Os figos na lua
Um dia estavam todos à mesa e quase no final, o pai disse:
“Pelas minhas contas hoje devia chover” - e sorriu. Aliás sorriram
todos, uns mais que outros, pois ouviram-se até gargalhadas da mãe.
- Tás maluco, Zé! Hoje, em agosto com este dia de sol? Falta fazia, lá
isso fazia...
“Pois sim, devo ter-me enganado - disse o pai. Devo ter tirado mal as
têmporas”.
- As têmporas? O que é isso? –perguntaram todos.
O pai lá explicou que de Santa Luzia ao Natal, assim vai o ano de igual
a igual. A cada um desses doze dias, corresponde um mês do ano seguinte. A cada
manhã, a primeira quinzena e a cada tarde a segunda quinzena e assim até se
chegar à previsão de cada dia do ano. E insistia que devia chover de tarde.
Mais riam todos com a previsão tresloucada do pai.
O dia ia passando e ainda antes da merenda já o céu estava todo cheio
de nuvens. Na cara do pai ia aumentando o ar vitorioso, em contraste com a mãe
que meio desconfiada, não percebia bem o que se estava a passar, mas já olhava
para o marido com alguma admiração. Mesmo que não chovesse, a confirmação da
previsão do marido, com o céu carregado
de nuvens, no inicio de agosto, era obra.
Dali a pouco todos tiveram que fugir para dentro de casa. Chovia que
deus a dava.
- É uma bênção, dizia mãe.
“ Afinal a têmpora estava certa, dizia o pai.
E assim ia ganhando créditos perante a esposa e os filhos.
Já no primeiro dia de agosto o pai dizia, primeiro de agosto, primeiro
de inverno.
Ele barafustava perante semelhante ameaça, não diga isso, pai, não diga
essas coisas.
Era das piores coisas que lhe podiam dizer, não tanto pela entoação,
mas mais pelo significado. O fim do verão representava o regresso à aldeia, ao
fim do sol, dos banhos no rio, da serenidade natural da vida, O inverno, pelo
contrário, era o regresso ao mundo das trevas, das ameaças, dos castigos, do
isolamento, da separação, do frio.
Desde que o pai assim falava, todos os dias perscrutava nas nervuras
das folhas das árvores, ou arbustos, algum sinal que indicasse alteração da
cor. O amarelo das folhas, e mais tarde, em setembro, toda a variação de
amarelos, castanhos e vermelhos, significavam a concretização do dito, ou
ameaça do pai, era o inverno que se anunciava.
Não valia a pena empurrar o tempo para trás ou impedir que avançasse.
Era uma luta perdida e inexoravelmente, ele percorria-nos a todos,
arrastava-nos com ele, não valia a pena insistir. O melhor era mesmo ignorá-lo.
Bastava olhar a alteração progressiva das cores, nas plantas, nos
caminhos, até na roupa.
Dum dia pra o outro estava na aldeia em casa dos tios. O verão tinha
terminado. Todos se admiravam, tinha crescido, as férias tinham-lhe feito bem e
parecia outro.
Ele não via diferença nenhuma, tudo se mantinha igual. Tudo.
Os tios, em conluio com a natureza, esperavam que os figos
amadurecessem ao mesmo tempo que ele regressasse à escola. Em outubro, os figos
reluziam com o mel a chamar por quem os comesse.
Subia à figueira grande, junto à casa e sobranceira à fonte. Levava
numa mão um balde de plástico, o primeiro que se tinha visto por aquelas
bandas, e ouvia com um sorriso, o que o tio lhe dizia. Tem cuidado, olha onde
pões os pés, não andes na lua, segura-te bem, olha que se cais não há quem te
salve!
Ele subia do muro para o tronco, agarrava-se aos ramos e sabia que
naquele instante era o herói da história. Eles não podiam subir, não podiam
fazer o que ele fazia, subir aquele castelo verde, cheio de figos, olhar o
horizonte, que se espraiava desde o Cubão, na serra de Soajo, à serra Amarela. Não
podiam ver o que ele via, nem sentir o que ele sentia. Não havia quem o
salvasse.
Apanhava os figos, ouvia o tio dar-lhe conselhos de segurança, mas já
ia nas nuvens dos desejos, rei daquelas paragens, herói destemido das montanhas
a voar com um balde de figos, em direção à lua. E se não voltasse?
Quando regressava de balde meio, sabia que a experiência se ia repetir
mais 3 ou quatro vezes. Da próxima vez, havia de voar mesmo e quem sabe, ficar
na lua para sempre, ou entrar-lhe pela janela dentro e assustá-la. Ou somente
dizer-lhe, queres vir aos figos? Definitivamente, não havia quem o salvasse.
A tia estendia os figos na mesa da sala e mais tarde na varanda da porta
rasa. Ali iam secando os que restavam do desejo, a conta gotas.
E tinha a certeza que o olhar deles era de reconhecimento e de dádiva.
Tinha feito o que se esperava dele, subir à figueira e apanhar figos.
Havia algo de que os tios não eram capazes e o pai não tinha previsto, apanhar
figos na grande figueira e viver na lua.
Oeiras
MRodas
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