A casa.
O
meu pai era Guarda-Florestal e vivíamos no meio da serra, numa casa com três
quartos, um escritório, uma cozinha, duas arrecadações grandes e uma casa de
banho.
O chuveiro era um balde de zinco, com um alçapão no interior e descia
através duma roldana presa no teto, para se encher de água morna e, lá no alto,
desabava em chuva sobre nós, quando se puxava o guito, uma corrente de metal.
A cozinha era grande e tinha quatro portas:
uma de entrada, a seguir a um pequeno pátio de granito, outra para a
arrecadação, a terceira para o quarto de meus pais e a última para o corredor
de acesso à casa de banho! Havia uma mesa, com duas gavetas, encostada à
parede, onde guardávamos os talheres e era lá que fazíamos as refeições. Havia
ainda um balcão com pia e lavatório, alguns armários, um fogão a gás e do que
eu mais gostava, uma lareira grande, que, quando acesa, perfumava a casa toda,
com o fumo acre do pinho, da giesta, da urze, as risadas das pessoas, a tosse
de meu pai e os suspiros e lágrimas de minha mãe.
- Porque choras, mãe?
- É do fumo!
Mais tarde, às costas duns homens suados,
cobertos de escuro, apareceu um fogão de ferro. Aí crepitavam as achas e
fumegavam panelas e tachos. Tinha uma torneira donde saía água quente e um
forno, onde às vezes minha mãe assava carne e batatas e cozia broas de milho.
No resto do tempo, guardava os tachos.
Os quartos tinham paredes brancas, uma cama
de casal, com um crucifixo na parede, uma mesinha de cabeceira de madeira e um
guarda-fatos com espelho grande, onde a minha mãe se ria, observando as minhas
caretas e momices.
O escritório, com uma janela e uma porta
verde para o exterior – em casa todas as portas e janelas eram verdes -, era
para meu pai como a sacristia para o padre. Lá escrevia, fazia as listas de
nomes, que mandava para a Administração Florestal em Arcos de Valdevez. Somava,
subtraía, com uma caligrafia muito regular e arredondada, as parcelas muito
verticais, sem um milímetro de desvio, enquanto a caneta Lamy deslizava como
numa dança, em diálogo preciso e sincronizado, com a mão e os olhos que tudo
controlavam: a forma, a pressão, a velocidade, a linearidade...
Mais tarde apareceu uma máquina de escrever
com uma capa alaranjada, a imitar a rugosidade e as saliências do couro. Na
secretária escolheu logo o melhor espaço: o do centro. Era impossível entrar no
escritório e não ver a máquina. Aí, ele batia com os dedos nas teclas, que por
estímulo preciso e ponderado se transcreviam em letras, frases, parágrafos,
páginas e páginas, relatórios, exposições, artigos de jornal e...cartas de
amor.
Eu ficava de longe a espiá-los e depois
encostava-me sorrateiramente a ele, a ouvir o ronronar daquela máquina que tudo
parecia saber e ao mínimo toque, zás, as teclas, primeiro como moscas voando,
depois num enxame, deixavam o refúgio e num voo picado, aterravam ao de leve na
folha de papel em branco, deixando lá impressas as asas, ou as pegadas de
tinta! Mas a máquina dava sentido ao que ele escrevia e mais tarde nos lia na
cozinha e posteriormente aparecia numa coluna no Jornal A Vanguarda. Semana após semana, durante vinte e
tal anos assim fez. Primeiro em Ramil, depois em Germil, lá no alto da serra
Amarela. Na Junqueira esteve calado durante sete anos – todos os que lá esteve
-, mas ao voltar a Ramil, ganhou novo ânimo e só se calou quando se reformou e
foi para Paradela.
.....
Havia ainda um sótão escuro e misterioso e as
gateiras sob a casa por onde entrava o ar e se escondia um coelho doméstico,
mas que resolvera viver em liberdade e ficar a ver o que acontecia... até que
um dia um cão amarelo e vindo, sabe-se lá donde, comeu-o, para tristeza de meus
pais e desespero meu.
Circundando a casa, havia um grande largo,
onde, quando me deixavam, corria de manhã à noite. A cozinha era o coração da
casa, mas o terreiro para além de ser sala de estar e de visitas, era
verdadeiramente o pulmão do lar. Nada acontecia que não se soubesse primeiro no
largo e nada acontecia no largo que não se soubesse primeiro em casa.
Do lado de baixo do terreiro (Sul) e num
patamar inferior havia o quintal, que se espraiava colina abaixo, num rosário
de parcelas de terreno. Descia-se através dumas escadas íngremes até uma
cancela de ferro. De lá víamos os montes do Murço, parte da serra Amarela e ao
longe Soajo, como um presépio de luzinhas rutilantes, a serra do Gião e um
rosário de serras e montes até ao mar, numa névoa doce, que nunca descobri, se
se formava nos meus olhos ou afagava mesmo os cumes dos montes e às vezes
descia aos vales e rios.
Do lado Este, a mais ou menos 40 metros, a
ribeira, o cortelho dos porcos, o caminho para Soajo, Assureira e Adrão, esta
última a uma boa hora a pé, pela serra, entre matos e giestas. Foi neste
caminho, junto ao poste com fio do telefone (pau do fio, como lhe chamávamos),
que o meu pai, de cabeça perdida perante a recusa persistente do nosso burro
“Cadete” em ir a Soajo trazer duas garrafas de gás, disse ao Tio Chico da
Florinda, de Cunhas :
- Vá lá a casa e diga à minha mulher que lhe
dê a pistola, que eu mato este cabrão!
O tio Chico, com a cara picada das bexigas e
ar maroto, ensaiou umas passadas com as pernas arqueadas e as costas gingonas
com saudades do jogador de boxe nas esquinas de Lisboa. Por lá tinha andado a
ganhar o sustento, tendo agora, no último terço da sua vida, regressado ao seu
eido, a Cunhas.
O Cadete, depois de ouvir este bafo
desesperado, bateu as orelhas e começou a andar, disposto a ir onde fosse
preciso!
Grande burro, o Cadete, ah!
Do lado Norte, havia o cortelho dos pitos,
onde as galinhas chocavam os pintos, à sombra do caniço de varas de giestas
entrelaçadas numa malha vegetal, para guardar as poucas espigas, que o quintal
produzia. Depois o cortelho dos cães à esquerda, a seguir, o das ovelhas à
direita, a corte das vacas, galinheiro e o forno ao fundo, e lá no alto, sobre
a esquerda, o dos burros.
À direita, ficava o caminho para a Várzea e
Paradela, sempre a subir até à Fonte Fiães, Lapa dos Defuntos e
mais à frente, a Portela do Galo. Era neste cortelho que a burrinha branca do
meu avô Marujo vinha parar, quando o peso dos cinco netos era excessivo.
Incapazes de a fazer parar, o primeiro fazia força com as mãos na padieira da
porta e os detrás iam caindo, uns por cima dos outros, às fatias de risadas,
enquanto ela se refugiava lá dentro, resguardada dos netos, pelo escuro das
pedras.
A Oeste ficava o tanque, onde minha mãe
lavava e estendia a roupa e nós nos refrescávamos no verão, bifurcando-se o
caminho de terra e pedras, para a mina e contornando o quintal, à direita, para
Soajo.
A água fresca era extraída duma mina, mesmo
do interior da serra. Brotava dela mais clara e transparente que todas as águas
do mundo.
Andou lá um homem a trabalhar dias sem fim e,
no final dos dias, vinha apresentar contas a meu pai e requisitar mais
carbureto para o dia seguinte. Despejava as sobras do carbureto no chão e eu
cobri-as com terra e água, chegava-lhe fogo e a terra ardia. Tal como as teclas
da máquina de escrever, também havia outros segredos a descobrir...
....
Na parte de trás da casa, virada a sul,
existia outro pátio com três degraus de granito e a porta do escritório. Esta
só se abria quando vinha o engenheiro, ou o mestre fazerem os pagamentos aos trabalhadores, ou
em alturas cerimoniosas, como por exemplo a visita do padre, pela Páscoa!
A casa era térrea e de granito, com gateiras para
a entrada de ar. Tinha quatro portas exteriores, pintadas de verde e seis
janelas, também da mesma cor. Era caiada de branco e as telhas vermelhas
formavam um conjunto que sobressaía, ao longe, do verde das árvores, do
castanho das plantas rasteiras e do granito cinzento.
Era uma pincelada de
nada, no meio do verde e do granito.
Em volta da casa, o meu pai mandou pôr os
canteiros com lírios que todas as primaveras se abriam em cânticos de azul,
amarelo e branco.
Foi ele que escolheu aquele sítio e aquela organização: a
casa, o quintal, a mina, o poço, a casa do forno e os cortelhos.
Um dia veio com dois homens e, quando chegou
aos montes de Fonte Fiães, subiu ao alto do Muranho, um promontório rochoso, qual capitão sem mar! A
vista estendia-se dentro dele até aos confins da serra Amarela e da serra
D’Arga. Mas como fazer uma casa neste deserto de gente? De certeza que sorriu e
parou a olhar. Nem muito longe das pessoas, nem muito longe da serra e... a
água por perto.
À esquerda, o território já estava ocupado
com bouças e tapadas. Outras colónias e outras benfeitorias na serra. À direita
era muito íngreme. Lá no alto, mesmo pertinho do céu, as imagens foram passando
na sua mente, na ponta do indicador a apontar: aquele morro protegeria a casa
dos ventos norte e outras intempéries.
Ali ficaria a casa com um terreiro em volta.
As crianças brincariam, os trabalhadores passariam por lá e a minha mãe
correria da casa para o poço, deste para o quintal, mais em baixo, onde a terra
parecia fértil, e do quintal para casa. O resto apareceria mais tarde. Tinha
tempo até ao sétimo dia.
Logo apareceram os trabalhadores – não sei
vindos donde - a revolver a terra, alinhar as pedras, a cavar os alicerces,
erguer as paredes, rasgar as janelas e portas, sobrepor o telhado e tudo o mais
que a uma casa diz respeito.
Todos os dias de manhã ele vinha de Paradela
e à tarde voltava. Uma hora e meia para cada lado. A minha mãe perguntava:
- Falta muito, Zé ?
Não, a obra ia bem e assim se fez durante um
ano e seis meses. Após esta data, a nossa família mudou-se duma casa igual, em
Paradela, onde nasci, para esta. Assim, foi mais fácil deambularmos pela casa e
arrumar a mobília. A mim, só me custou orientar no exterior, porque lá dentro,
o frio e a solidão eram iguais...