As balas do
25 de Novembro de 1976 ainda ecoavam nos meus ouvidos e no meu sonho
ferido!
Na madrugada
do dia 26 de Novembro, o Jaime Neves e “sus muchachos” reuniram-nos
na Calçada da Ajuda, em Lisboa e mais tarde, na parada do Quartel de
Lanceiros 2 e mandou os vencidos soldados da Policia Militar, de
férias provisórias.
Quando
cheguei ao fundo da rua, vestido de verde e saco de viagem na mão,
não pude conter as lágrimas e a culpa que os populares nos
apontavam de dedo erguido: Vocês perderam a revolução!
Na estação
e no comboio em Stª Apolónia ninguém parecia muito importado com
isso.
As pessoas
continuavam na sua vida, indiferentes à revolução ... perdida!
Encontrei o meu lugar, sentei-me e deixei correr as imagens dos
acontecimentos passados, ao ritmo das rodas nos carris.
Como já não
dormia há duas noites, só acordei, no Porto, a mulher da
limpeza a gritar:
- Sr. soldado, o comboio vai para a Régua!
- Sr. soldado, o comboio vai para a Régua!
- Régua não!
Saltei, e de
saco na mão, fui encontrar-me com o Enes em Viana do Castelo.
Ele tinha
sido meu colega em Braga, No Magistério Primário, era lá professor e sabia da possibilidade
de ir trabalhar na escola em Monserrate.
Com um
intervalo de 3 meses, depois de ter respondido numa Comissão de
Inquérito Militar e se ter apurado a minha inocência nesses
acontecimentos - eu era apenas um soldado recruta, que nem juramento
de bandeira tinha feito - comecei a trabalhar como professor de uma
2ª classe na escola de Monserrate, em Março de 1977.
O Diretor do
Magistério da altura, Inspector Silva, pretendia organizar ali uma
escola inovadora, que servisse de referência para a formação dos
alunos, futuros professores, em Viana do Castelo.
Era o meu 2º
ano de trabalho e havia muitas coisas para aprender.
Eu mantinha
os olhos, os ouvidos e o coração, o mais abertos possíveis, para
reter o que era importante, melhorar o meu desempenho e ser bem
aceite pelos colegas que já lá trabalhavam e justificar assim a
aposta que o Director tinha feito ao convidar-me -
na altura os professores eram convidados pelo Diretor do Magistério
a trabalhar nas escolas Anexas, onde os alunos faziam os estágios.
A escola era
um modelo P3, com áreas abertas permitindo o trabalho conjunto dos
20 e tal professores, e áreas definidas para serem utilizadas nas
actividades de expressões.
Os
professores tinham sido escolhidos a dedo, com experiências muito
diversificadas, o que me intimidava um pouco, pois tinha a insegurança de quem inicia e é avaliado pelos pares!
Sabia que
tinham expectativas positivas a meu respeito, mantinham um clima
afectivo calmo e amigável, mas sentia no ar alguma inquietação com
as minhas prestações. Tinha a barba e o cabelo comprido, pouca
experiência e como tinha formação nas pedagogias ativas e pugnava
por um ensino moderno, poderia ser ... uma ameaça!
Os alunos
eram na maioria filhos do bairro e de pescadores, gente simples.
Lembro-me dalguns, mas aquele que ainda irá dar origem a uma
crónica é o Zé Luís; repetente, madraço, com ar de podengo,
morrendo com falta de afecto a todo o instante e provocador nas
horas vagas.
Mas isso
fica para mais tarde.
Entre os
alunos, havia um com um funcionamento intelectual muito deficitário,
mas que não incomodava muito, pois mantinha-se apático e pouco
participativo.
Com
regularidade, uns tantos professores do Ensino Especial, passavam
pela escola, um deles ia à minha sala, falava comigo e com o aluno,
deixava alguns materiais e contava-me “coisas e pormenores da vida
dele” que eu nem suspeitava ( problemas durante o nascimento, a
separação dos pais, e a entrega à guarda dos avós -que já muito
idosos poucos cuidados prestavam ). Ele mostrava-se bastante atento
aos pormenores, descrevia o quadro familiar, os problemas do seu
crescimento, o seu modo de funcionamento e quase sempre com uma certa
ironia, o que me deixava surpreendido, pois não restava espaço para
a compaixão, para as comiserações que o destino dita para alguns e
que muitos se comprazem por não lhes ter acontecido a eles ou a
elementos da sua família.
Deste modo,
os colegas pretendiam que a minha intervenção tivesse essas
informações em consideração e fosse compreensivo na mediação da
relação com outros colegas e educador atento das suas necessidades.
Todos os
êxitos e sucessos deveriam ser reconhecidos, se possível em
público, e as dificuldades deveriam ser decompostas em sub tarefas
permitindo-lhe, adequar a atividade às suas capacidades de
realização e obter a satisfação com o êxito alcançado.
Cada
dificuldade dos alunos era um desafio e nós... tínhamos de aprender
a gratificar-nos com os pequenos êxitos alcançados.
Os tais
colegas mantinham uma relação afável e afectiva entre eles,
estabeleciam relação fácil com os colegas e ... gostavam do que
faziam; falavam da sociedade e da vida de forma alegre, crítica, com
esperança na mudança e tinham uma perspectiva realista sobre as
coisas.
Toda esta
maneira de estar seduziu-me! Eram uns colegas ... diferentes!
Como eu
gostaria de trabalhar com eles!
Os 3 meses
passaram muito rápidos. Um dia, em conversa informal, disse-lhes o
quanto os apreciava e a forma gentil e afectiva como se relacionavam
com os colegas e a forma conhecedora, sensível e atenta aos
pormenores dos alunos que apoiavam. E manifestei-lhes a minha vontade
de ir trabalhar com eles.
Gostaria de
trabalhar numa equipa onde a relação fosse cordial, amistosa e se
aprofundasse o conhecimento sobre os alunos.
O Basílio
sorriu, e disse:
- Quem
sabe? Talvez um dia.
Sinceramente
não pensei mais nisso. Com a entrada na “normalização” e fim
do processo revolucionário, o Ministro da Educação, Sotto Mayor
Cardia, do governo de Mário Soares, acabou com as experiências
pedagógicas e fomos quase todos mandados
para casa e aguardar novo concurso que nos iria colocar noutra
qualquer escola, era o que nos restava!
Concorri. E
fui colocado na Telescola de Paradela, Soajo.
O ano passou
muito depressa. Era uma experiência nova e muito absorvente. Quando
tomei consciência da velocidade do tempo passado, estávamos perto
da Páscoa.
Um dia,
recebo um telefonema do Basílio a perguntar se ainda queria ir
trabalhar com eles. Sorri! Um sorriso confirmatório da minha
expectativa.
Eles tinham
sentido o meu desejo e ... não se tinham esquecido. Não se tinham
esquecido!
Claro que
queria! E FUI.
E foi assim
que iniciei a minha atividade na educação especial, com um grupo de
crianças surdas em Viana do Castelo, em regime de integração escolar.
Lembro-me de
pedir por favor, a uma Professora duma escola, para me deixar lá
aqueles dois alunos. E dois dias por semana vinham ter apoio comigo.
Era um favor que me fazia a mim, seu colega!
Eu ia
passando por lá e deixaria alguns materiais que poderia utilizar com
eles. Porque ela
não era obrigada a aceitá-los na sua sala. E agora vejo o caminho
que já percorremos, todos os que acreditam na inclusão, como dimensão ética e humana da sociedade! Da integração à inclusão!
O ano
escolar correu como tinha previsto. Tive todo o apoio destes colegas.
Percebi o esforço que o Ministério da Educação e a Drª Ana Maria
Bénard da Costa estavam a fazer, para implementarem uma rede nacional
de Integração Escolar, através do apoio prestado por estes
docentes.
Entretanto,
em consequência do acordo Luso-Sueco, as Equipas de Educação
Especial e os alunos apoiados beneficiaram dum conjunto de materiais
didáticos inovadores, coloridos e muito estimulantes.
Os
professores mantinham uma formação contínua e como eram poucos,
conheciam-se praticamente todos a nível nacional.
No
início do ano seguinte, a Direção Geral promovia um curso de 3
meses, no Instituo António Aurélio da Costa Ferreira, em Lisboa,
para os professores sem especialização.
Quando
iniciei o curso percebi que ia começar outro de 3 anos, em regime de
bolsa, para professores sem especialização.
Pedi a
transferência de curso e ... fiquei em Lisboa o resto da minha vida
profissional!
Ao fim de três anos na capital, já não queria voltar ao norte.
Nunca me abandonou o sentimento de ter traído aquele grupo de colegas, com quem tanto aprendi, que tão bem me receberam e com quem tanto gostei de trabalhar.
Nunca me abandonou o sentimento de ter traído aquele grupo de colegas, com quem tanto aprendi, que tão bem me receberam e com quem tanto gostei de trabalhar.
Fiquei a
trabalhar na Damaia, Amadora.
Mas esta
incomodidade, este desconforto, acompanharam-me até hoje.
Perdoaram-me?!
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