sexta-feira, 14 de junho de 2013

Como me tornei Professor de Educação Especial




As balas do 25 de Novembro de 1976 ainda ecoavam nos meus ouvidos e no meu sonho ferido!
Na madrugada do dia 26 de Novembro, o Jaime Neves e “sus muchachos” reuniram-nos na Calçada da Ajuda, em Lisboa e mais tarde, na parada do Quartel de Lanceiros 2 e mandou os vencidos soldados da Policia Militar, de férias provisórias.
Quando cheguei ao fundo da rua, vestido de verde e saco de viagem na mão, não pude conter as lágrimas e a culpa que os populares nos apontavam de dedo erguido: Vocês perderam a revolução!
Na estação e no comboio em Stª Apolónia ninguém parecia muito importado com isso.
As pessoas continuavam na sua vida, indiferentes à revolução ... perdida! Encontrei o meu lugar, sentei-me e deixei correr as imagens dos acontecimentos passados, ao ritmo das rodas nos carris.
Como já não dormia há duas noites, só acordei, no Porto, a mulher da limpeza a gritar: 
- Sr. soldado, o comboio vai para a Régua!
  • Régua não!
Saltei, e de saco na mão, fui encontrar-me com o Enes em Viana do Castelo.
Ele tinha sido meu colega em Braga, No Magistério Primário, era lá professor e sabia da possibilidade de ir trabalhar na escola em Monserrate.

Com um intervalo de 3 meses, depois de ter respondido numa Comissão de Inquérito Militar e se ter apurado a minha inocência nesses acontecimentos - eu era apenas um soldado recruta, que nem juramento de bandeira tinha feito - comecei a trabalhar como professor de uma 2ª classe na escola de Monserrate, em Março de 1977.
O Diretor do Magistério da altura, Inspector Silva, pretendia organizar ali uma escola inovadora, que servisse de referência para a formação dos alunos, futuros professores, em Viana do Castelo.

Era o meu 2º ano de trabalho e havia muitas coisas para aprender.
Eu mantinha os olhos, os ouvidos e o coração, o mais abertos possíveis, para reter o que era importante, melhorar o meu desempenho e ser bem aceite pelos colegas que já lá trabalhavam e justificar assim a aposta que o Director tinha feito ao convidar-me - na altura os professores eram convidados pelo Diretor do Magistério a trabalhar nas escolas Anexas, onde os alunos faziam os estágios.

A escola era um modelo P3, com áreas abertas permitindo o trabalho conjunto dos 20 e tal professores, e áreas definidas para serem utilizadas nas actividades de expressões.
Os professores tinham sido escolhidos a dedo, com experiências muito diversificadas, o que me intimidava um pouco, pois tinha a insegurança de quem inicia e é avaliado pelos pares!
Sabia que tinham expectativas positivas a meu respeito, mantinham um clima afectivo calmo e amigável, mas sentia no ar alguma inquietação com as minhas prestações. Tinha a barba e o cabelo comprido, pouca experiência e como tinha formação nas pedagogias ativas e pugnava por um ensino moderno, poderia ser ... uma ameaça!

Os alunos eram na maioria filhos do bairro e de pescadores, gente simples. Lembro-me dalguns, mas aquele que ainda irá dar origem a uma crónica é o Zé Luís; repetente, madraço, com ar de podengo, morrendo com falta de afecto a todo o instante e provocador nas horas vagas.
Mas isso fica para mais tarde.
Entre os alunos, havia um com um funcionamento intelectual muito deficitário, mas que não incomodava muito, pois mantinha-se apático e pouco participativo.
Com regularidade, uns tantos professores do Ensino Especial, passavam pela escola, um deles ia à minha sala, falava comigo e com o aluno, deixava alguns materiais e contava-me “coisas e pormenores da vida dele” que eu nem suspeitava ( problemas durante o nascimento, a separação dos pais, e a entrega à guarda dos avós -que já muito idosos poucos cuidados prestavam ). Ele mostrava-se bastante atento aos pormenores, descrevia o quadro familiar, os problemas do seu crescimento, o seu modo de funcionamento e quase sempre com uma certa ironia, o que me deixava surpreendido, pois não restava espaço para a compaixão, para as comiserações que o destino dita para alguns e que muitos se comprazem por não lhes ter acontecido a eles ou a elementos da sua família.

Deste modo, os colegas pretendiam que a minha intervenção tivesse essas informações em consideração e fosse compreensivo na mediação da relação com outros colegas e educador atento das suas necessidades.
Todos os êxitos e sucessos deveriam ser reconhecidos, se possível em público, e as dificuldades deveriam ser decompostas em sub tarefas permitindo-lhe, adequar a atividade às suas capacidades de realização e obter a satisfação com o êxito alcançado.
Cada dificuldade dos alunos era um desafio e nós... tínhamos de aprender a gratificar-nos com os pequenos êxitos alcançados.
Os tais colegas mantinham uma relação afável e afectiva entre eles, estabeleciam relação fácil com os colegas e ... gostavam do que faziam; falavam da sociedade e da vida de forma alegre, crítica, com esperança na mudança e tinham uma perspectiva realista sobre as coisas.
Toda esta maneira de estar seduziu-me! Eram uns colegas ... diferentes!
Como eu gostaria de trabalhar com eles!

Os 3 meses passaram muito rápidos. Um dia, em conversa informal, disse-lhes o quanto os apreciava e a forma gentil e afectiva como se relacionavam com os colegas e a forma conhecedora, sensível e atenta aos pormenores dos alunos que apoiavam. E manifestei-lhes a minha vontade de ir trabalhar com eles.
Gostaria de trabalhar numa equipa onde a relação fosse cordial, amistosa e se aprofundasse o conhecimento sobre os alunos.
O Basílio sorriu, e disse:
- Quem sabe? Talvez um dia.
Sinceramente não pensei mais nisso. Com a entrada na “normalização” e fim do processo revolucionário, o Ministro da Educação, Sotto Mayor Cardia, do governo de Mário Soares, acabou com as experiências pedagógicas e fomos quase todos mandados para casa e aguardar novo concurso que nos iria colocar noutra qualquer escola, era o que nos restava!
Concorri. E fui colocado na Telescola de Paradela, Soajo.
O ano passou muito depressa. Era uma experiência nova e muito absorvente. Quando tomei consciência da velocidade do tempo passado, estávamos perto da Páscoa.
Um dia, recebo um telefonema do Basílio a perguntar se ainda queria ir trabalhar com eles. Sorri! Um sorriso confirmatório da minha expectativa.
Eles tinham sentido o meu desejo e ... não se tinham esquecido. Não se tinham esquecido!
Claro que queria! E FUI.
E foi assim que iniciei a minha atividade na educação especial, com um grupo de crianças surdas em Viana do Castelo, em regime de integração escolar.
Lembro-me de pedir por favor, a uma Professora duma escola, para me deixar lá aqueles dois alunos. E dois dias por semana vinham ter apoio comigo. Era um favor que me fazia a mim, seu colega!
Eu ia passando por lá e deixaria alguns materiais que poderia utilizar com eles. Porque ela não era obrigada a aceitá-los na sua sala. E agora vejo o caminho que já percorremos,   todos os que acreditam na inclusão, como dimensão ética e humana da sociedade!  Da integração à inclusão!

O ano escolar correu como tinha previsto. Tive todo o apoio destes colegas. Percebi o esforço que o Ministério da Educação e a Drª Ana Maria Bénard da Costa estavam a fazer, para implementarem uma rede nacional de Integração Escolar, através do apoio prestado por estes docentes.
Entretanto, em consequência do acordo Luso-Sueco, as Equipas de Educação Especial e os alunos apoiados beneficiaram dum conjunto de materiais didáticos inovadores, coloridos e muito estimulantes.
Os professores mantinham uma formação contínua e como eram poucos, conheciam-se praticamente todos a nível nacional.

No início do ano seguinte, a Direção Geral promovia um curso de 3 meses, no Instituo António Aurélio da Costa Ferreira, em Lisboa, para os professores sem especialização.
Quando iniciei o curso percebi que ia começar outro de 3 anos, em regime de bolsa, para professores sem especialização.
Pedi a transferência de curso e ... fiquei em Lisboa o resto da minha vida profissional!
Ao fim de três anos na capital, já não queria voltar ao norte.
Nunca me abandonou o sentimento de ter traído aquele grupo de colegas, com quem tanto aprendi, que tão bem me receberam e com quem tanto gostei de trabalhar.

Fiquei a trabalhar na Damaia, Amadora.
Mas esta incomodidade, este desconforto, acompanharam-me até hoje. 
Perdoaram-me?!

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