos.

Um dia veio com dois homens e, quando chegou aos montes de Fonte Fiães, subiu ao alto do Muranho, um promontório rochoso, qual capitão sem mar! A vista estendia-se dentro dele até aos confins da serra Amarela e da serra D’Arga. Mas como fazer uma casa neste deserto de gente? De certeza que sorriu e parou a olhar. Nem muito longe das pessoas, nem muito longe da serra e... a água por perto.
À esquerda, o território já estava ocupado com bouças e tapadas. Outras colónias e outras benfeitorias na serra. À direita era muito íngreme. Lá no alto, mesmo pertinho do céu, as imagens foram passando na sua mente, na ponta do indicador a apontar: aquele morro protegeria a casa dos ventos norte e outras intempéries.
Ali ficaria a casa com um terreiro em volta. As crianças brincariam, os trabalhadores passariam por lá e a minha mãe correria da casa para o poço, deste para o quintal, mais em baixo, onde a terra parecia fértil, e do quintal para casa. O resto apareceria mais tarde. Tinha tempo até ao sétimo dia.
Logo apareceram os trabalhadores – não sei vindos donde - a revolver a terra, alinhar as pedras, a cavar os alicerces, erguer as paredes, rasgar as janelas e portas, sobrepor o telhado e tudo o mais que a uma casa diz respeito.
Todos os dias de manhã ele vinha de Paradela e à tarde voltava. Uma hora e meia para cada lado. A minha mãe perguntava:

- Falta muito, Zé ?
Não, a obra ia bem e assim se fez durante um ano e seis meses. Após esta data, a nossa família mudou-se duma casa igual, em Paradela, onde nasci, para esta. Assim, foi mais fácil deambularmos pela casa e arrumar a mobília. A mim, só me custou orientar no exterior, porque lá dentro, o frio e a solidão eram iguais...







[1] 1 A  Lapa dos Defuntos  é  uma  gruta  formada  por  dois  penedos  e  uma  lage,  que fica no caminho entre Ramil e a Várzea. Nós dizíamos que no tempo em  que os vivos traziam os mortos da Várzea para serem enterrados em Soajo,  as pessoas descansavam ali um pouco, antes de iniciar nova caminhada até  ao  rio  e  depois  até  ao  cemitério,  em  Soajo.  Sempre  que    passava,  com  tanto silêncio e impressionado pelas histórias que tinha ouvido, sentia a pele  a  eriçar-se  e  olhava  com  medo  para  dentro,  à  espera  que  algum  morto  viesse, sabia-se lá donde!

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Manual de Ramil terra e saudade, em Oeiras


Para os amigos que não puderam estar presentes em Oeiras, deixo aqui um video, (recolhido por Vitor São Marcos e editado por mim). Foi uma tarde inesquecível!
Obrigado a todos os que participaram, e tornaram esta festa possível: Dias Costa, Lurdes Torres, Mª Emília, Carlos Morgado, Rancho Foolclórico OS MINHOTOS de Oeiras e Nuno Soares. A todos, muito obrigado!

Manuel Rodas








https://www.youtube.com/watch?v=dsmdTTl5Jqo

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Histórias de Sempre



Histórias de SEMPRE!


 
Manuel Preto Rodas, o Marujo, é já pai de dois filhos da primeira esposa e após o falecimento desta, casa com Ana de Sousa, com a qual tem dois filhos, José e António. O primeiro filho deste segundo casamento, José de Sousa Rodas nasce a 18 de abril de 1918.
Dez dias depois levanta-se cedo e com mais três vizinhos, deixam o lugar da Várzea, dizem um adeus até já ao rio de Castro Laboreiro, atravessam os contrafortes da Serra de Soajo e após quatro horas de viagem e uma pausa para uma bucha, chegam a Cabana Maior onde depositam os seus votos nas urnas respetivas, elegendo deste modo os 155 Deputados  para a Câmara dos deputados e  49 Senadores para o Senado. Dobram o terceiro boletim de voto e participam na única votação direta durante a primeira República, para um Presidente da República Portuguesa.
Durante as oito horas de viagem a pé, quatro na ida e outras quatro no regresso, têm tempo para falar de tudo que os preocupa e os anima, numa terra sem estrada, sem eletricidade, sem médico, dependentes da resistência de cada um e da solidariedade de todos.
Quando chegam a suas casas, já noite, trazem na cabeça a confirmação dos desejos duma vida melhor e a certeza que o poder emana do povo e não do Rei, e uma forte convicção na alma: é preciso que o povo queira assumir esse poder e participe na construção dum mundo novo. Como? Através das letras e da instrução!
Manuel Preto Rodas organiza, ao fim do dia e aos domingos, na sua varanda virada para o caminho público, sessões de aprender a ler e a escrever, para quem o desejar.

Na mesma data, 1918, o Dr. Bernardino Machado, Presidente da Republica Portuguesa inaugura em Benfica, Lisboa, a Escola Normal Primária de Lisboa.

Após algum tempo, Manuel Preto Rodas reconhece para si próprio que a tarefa é demasiada e o resultado é pouco, pois os alunos ficam-se pelo nome próprio e pouco mais. Constatada a indiferença do poder municipal e do Estado, perante os sucessivos apelos para a construção duma escola primária, fala com os vizinhos e decidem eles próprios construir a escola, na esperança que o Estado haveria de lá colocar uma professora. Aos domingos, após o almoço é vê-los a abrir os caboucos, cortar a pedra emparelhá-la e erguer uma casa igual às suas, uma porta e duas janelas. A alegria e a certeza do caminho a percorrer suaviza o esforço e atenua o cansaço. O Estado após muita insistência acaba por colocar uma regente escolar.
Trinta anos depois, o filho, José de Sousa Rodas, Guarda Florestal, é o correspondente do jornal regional de Arcos de Valdevez, A Vanguarda, desde 1948 a 1972. Através das suas crónicas quinzenais, informa, divulga e esclarece os assinantes, emigrantes espalhados por todas as regiões do mundo, contribuindo para a sua ligação ao torrão natal, à ascentral cultura serrana. Continua a querer um mundo melhor e um Soajo grande!
Este jornal é em muitas casas o único material impresso. Da compilação dessas crónicas, Manuel Rodas fez a sua edição e publicação (2014) com o nome Por Soajo, por ser dessa forma que começavam as suas crónicas.
80 anos depois das eleições republicanas de abril de 1918, 80 anos depois do nascimento do seu filho, José, e das primeiras lições de ler e escrever na sua varanda, um neto de Manuel Preto Rodas, o Marujo, é Professor na Escola Superior de Educação de Lisboa, no mesmo edifício inaugurado por Bernardim Machado, em Benfica, em 1918. Continua a querer um mundo melhor, mais fraterno e solidário... e deseja contribuir para a preservação da identidade cultural soajeira.

97 anos depois, 2015, pela mão do mesmo neto e em edição de autor, é publicado o livro Manual de Ramil, terra e saudade, e apresentado no dia 9 abril 2016, às 16 horas na Biblioteca Municipal de Oeiras!


 José Maria Dias Costa foi o apresentador, um arcoense com sangue e alma soajeira!




  Os amigos acorreram com entusiasmo e interesse! 


 
A Inês participou lendo partes da obra!



 José Maria Dias Costa entusiasmou a assistência levando-a ao rubro e à emoção!





 O Vice-Presidente da Camara Municipal de Oeiras, Carlos Morgado, esteve presente, numa manifestação pública de apoio à cultura e à contribuição dos munícipes.
O Luís fez a animação musical com acompanhamento à viola e belas canções de sabor minhoto!


 A Presidente do Rotary Club de Oeiras, Lurdes Torres e a Presidente da Universidade Sénior de Oeiras, Maria Emília participaram nesta apresentação e na sua dinamização!



 O Nelson, A Diana e a Inês leram partes do texto, tornando mais real e emotiva a sua representação!




Os convidados mais novos, o Simão e a Mariana  ofereceram as flores!



 O Rancho Folclórico OS MINHOTOS, da Ribeira da Lage, Oeiras quis estar presente e dar apoio a esta iniciativa.



A todos, 
o meu
MUITO OBRIGADO!