Manuel Pereira estava há 12 meses na Flandres. A
vida na front, nas toupeiras ou nas trinchas, era um imprevisto
diário, ou bombas, tiros, frio e terra ou a mesma coisa mas por ordem inversa. Era
de ir aos arames!
Feito prisioneiro numa emboscada pelos alemães, na Avenida Afonso Costa, tinha fugido e ao
fim de vários dias a deambular pelas veredas e margens do Lys, foi parar ao Batalhão de Infantaria 23, onde
aguardava ser recambiado para a 4ª Brigada, Batalhão Inf. n.º 8, a que pertencia.
Os boches
não eram como os lãzudos, ou como os bifes, eram pontuais. Disparavam a mesma
hora e paravam o ataque na hora certa. Intercalavam com bombas de gás e tiros esporádicos.
Dormitava-se quando se podia e podia-se muito quando
se dormia.
Ao seu lado esquerdo dormia João Augusto Ferreira
de Almeida, solteiro, filho de João
Ferreira de Almeida e de Angelina Augusta, natural da Foz do Douro. Para trás tinha deixado um emprego na casa de
um cidadão alemão, que vivia na zona da Foz do Douro.
Ao seu lado direito dormitava António Rei.
Ambos tinham embarcado para a Flandres,
a 16 de Março de 1917 e chegado a Brest,
França, a 21 de Março de 1917.
Era nas poucas horas de pausa, cedidas pelo
alferes e pelos alemães, que cada um
discorria sobre a vida e a saudade das suas terras.
Na recoca, Ferreira de Almeida falava do
pai e da mãe o suficiente para se perceber que o pai tinha uma ou duas faltas, isto
é, dependia dos dias, mas na generalidade, era meio doido.
Naquela noite Manuel Pereira pensava no vale
do Vez, enquanto observava no céu escuro uma salsicha. Fechou os olhos, uma mão pousada no cantil, a outra na Luísa e deixou a alma voar sobre os
campos verdes da sua terra até mergulhar nas águas ternas e cintilantes do rio
Vez e...nos olhos negros de Gracinda!
Tinha saudades de casa.
Uma sardinha assada e uma malguinha de tinto
com uma fatia de pão era o que ele mais desejava e, só depois, ver a família e namorada.
Era uma fraqueza que lhe subia do estômago ao coração, mas faltava-lhe a coragem
para o reconhecer. Para isso teria de desertar e essa era uma fronteira ainda
mais perigosa que a guerra!
Fechava os olhos e deixava-se estar á espera
do próximo ataque. Eu vou-me safar, ai isso é que vou, rezava baixinho,
invocava a Srªa da Peneda, S. Bentinho, de mistura com a imagem das festas e
foguetes.
Ao seu lado, Ferreira de Almeida contava que
estava cheio daquela maldita guerra e apetecia-lhe fugir. Fosse para onde
fosse, mas tinha de fugir. Queria saber o caminho para os boches, até já tinha oferecido dinheiro a um camarada para que lhe
fornecesse essa informação. Apontava para dois mapas, dobrados no bolso, e
dizia que ia mostrar aos alemães as posições portuguesas. Deste modo, eles iriam
tratá-lo bem. Acolhê-lo-iam e quem sabe lhe dessem emprego lá atrás das linhas.
Já tinha trabalhado com um alemão no Porto e dava-se bem. Eram ambos exigentes:
o alemão mandava e ele cumpria, sem precisar de pensar muito. Tudo normal. A
pena de sessenta dias de prisão a que fora condenado é que ele não ia cumprir.
Tivessem juízo. 60 dias a um soldado que sempre cumprira as ordens e apenas
naquele dia tinha cometido um pequeno deslize? Nunca! O chauffeur 502 tinha-se
ausentado sem autorização, por 24 horas, quando estava colocado na secção automóvel, encarregue do transporte de água
para as tropas do CEP.
A pena
tinha sido a incorporação na 1.ª Companhia do Regimento de Infantaria 23,
colocada na linha da frente e em risco de ataques do inimigo. Era igual a uma
condenação à morte. Não, ele não queria morrer e muito menos ali, de barriga
esventrada e as tripas cheias de moscas, morto por um boche qualquer! Ele tinha um plano diferente...
Manuel
Pereira nem queria acreditar. O homem estava a alucinar. Estava doido. Devia
ser o efeito dos gases e daquela maldita guerra. Mas mesmo assim não se mexeu,
deixou-se ficar a ouvir o companheiro ex-chaufer, no trilho entre a inquietação
e o cansaço, o dever e a deserção.
Soube no dia seguinte, a 30 de Julho, que António Rei tinha denunciado o colega, ao capitão
Mousinho de Albuquerque, mas
manteve-se calado. Fingiu não saber de nada. Estava de passagem à espera do seu
pelotão e de passagem haveria de continuar, até chegar às margens do seu
querido Vez.
O
tempo passara mais lentamente que desejava. Foi com espanto que soube da
sentença: o Ferreira de Almeida foi
condenado à morte, por traição à pátria.
Não
queria acreditar. Então não tinham visto que aquilo era um desabafo de quem se
sente perdido e não sabe porque está ali, naquela guerra, maior que qualquer
outra injustiça!
Ele
também não sabia muito bem e nem por isso seria justo ser fuzilado.
O pelotão de fuzilamento,
formado por quatro soldados, quatro cabos e quatro sargentos, fora incumbido,
naquela madrugada de 16 de Setembro de 1917, de cumprir a sentença proferida
dias antes pelo Tribunal de Guerra. Todos eram do Batalhão de Infantaria
nº 14, ao qual João de Almeida pertencera antes de ir para a unidade de
automóveis, e, convocados de véspera, tinham sido escolhidos entre os menos
impressionáveis e recebido conselhos sobre a forma de proceder.
Às 6,30 horas da manhã o capitão vem ter com Manuel
Pereira e diz-lhe, Prepara-te. Falta um soldado para o pelotão. Conto contigo.
O que tens a fazer é seguir os outros e fazeres o que eles fazem. Estás pronto?
Vamos embora!
Manuel Pereira sabia que se queria voltar a Pugido
não podia contestar as ordens que lhe davam.
Faltavam
cerca de 15 minutos para as oito da manhã. Por isso, os lábios mexeram-se num arraite imperceptível.
Manuel
Pereira reconhece Ferreira de Almeida. Este
enverga o fardamento de chauffeur, dólman e calção à chantilly. Acompanha-o um
capelão militar. Uma espécie de terror no seu olhar triste, espalha uma
angústia pungente em seu redor.
As
armas estão apontadas e Manuel Pereira treme pela primeira vez na sua vida. A
vista fica-lhe turva e na cabeça tocam os sinos dobrados da torre de Gondoriz, de
S. Tomé, da Lapa e do Espírito Santo. Todos duma vez só.
Que
vais fazer, Manuel Pereira? Que vais fazer tu? Colaboras nesta desgraça ou
manténs-te silencioso e ficas impune perante a tua alma? S. Bento e Nossa
Senhora da Guia me ajudem, que isto não é guerra nenhuma, isto é mas é o
inferno! Agora já é muito tarde para o cavanço!
Das
doze armas que compunham o pelotão de execução, apenas onze dispararam. Apenas
se ouviriam onze balázios, se alguém
se desse ao trabalho de os contar. Se alguém o fez também o não contou a
ninguém.
Na
cabeça de Manuel Pereira ficou registado uma salva contínua sem parar, tempo
infinito, num cemitério de guerra, próximo
do lugar do suplício, do lado de lá da Estrada de Bacquerot, num campo de
cultura, cercado de arame farpado, vendo descer à cova o cadáver sangrento
daquele que a justiça condenara a morrer sob a infamante acusação de traição à
Pátria.
Ouvira comentar que fora o primeiro (e único, dizemos nós)
fuzilamento consumado entre as tropas portuguesas, em França. Mesmo
à noite, ainda os tiros ecoavam na sua cabeça, sem um grito de condenado.
Apenas dizia baixinho para si próprio: o homem morre, para afirmar o poder
absoluto de uns tantos, sobre a vida de cada um. Para servir de exemplo e
vivermos assustados. Obedecer e morrer como carneiros! Maldita vida esta! O que
acontece aos cachapins e aos palmípedes?
E aos básicos? Nada. O que eles
precisavam era dum bom porco!
Manuel Rodas
Vocabulário e termos utilizados pelos soldados portugueses, na Flandres na I Grande Guerra!
"Front" (linha
da frente),
"Ir aos arames" (ir de encontro ao arame farpado),
"Arraite" (do inglês all rigth),
"Avenida Afonso Costa" (terra de ninguém),
"Balázio"(tiro de pistola ou metralhadora)
"Bife" (soldado
inglês),
"Boche" (soldado
alemão, derivante do francês caboche),
"Cachapin" (oficial ou soldados que conseguiram ser
transferidos para a retaguarda, ou que tendo ordem de ir para as trincheiras
nunca lá chegaram),
"Cavanço" (fuga para a retaguarda),
"Lãzudo" (soldado
português),
"Recoca" (serviços
de apoio na primeira linha, cozinheiros, tratadores de gado, condutores, etc.
longe do parapeito),
"Toupeira", "Trincha" (soldado das trincheiras),
"Porco" (projéctil
de morteiro pesado),
"Salchichas" (balões de observação ou drachens),
"Luísa" (metralhadora inglesa Lewis),
"Básicos" (oficiais da base),
"Palmípedes" (oficiais do Estado – Maior que anda de
carro e dorme debaixo de telha), entre muitos mais que ficaram.
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