segunda-feira, 6 de julho de 2020

Guilhermino



A aldeia e arredores dormem tranquilamente. 
Hão de acordar cedo. Mas, mais cedo que as aldeias, acordam os animais dos montes e os galos e só depois, o Guilhermino. 
Desde cedo os pais lhe notaram uma estranheza. Tinha dificuldade em sorrir e não dirigia o coração no olhar para os olhos da mãe e do pai, nem para ninguém.
Crescera a evitar o contacto com os outros e baixar a cabeça para o chão, quando alguém o chamava. E julgando desviar os olhos, julgava esconder-se do olhar dos outros, evitando que os outros o vissem. E de tanto porfiar, foi-se tornando invisível.
 Sempre escolheu estar só, com as suas pedras, os seus bugalhos, a descobrir os segredos que estes refletiam da sua alma, num percurso de silêncios e invisibilidade das emoções e dos sorrisos ausentes. 
Para Guilhermino tudo era difícil.
Apesar de todas as maleitas tinha-se feito um rapagão. O pior era quando os outros o chamavam para o trabalho, para as danças, para a conversa ou divertimento, isto é, para a vida em comum.
Guilhermino olhava-os aborrecido, reagia com manifesto desagrado e corria a meter-se no seu buraco. Um lugar escuro, sombrio e longínquo.
O moço é chocho! - diziam a rir, enquanto abanavam a cabeça a reconhecer a impossibilidade de o compreender.

Após a morte dos pais, vive sozinho num casinhoto encostado aos outros, mas só nas pedras da parede, porque a alma vagueia pelas sombras e inquietações de quem não pode estar com os outros.

É invisível quando amanha a horta, planta as couves e as nabiças, as cebolas e as alfaces, as batatas e os feijões. Pode ser invisível, mas a vida tem premências e exigências que é preciso satisfazer!
É invisível quando pastoreia as ovelhas, pelo Bucanal adiante até avistar a veiga da Várzea.
Regressa a casa, tarde, pelos caminhos que descobre solitários, às escondidas, como se a vida pudesse ser contornada nas suas esquinas, menos duras e inflexíveis que os vizinhos!
Não chega a sentir humilhação na sua condição de solitário, porque para isso é preciso estar dentro dum conjunto de referências e abraços da comunidade. Vive numa fronteira entre o possível e o desejável, onde a luz ofusca e a sombra engrandece, mas já dentro da sua humanidade.
Mesmo quando os rapazes mais audazes vão sorrateiramente empurrar o bolo da pedra, junto ao borralho, por uma fenda na parede, ele não lhes reconhece a existência e diz para si próprio, 
o raio do bolo tem sono.
 Não acredita noutra possibilidade para o bolo cair. Ele não tem vontade própria, porque cai? Guilhermino está fora, apesar de viver dentro. Vagueia pelos ares, observa a terra e o pó, mas não se lhes mistura.
Não sabe explicar como lhe aparecem batatas à porta, às vezes couves, ou um bocado de pão, embrulhado em folhas de couve. 
Para ele é um mistério. Há vontades que a vontade desconhece.
A aldeia divide-se entre a aceitação e a exclusão. Também eles preferem ficar cegos e não o ver, ou pelo menos só ocasionalmente. Cada um faz a sua vida, ajudam-se mutuamente, quando necessário, são solidários, mas aquele é diferente... e recusam-se a vê-lo, vivente subalterno, porque não o reconhecem como um igual. É diferente! Não é mensageiro do diabo, se deus o marcou, algum erro lhe topou, mas também não é a imagem e obra de Deus. 
Vagueia por ali, no espaço intermédio.
A consciência dessa diferença manifesta-se no agradecimento a Deus por não ter castigado nenhum dos seus filhos e por não existir ninguém na família com aquelas características, enfim, chocho!
Não se sabia porque Deus tinha castigado aqueles pais, que mal teriam feito, mas Quem tudo sabia e tudo podia, lá teria as suas razões.
Não havia conversa, não ouvia, nem era ouvido, não era reconhecido, nem visto, não existia na zona clara da consciência, apenas na penumbra esfumeada da memória.
Havia muita coisa que ninguém sabia explicar, e ainda menos ele próprio. Coisas da vida, da morte, do dia e da noite!
Também ele não sabe explicar porque vem de noite aquela criatura meter-se com ele na cama, afagar-lhe o corpo com as mãos até os membros endurecerem, possuí-lo e ir embora na calada da noite, sem um ai, ou um beijo.
Ele pensa que é um sonho, mesmo quando olha para a cama manchada, e a porta entreaberta, o cheiro acre-doce do sexo.
Na primeira noite, ainda estremunhado, sentira uma mão quente no meio das suas pernas nuas. E gostou. Pensou em gritar e fugir, mas aquele calor quente no meio do sonho, tanto podia ser realidade como invenção sua. Deixou-se ficar quieto a saborear a doce surpresa. Quando por fim descobriu que o seu corpo se desflorava em gritos e estertores e a carne humedecida esquentava, disse, obrigado.
Não sabe quem é, se nova ou velha, mulher ou bruxa. Nem sequer sabe se é homem ou mulher. Alguém que lhe entrava na cama e não na vida. Seria incapaz de o reconhecer de dia, mas já lhe conhecia o corpo e as mãos. E durante muito tempo deixou-se ficar preso naquelas mãos que o afagavam com ternura. E nos braços fortes que o apertavam.
Depois, à medida que o tempo ia passando, começou a fixar-se nas pernas longas e quentes que o abraçavam e tremiam, a fervilhar de gozo. Aquele corpo quente e suave que se lhe oferecia, em convulsões de prazer e gemidos de luxúria. 
A porta fica sempre na taramela. 
As noites vão correndo a intervalos de gozo e prazer.
Mas como não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe, as visitas começaram a ser espaçadas até que foram interrompidas, sem se saber porquê!
Essas noites tinham sido os momentos mais importantes da sua vida e inexplicavelmente deixaram de existir, foram riscadas, apagadas. Talvez nunca tenham existido, pensava Guilhermino. 
Há o prazer da carne, há o antes e o depois, que é nada. Talvez seja a minha cabeça doida - filosofava ele, abraçado na insónia.
Teve um pressentimento indizível, quando ouviu o sino a tocar a defuntos. Era uma compressão no peito até lhe chegar à garganta que não deixava passar, nem a sopa, nem o presigo.
Ele deixou-se ficar todo o dia com as ovelhas, longe da confusão e das pessoas. Nunca tanto olhara para o Castelo de Lindoso e a serra Amarela, bem lá mais longe do que a sua vista alcança.
Foram várias as noites em que ficou acordado. Ouvir os ruídos e silêncios da aldeia. Deitar, acordar, trabalhar e comer. Pessoas e animais, ventos e chuvas. E outras coisas invisíveis, que vagueavam pelos caminhos da noite, nas veredas do pensamento solitário, entravam pelas frinchas e se ululavam nas mantas da cama.
Nunca mais a taramela se mexeu durante a noite. Nunca mais.
Quando um rapaz deu a notícia no Eiró, 
o ti Guilhermino está a chorar, 
ninguém queria acreditar que ele tivesse retornado ao mundo conhecido das emoções e sentimentos. 
Quem? O Guilhermino?
Algumas mulheres curiosas que se alimentam das desgraças alheias vão a correr ver o sucedido. Sentado, em frente a sua porta, Guilhermino chora copiosamente, esconde a cara debaixo do braço e aponta para a taramela, silenciosa 
Entreolhadas, as mulheres olham-se entre o riso e a inquietação. 
Que quer ele? Porque chora e aponta para a porta?
Sem respostas e condoídas da tristeza alheia, uma a uma desandam dali, 
Coitado,
deixá-lo, ele é chocho!
Guilhermino só voltou a ser visível quando morreu. É muito melhor evitar diversos predadores imaginários do que ser comido por um real.
Partiu à descoberta de todos os invisíveis que vagueiam por este mundo e o outro. E por ação da morte, a parte tornou-se o todo, o escuro ficou claro, a inquietação tranquilidade e a tempestade dissolveu-se num bafo sem fim. Eterno.
É preciso fazer-lhe o funeral e apesar de se saber que nunca se tinha confessado, não se sabe se tinha sido batizado. Quem o vai vestir e aprontar? Quem fará a vigília noturna? Quem lhe vai abrir a cova? Quem o levará em ombros até à entrada no paraíso? Chamar o padre será o mais fácil!

2020
Manuel Rodas

Sem comentários:

Enviar um comentário

Seja crítico, mas educado e construtivo nos seus comentários, pois poderão não ser publicados. Obrigado.