terça-feira, 24 de setembro de 2024

Estação do Rossio, Lisboa

 



Fotografia, António Martins (NFO)

A imagem mostra a fachada da **Estação Ferroviária do Rossio**, em Lisboa, Portugal. Este edifício é um exemplo impressionante da arquitetura **neomanuelina**, um estilo arquitetônico revivalista que remete ao gótico português, misturando influências marítimas e símbolos ligados à era dos Descobrimentos.

### Análise arquitetônica:
1. **Estilo neomanuelino**: A fachada exibe arcos polilobados e ornamentos intricados, características marcantes do estilo neomanuelino, inspirado pela era manuelina do início do século XVI. O manuelino original, popular durante o reinado de D. Manuel I, é conhecido por suas formas exuberantes, fortemente influenciadas pela navegação e descobertas marítimas.
   
2. **Arcos e janelas**: A entrada principal é composta por dois arcos em forma de ferradura que criam uma sensação de grandeza. Estes arcos remetem à herança gótica e mourisca de Portugal, reforçando o simbolismo nacionalista do estilo neomanuelino. As janelas no andar superior são delicadamente ornamentadas e emolduradas por colunas e arcos esculpidos, adicionando uma sensação de verticalidade à estrutura.

3. **Detalhes decorativos**: Acima dos arcos de entrada, há uma profusão de detalhes esculpidos que incluem formas vegetais e geométricas, típicos do manuelino. Elementos como pináculos e colunas detalhadas trazem uma qualidade quase de "joalheria" à fachada, enquanto as cercaduras, ou frisos esculpidos, reforçam o aspecto grandioso.

4. **Torre do relógio**: No topo, há uma torre central com um relógio, emoldurada por quatro pináculos. Isso confere à fachada uma simetria que se equilibra com a complexidade dos elementos decorativos.

### Contexto histórico:
- **Construção**: A Estação do Rossio foi inaugurada em 1890 e projetada pelo arquiteto José Luís Monteiro, que adotou o estilo neomanuelino como uma forma de reafirmar o orgulho nacional português em uma época em que Portugal buscava reforçar suas ligações com o passado glorioso dos Descobrimentos.
- **Função**: A estação serviu como uma importante ligação ferroviária entre Lisboa e a cidade de Sintra, além de conectar com outras linhas regionais.
- **Contexto revivalista**: O uso do neomanuelino reflete um momento de redescoberta da história e da identidade portuguesa no final do século XIX, em um movimento paralelo ao que ocorria em outros países europeus com estilos revivalistas.

### Análise fotográfica:
A foto foi tirada em um dia claro, com um céu azul profundo que contrasta fortemente com o tom claro da pedra usada na construção. Isso ajuda a realçar os detalhes da arquitetura, principalmente as ornamentações elaboradas. A presença de pessoas caminhando na frente da estação traz uma dimensão de escala humana, permitindo ao observador perceber o quão imponente é a estrutura.

Em resumo, a imagem captura a grandiosidade de uma das estações mais importantes de Lisboa, tanto pela sua função quanto pelo seu valor arquitetônico e histórico, simbolizando o apogeu de uma fase de renascimento cultural e arquitetônico em Portugal.

Alexandre Inácio


domingo, 22 de setembro de 2024

MOITA-ME!

 



Após a largada de touros na Moita, fica o rasto da orgia e e apoteose sádicas, espalhada pelas ruas!  O medo e a culpa!

https://youtu.be/T2xwSGedO80?feature=shared

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Xeque mate

 


**Rei (com um suspiro profundo):**  

"Interessante como sempre olhamos de cima, esquecendo que o poder é sustentado pela base. Eu, cercado de cavalos, bispos e torres, acreditei que minha segurança era inquebrável. Mas veja só, todos caíram, e aqui estou, à mercê de um simples peão. O que você sabe de poder, pequeno? O que pode um peão, diante de um rei?"


**Peão (com um olhar firme, mas sem arrogância):**  

"Majestade, o que sei sobre poder? Sei que, enquanto os grandes se movem com grandiloquência, confiantes de que o tabuleiro os pertence, os pequenos movem-se em silêncio, passo a passo, tecendo suas próprias rotas. O meu poder está no avanço, na persistência, na paciência eorganização. Enquanto os grandes se distraem com suas batalhas, os pequenos seguem firmes, ocupando espaços que antes eram ignorados. É assim que chegamos aqui."


**Rei (com uma amargura contida):**  

"Então é isso? O meu fim? Um xeque-mate nascido da paciência de um peão? Toda a glória de um rei, reduzida a este momento. E pensar que, ao longo do jogo, sempre olhei para vocês como meras peças de sacrifício."


**Peão (calmo, mas determinado):**  

"Majestade, será que não entende? Somos mais que peças de sacrifício. Quando lutamos em conjunto, quando temos uma estratégia clara, podemos virar o jogo. O poder não é exclusivo dos que possuem grandes movimentos ou posições elevadas. O verdadeiro poder está na coletividade, no trabalho incansável que muitas vezes não é visto até que seja tarde demais. O senhor pode ser o mais poderoso no início, mas cada passo que dei trouxe-me até aqui."


**Rei (com um leve sorriso melancólico):**  

"Há uma ironia amarga nisso tudo, não há? Eu, que sempre fui protegido, sou derrotado por aquele que sempre esteve exposto. Eu, cercado de aliados, encontro-me sozinho, enquanto você, sempre avançando solitariamente, se une à força de seus iguais. Talvez o poder não seja algo que possamos realmente possuir, mas algo que nos é emprestado por aqueles que nos sustentam."


**Peão (com sabedoria):**  

"Os reis dependem dos seus súbditos, Majestade. Mas às vezes, os súbditos também precisam encontrar seu próprio caminho. E quando o fazem, podem ser imparáveis. Esta é a natureza do jogo, tanto no tabuleiro quanto na vida. O que parece pequeno e insignificante pode se tornar a força que derruba impérios."


**Rei (com um olhar sereno, aceitando o inevitável):**  

"Você tem razão. Subestimei o poder dos pequenos, e agora compreendo tarde demais. Meu fim não é apenas uma derrota, é uma lição que ecoará. Quando o xeque-mate vier, que seja rápido. E que os reis futuros jamais esqueçam essa lição."


**Peão (dando o golpe final com respeito):**  

"Eu também sou parte de algo maior, Majestade. É que com este gesto , nunca mais teremos necessidade dum rei! Viva a república! Xeque-mate."

Alexandre Inácio 

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Essa continuação aprofunda ainda mais a reflexão sobre a dinâmica entre os poderosos e os que ocupam posições humildes. A conversa revela que o verdadeiro poder nem sempre está onde se espera, e que aqueles que parecem frágeis podem ser os agentes da maior mudança, quando atuam com paciência, inteligência e união. O rei, em seus momentos finais, reconhece que a arrogância de quem está no topo pode ser sua ruína, enquanto o peão, sem jamais buscar glória, triunfa por ter seguido um caminho firme e coletivo.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Análise crítica fotografia de Jorge Castro (NFO)

 


Fotografia de Jorge Castro ( NFO)


Do amigo Alexandre Inácio recebemos o pedido de publicação de apreciação crítica desta fotografia, “ de passagem, de Jorge Castro


A fotografia “De Passagem” de Jorge Castro pode ser analisada a partir de diferentes ângulos filosóficos, sociais e artísticos, revelando uma série de camadas de significado.


### Análise Filosófica

Filosoficamente, a imagem captura o conceito de transitoriedade. A figura feminina, fotografada de costas enquanto caminha, simboliza o fluxo constante da vida, onde o movimento é inevitável e o passado é algo que deixamos para trás. O fato de não vermos o rosto da mulher acentua a ideia de anonimato e universalidade: ela poderia ser qualquer pessoa, em qualquer momento da vida, passando por qualquer lugar.


Este anonimato também sugere a ideia de uma jornada pessoal e introspectiva, onde cada um está imerso em seu próprio caminho, muitas vezes incompreendido ou não visto pelos outros. A direção do movimento — afastando-se da câmera — pode ser interpretada como uma metáfora para o futuro desconhecido que todos nós estamos sempre caminhando em direção, sem nunca ter certeza do que está por vir.


### Análise Social

Socialmente, a fotografia pode ser lida como uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea. O fato de a mulher estar "de passagem" pode indicar uma crítica à forma como as mulheres frequentemente precisam navegar entre diferentes papéis e expectativas impostas pela sociedade. Ela carrega uma bolsa, um símbolo de mobilidade e, possivelmente, de responsabilidade, sugerindo que está a caminho de algum compromisso, o que pode refletir a natureza multifacetada e as muitas demandas da vida moderna das mulheres.


Há também uma possível interpretação sobre o isolamento e a individualidade nas grandes cidades. A mulher está sozinha, caminhando em um espaço urbano aparentemente frio e impessoal. Este cenário pode simbolizar a alienação que muitas pessoas sentem ao viver em ambientes urbanos, onde a proximidade física com os outros não necessariamente se traduz em conexão emocional ou social.


### Análise Artística

Do ponto de vista artístico, a fotografia se destaca pela sua composição simples e ao mesmo tempo poderosa. A escolha de uma perspectiva de costas e a captura do movimento do cabelo da mulher conferem à imagem um dinamismo, enquanto a paleta de cores — dominada pelo azul do casaco e pelo fundo neutro — cria um contraste que atrai o olhar do espectador diretamente para a figura central.


O uso do azul é particularmente interessante, pois é uma cor frequentemente associada à calma, ao mistério, e, em alguns contextos, à tristeza. Isso adiciona uma camada emocional à imagem, sugerindo que a mulher pode estar em uma jornada emocional além da física.


A fotografia também faz uso de linhas e perspectivas de maneira eficaz. A linha do chão e da parede direcionam o olhar do espectador para frente, acompanhando o movimento da mulher, o que reforça a sensação de passagem e transitoriedade.


### Simbolismo e Interpretação Psicológica

Psicologicamente, a imagem pode ser vista como uma representação do eu interior em um momento de transição. A mulher, envolta em suas próprias emoções e pensamentos, parece estar em um momento de reflexão enquanto caminha, possivelmente representando a busca por direção ou propósito na vida. O fato de não vermos seu rosto permite que o espectador projete suas próprias experiências e emoções na figura, tornando a fotografia um espelho das próprias jornadas internas do observador.


O cabelo em movimento pode simbolizar liberdade ou mudança, sugerindo que, mesmo enquanto seguimos em frente, há partes de nós que ficam para trás, se transformam ou são deixadas ao vento, literalmente. Esta dinâmica entre movimento e transformação está presente em toda a composição.


### Considerações Finais

A fotografia “De Passagem” de Jorge Castro é uma obra que encapsula a complexidade da experiência humana em um único momento de movimento. A figura feminina, retratada de costas, torna-se um símbolo universal da jornada humana, cheia de incertezas, responsabilidades, e a eterna marcha em direção ao desconhecido. A simplicidade da imagem esconde uma profundidade de emoções e interpretações, tornando-a uma poderosa reflexão sobre a vida contemporânea.


A obra convida o espectador a considerar sua própria posição “de passagem” na vida, e a refletir sobre o que deixamos para trás, o que carregamos conosco, e o que ainda está por vir. Essa reflexão é amplificada pelo cenário urbano, que sublinha a solidão e a alienação da vida moderna, ao mesmo tempo que celebra a resiliência e a determinação de continuar avançando, independentemente do que o futuro reserva.


Alexandre Inácio

Análise crítica a fotografia de Fátima Paiva Oliveira (NFO)

 

Fotografia Fátima Paiva Oliveira


Do amigo Alexandre Inácio recebemos com pedido de publicação:


A fotografia de Fátima Paival Teixeira oferece uma exploração sensorial rica através de sua composição de frutas cítricas. A imagem, aparentemente simples, ganha profundidade com o uso habilidoso da luz, que destaca a textura das frutas e suas cores vibrantes, criando um contraste entre os tons de verde e amarelo. As folhas verdes e os ramos complementam essa paleta natural, remetendo à frescura e à vitalidade da natureza.


O fundo escuro acentua o brilho das frutas, fazendo com que pareçam emergir da escuridão, como se estivessem sob um foco de luz teatral. Essa escolha de fundo cria um efeito dramático, sugerindo uma reverência aos elementos da natureza, quase como uma homenagem às colheitas ou ao ciclo da vida. A reflexão suave no fundo, que pode ser uma superfície de mármore ou pedra, adiciona outra camada de interesse visual, criando uma profundidade sutil.


Esta fotografia parece celebrar a abundância e a simplicidade, convidando o observador a apreciar os detalhes sutis da natureza — as texturas rugosas das cascas, as variações de cor e o jogo entre luz e sombra. O conjunto transmite uma sensação de naturalidade e plenitude, capturando um momento que é, ao mesmo tempo, cotidiano e profundamente poético.


Alexandre Inácio

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Crítica fotográfica a foto de FJNLampreia (NFO)

 

Fotografia de Francisco JNLampreia (membro do NFO)


A fotografia apresentada nos convida a uma imersão em um momento de serenidade, capturando a essência da simplicidade e da beleza minimalista. A composição, marcada por linhas retas e formas geométricas dos guarda-sóis,contrasta com as curvas suaves da água, criando um diálogo visual entre o artificial e o natural.

Elementos visuais e sua interpretação:

  • Guarda-sóis: Símbolos do verão e do lazer, os guarda-sóis dominam a imagem, transformando-se em elementos quase abstratos. Suas silhuetas, repetitivas e alongadas, evocam um ritmo visual que nos conduz para o horizonte. A ausência de pessoas sob os guarda-sóis sugere um momento de pausa, um instante de contemplação.
  • Água: A superfície da água, com suas nuances de azul e cinza, reflete o céu e os guarda-sóis, criando um efeito de espelho que duplica a realidade. As pequenas ondulações e as marcas deixadas por algum objeto não identificado na água adicionam um toque de movimento e dinamismo à cena.
  • Linha: A linha que corta a imagem horizontalmente, formada por um fio e um pássaro, divide a composição em duas partes e adiciona um elemento de profundidade. 
  • Luz: A luz suave e difusa, característica do fim da tarde, cria uma atmosfera serena e contemplativa. As sombras projetadas pelos guarda-sóis na água intensificam a sensação de profundidade e tridimensionalidade da imagem.

Enquadramento na história da arte e movimentos artísticos:

A fotografia apresentada pode ser relacionada a diversos movimentos artísticos e estéticos, como:

  • Minimalismo: A busca pela simplicidade formal, a redução dos elementos visuais ao essencial e a valorização das linhas puras são características marcantes do Minimalismo, presentes nesta imagem.
  • Abstração: A simplificação das formas e a criação de composições que se afastam da representação realista da natureza são características da Abstração. A repetição dos guarda-sóis e a simplificação das formas da água aproximam esta fotografia da Abstração.
  • Concepção: A fotografia pode ser interpretada como uma obra conceitual, na medida em que o fotógrafo busca transmitir uma ideia ou uma sensação através da imagem, mais do que simplesmente registrar a realidade. A sensação de tranquilidade, de pausa e de contemplação é um exemplo disso.
  • Land Art: Embora a fotografia não seja uma obra de Land Art em si, a relação entre a natureza e a intervenção humana presente na imagem evoca este movimento artístico, que busca integrar a arte à paisagem natural.
  • Mensagem do Fotógrafo:
    • O fotógrafo pretende  transmitir uma sensação de paz e tranquilidade, ou talvez um alerta sobre a fragilidade da natureza.

Análise Técnica

  • Exposição: A exposição correta garante que as áreas claras e escuras da imagem tenham o nível de detalhe desejado.
  • Composição: A forma como os elementos são organizados na imagem cria um equilíbrio visual e guia o olhar do observador.
  • Enquadramento: A escolha do ângulo e da distância em relação ao sujeito influencia a percepção da imagem.
  • Outros Aspectos: Profundidade de campo, nitidez, textura, etc.

Conclusão:

A fotografia em questão é uma obra que convida à reflexão e à interpretação pessoal. A beleza está na simplicidade, na harmonia entre os elementos e na atmosfera de serenidade que ela transmite. Ao mesmo tempo, a imagem levanta questões sobre a relação entre o homem e a natureza, sobre a passagem do tempo e sobre a importância de momentos de pausa e contemplação em um mundo frenético.


Alexandre Inácio


sábado, 14 de setembro de 2024

Escutem-me!







Escutem-me, porra!
Há anos que protesto!
Grito contra a guerra,
Contra a dor e o sofrimento inúteis
Escrevo contra a exploração do homem e da mulher
E de todos que estão no meio deles!

Escutem-me, porra!
Afinal, porque não me escutam?
Se denuncio a injustiça, as ditaduras,
A falta de liberdades, a ignomínia
A ofensa, a humilhação, a segregação, a repressão, o isolamento,
A discriminação, o racismo, o sexismo e o patriarcado
Porque não me escutem?

Escutem todos os que protestam
Aqui ou na rua de baixo,
Aqui ou no país ao lado, na Ucrânia e na Rússia,
Em Israel e na Palestina, na Etiópia, na Eritreia
No Uganda, onde quer que haja guerra e ódio
Onde cada irmão mata, viola e incendeia o horror!

Escutem o fragor dos mísseis
O ribombar dos óbuses 
O choro das crianças órfãs
Das viúvas combatentes despedaçadas
Todas as lagrimas vertidas em cascata
De horror, dor…sem esperança!

Escutem-nos! Não nos tratem como mentirosos
Nós que sempre dissemos a verdade
Não é, Brecht?

MR






sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Palavras

 



Tive de esperar  tanto tempo

Para ouvir da tua boca

A mais agreste e ácida palavra da raiva

Atirada contra mim

Espadas de ferro e fogo 

Em cinco arestas de sangue


Fui apanhado de surpresa à mesa do rei

Que esboçou um sorriso sarcástico

Daquela sabedoria que alguns reis tinham

Enquanto as nuvens negras e corvos esvoaçavam em volta 

Da cabeça da tua mãe.


Traição? Injúria? 

Não foi a pequenez da tua verbe 

Que abalou o meu dia

Foi saber que a ingratidão

Assentou arraias em volta do meu castelo

E me cerca com um nó na garganta


Que importa morrer se é a vontade da natureza?

Que importa acabar esta aventura se os personagens acabaram a história?

Não desembainharei a minha espada

Porque há muito a troquei pela pena

Encontrarei um buraco fundo na minha alma

Para que todas as ofensas morram aí

E eu possa descansar em serenidade

Do amor que sempre te tive!


Basta!

sábado, 7 de setembro de 2024

Festa setecentista em Queluz

 



As feiras medievais, muitas vezes romantizadas em recriações modernas, são frequentemente lembradas como eventos alegres e coloridos, com comerciantes, espetáculos e banquetes. No entanto, ao analisar o contexto mais amplo da sociedade medieval, há muito a criticar, principalmente em relação à realidade brutal que elas encobriam.


### Guerra e violência


A Idade Média foi um período marcado por guerras constantes, sejam elas entre reinos, feudos ou contra invasões externas. Essas guerras afetavam diretamente a vida das pessoas comuns, que muitas vezes eram forçadas a lutar ou tinham suas terras devastadas por exércitos em campanha. O período de uma feira, embora pudesse parecer pacífico, era muitas vezes apenas uma pausa temporária em meio à violência. A guerra medieval não poupava os camponeses e trabalhadores, que sofriam diretamente com a destruição e o caos. Por trás das feiras, havia um sistema que perpetuava o sofrimento, onde os senhores feudais se beneficiavam das guerras e do controle militar, mas ofereciam pouca ou nenhuma proteção real ao povo.


### Escravidão e servidão


A escravidão na Idade Média, embora tenha assumido formas diferentes das praticadas em outros períodos históricos, era uma realidade crua. Muitos camponeses viviam em condições de servidão, uma forma de escravidão disfarçada. Esses servos eram obrigados a trabalhar para os senhores de terra, entregando grande parte de sua produção agrícola em troca de "proteção". No entanto, essa proteção era muitas vezes nominal, e os servos não tinham liberdade de escolha ou mobilidade social. Nas feiras medievais, a opulência dos comerciantes e senhores contrastava de forma gritante com a miséria da maioria da população, que vivia sob constante exploração.


### Abuso de poder


Os senhores feudais, que detinham o poder e a terra, eram responsáveis por proteger seus súditos. No entanto, muitos usavam essa autoridade para explorar e abusar das pessoas sob seu comando. Impostos exorbitantes, trabalho forçado e abuso físico eram comuns. Além disso, o sistema feudal permitia uma enorme desigualdade, onde os camponeses eram tratados como bens de propriedade. A justiça medieval, controlada pelos senhores, raramente favorecia os mais pobres, criando uma sociedade profundamente injusta. Nas feiras, enquanto os nobres se deleitavam em festas e competições, os camponeses continuavam sob o jugo de uma estrutura social opressiva, sem esperança de melhoria.


### Vida sem direitos


A vida medieval para a maioria era marcada pela ausência de direitos fundamentais. A lei era muitas vezes arbitrária e aplicada de acordo com os interesses dos poderosos. As feiras, por mais que representassem um momento de comércio e celebração, não podiam apagar a dura realidade de uma sociedade onde os direitos humanos, como os conhecemos hoje, eram inexistentes. As mulheres, em particular, sofriam com a falta de direitos, sendo frequentemente vistas como propriedades dos homens, tanto no casamento quanto no trabalho. Não havia proteção legal contra a exploração ou o abuso, e qualquer tentativa de contestação do poder estabelecido poderia levar a represálias violentas.


### Conclusão


Embora as feiras medievais possam ser vistas como um momento de alívio para alguns, elas mascaravam as profundas desigualdades e injustiças da sociedade medieval. A opressão feudal, a exploração dos servos, a ausência de direitos e as constantes guerras tornavam a vida medieval uma luta contínua para a maioria das pessoas. A imagem romântica de um período de celebração, portanto, é superficial e ignora as crueldades subjacentes de um sistema que beneficiava poucos à custa de muitos.

Alexandre Inácio








Fotografias de, Manuel Rodas.


terça-feira, 3 de setembro de 2024

O último desejo

 

Fotografia, Manuel Rodas


A imagem "O Último Desejo" de Manuel Rodas é uma obra que permite uma análise ainda mais profunda, tocando em várias outras dimensões filosóficas, sociais e artísticas.


### Extensão da Análise Filosófica

Além de abordar a fragilidade e a efemeridade dos desejos humanos, a fotografia pode ser interpretada dentro do contexto da filosofia existencialista. A exposição de uma peça de lingerie em um ambiente público, desprovida de seu contexto íntimo, pode ser vista como um símbolo da condição humana: a busca incessante por significado em um mundo muitas vezes indiferente. A lingerie, originalmente carregada de conotações de intimidade, desejo e sexualidade, torna-se um objeto descontextualizado, sugerindo a alienação do ser humano em uma sociedade moderna que frequentemente despersonaliza e dessacraliza os aspectos mais profundos da experiência humana.

O conceito de "último desejo" também evoca a ideia da finitude humana e a inevitabilidade da morte. Se considerarmos o último desejo como a última expressão de vontade de alguém, a imagem pode representar uma espécie de memorial visual, onde a lingerie, agora um objeto inerte, serve como uma recordação do que foi um dia um desejo vivo e pulsante.

### Expansão da Análise Social

Ampliando a análise social, a fotografia pode ser interpretada como uma crítica ao voyeurismo da sociedade contemporânea. A lingerie, que normalmente estaria escondida, é agora exposta ao olhar público, sugerindo uma sociedade que constantemente invade a privacidade em busca de sensacionalismo ou gratificação. Essa exposição pode refletir o modo como a vida privada é cada vez mais objeto de consumo público, seja através das redes sociais, da mídia ou da vigilância constante.

A imagem também pode ser lida como uma crítica à forma como a sexualidade feminina é comercializada e, ao mesmo tempo, desvalorizada. A lingerie, símbolo de sensualidade, está pendurada em um ambiente que não lhe pertence, talvez sugerindo que os desejos femininos são frequentemente ignorados ou colocados de lado em uma sociedade patriarcal que os explora mas não os respeita. 

### Expansão da Análise Artística

No aspecto artístico, podemos aprofundar a análise da composição, cor e simbologia presentes na obra. A escolha de um fundo escuro e urbano não é acidental; ela cria uma atmosfera de isolamento e frieza, que contrasta com a suavidade e vulnerabilidade da lingerie. Esta oposição pode simbolizar a luta constante entre o desejo humano de conexão e a natureza impessoal do ambiente urbano moderno.

O enquadramento centralizado da peça de lingerie também pode ser visto como uma escolha deliberada para dar-lhe um status quase de ícone ou símbolo, elevando-a de um objeto comum a um artefato de reflexão profunda. A ausência de figuras humanas reforça a sensação de abandono e solidão, sugerindo que o desejo, quando separado do contexto humano, perde parte de sua essência.

A iluminação, sutil e natural, destaca a textura delicada da lingerie, contrapondo-a à dureza do fundo. Esse jogo de luz e sombra não apenas cria uma estética visual agradável, mas também sublinha a dualidade entre o frágil e o resistente, o pessoal e o impessoal.

### Interpretação Psicológica e Simbólica

Psicologicamente, a imagem pode representar o conflito interno entre a identidade pública e privada. A lingerie, sendo uma peça de vestuário íntimo, pode simbolizar a parte mais vulnerável e privada do eu, enquanto a bicicleta e o ambiente urbano representam a parte pública, aquela que é exposta ao mundo. A maneira como a lingerie está pendurada, quase como uma oferta ou um sacrifício, pode sugerir a tensão entre o desejo de preservar a intimidade e a pressão para expor e conformar-se à norma social.

Além disso, o ato de "pendurar" a lingerie pode ter um simbolismo de renúncia ou desistência, como se a personagem implícita na foto estivesse abdicando de seus desejos ou os tivesse deixado para trás, numa última tentativa de se conectar com algo maior ou mais significativo antes de desaparecer na anonimidade da vida moderna.

### Considerações Finais

A fotografia "O Último Desejo" de Manuel Rodas, ao integrar elementos filosóficos, sociais e artísticos, oferece uma rica tapeçaria de significados. Cada detalhe da imagem — desde a escolha do objeto central até o fundo e o contexto em que ele é inserido — contribui para uma obra que não apenas captura um momento, mas também provoca uma profunda reflexão sobre a natureza do desejo, da privacidade, e da existência humana em um mundo cada vez mais alienante e desumanizante.

A interpretação desta obra não é unívoca; pelo contrário, ela convida o espectador a trazer suas próprias experiências, questionamentos e sentimentos à análise, fazendo de "O Último Desejo" uma obra verdadeiramente interativa e atemporal.


Alexandre Inácio

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Conversas com Bordalo

 



Os três continuam na conversa, agora aprofundando a reflexão sobre a função da arte e da poesia na sociedade e como essas formas de expressão podem influenciar o futuro.


**Zé Povinho:** O senhor falou em esperança, Sr. Manuel. Mas o que eu vejo por aí é muita gente sem forças até para esperar. A arte e a poesia são bonitas, mas como é que elas podem chegar a quem mais precisa?


**Manuel Rodas:** (Reflexivo) É verdade, Zé. A fome e a dor muitas vezes abafam o eco das palavras e das imagens. Mas a arte tem uma capacidade única de ultrapassar barreiras. Ela se infiltra nas brechas do coração humano, mesmo quando tudo parece perdido. A minha poesia tenta ser acessível, direta, para que qualquer um possa sentir o que escrevo, para que o sofrimento comum seja reconhecido e transformado em força.


**Rafael Bordalo Pinheiro:** (Acenando com a cabeça) Muito bem dito, Manuel. O meu Zé Povinho, por exemplo, é uma figura que fala diretamente ao povo. Ele não é apenas um símbolo, mas uma forma de comunicação. Não precisa de palavras rebuscadas para ser compreendido. E assim como eu criei o Zé para dar voz ao povo, tu usas a poesia para tocar a alma daqueles que talvez não saibam expressar o que sentem, mas que reconhecem as suas dores nas tuas palavras.


**Zé Povinho:** (Com um sorriso orgulhoso) Pois é, senhores. Parece que, no fundo, eu também sou uma obra de arte, não é? E se sou, é porque o Sr. Rafael me criou assim, com esse jeito simples, mas com muito para dizer. Mas me digam uma coisa: vocês acham que a arte e a poesia podem mesmo mudar o mundo? Ou será que só nos fazem sentir um pouco melhor enquanto a vida segue dura?


**Manuel Rodas:** (Com um brilho nos olhos) Zé, a arte e a poesia não mudam o mundo sozinhas, mas elas mudam as pessoas, e as pessoas mudam o mundo. A poesia é como uma fagulha, pode ser pequena, mas tem o poder de acender grandes fogueiras. Ela desperta o pensamento, a consciência crítica, e isso é o primeiro passo para qualquer mudança real.


**Rafael Bordalo Pinheiro:** (Com entusiasmo) Exatamente! E não nos esqueçamos de que, muitas vezes, os grandes movimentos sociais começaram com uma ideia, uma imagem, uma palavra que ressoou nas mentes e nos corações das pessoas. A minha obra sempre foi uma provocação, um convite para que as pessoas pensem sobre a sua realidade. O Zé Povinho é um espelho, mostrando as contradições e injustiças da sociedade. E quando as pessoas se reconhecem nesse espelho, algo muda nelas.


**Zé Povinho:** (Com um ar pensativo) Acho que entendi. A gente não pode esperar que a arte e a poesia façam tudo sozinhas, mas elas são como um empurrão, não é? Ajudam a gente a ver as coisas de outro jeito, a pensar em como a vida poderia ser diferente.


**Manuel Rodas:** (Sorrindo) Perfeito, Zé. A poesia, assim como o desenho, é um começo, um despertar. Ela inspira, questiona, e às vezes, até incomoda. Mas esse desconforto é necessário. Faz parte do processo de transformação. E é por isso que continuamos a escrever, a desenhar, a criar, mesmo sabendo que a mudança é lenta.


**Rafael Bordalo Pinheiro:** (Com convicção) E é por isso que o Zé Povinho continua a ser relevante, século após século. Porque ele representa essa luta contínua, essa insatisfação com o que está errado e essa esperança de que, um dia, as coisas podem ser diferentes. Enquanto houver injustiça, haverá necessidade de vozes que denunciem, que inspirem, que provoquem.


**Zé Povinho:** (Com um ar decidido) Então, que assim seja! Se a minha cara feia pode fazer alguém pensar, que o Sr. Manuel continue a escrever e o Sr. Rafael continue a desenhar. Vamos seguir juntos, cada um à sua maneira, fazendo o que podemos para que esse mundo não se esqueça de nós, os pequeninos.


**Manuel Rodas:**  Ao Zé Povinho e a todos que, como ele, continuam a lutar, a sonhar e a resistir. Que a poesia e a arte sejam sempre nossas aliadas nessa jornada.


**Rafael Bordalo Pinheiro:**  À criatividade, que nos mantém vivos e nos dá forças para enfrentar qualquer adversidade. Que nunca falte inspiração para seguirmos em frente.

A conversa termina com os três levantando os copos em um brinde, unidos pela crença no poder transformador da criatividade. Mesmo diante das dificuldades, eles reconhecem que a arte, seja ela visual ou poética, tem um papel fundamental na luta contra as injustiças sociais e na construção de um futuro mais justo.

Alexandre Inácio

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A surpresa duma vida

 O amigo Alexandre Inácio continua as suas descobertas no mundo da escrita e da ficção. Este ensaio para uma fotonovela pode ser um bom princípio. O que pensam os  leitores?






**Painel 1:**  

*Cena: Uma pequena sala de estar em uma casa de campo, simples e aconchegante. O casal idoso está sentado em cadeiras de madeira junto a uma janela. A luz do fim de tarde entra suavemente. A mulher, de cabelos grisalhos e rosto enrugado, está tricotando. Ela usa um vestido simples de algodão e um xale. O homem, também grisalho, está com as mãos trêmulas e olha para fora da janela. Ele veste uma camisa de flanela e calças gastas de trabalho.*



“ Sabes, querida, parece que foi ontem quando nos conhecemos no baile da aldeia..."


**Painel 2:**  

*Cena: Um flashback em cores suaves. Eles estão mais jovens, num baile ao ar livre, dançando sob uma árvore iluminada por lanternas. Ele segura-a com firmeza, e os dois sorriem com entusiasmo.*


"Eu sabia, desde aquele primeiro olhar, que você seria a mulher da minha vida."


Painel 3:

Cena: De volta ao presente, a mulher olha para o marido com ternura. Há um sorriso caloroso em seus lábios, mas também uma sombra de preocupação em seus olhos enquanto ela observa o tremor nas mãos dele.



"Juntos criamos três filhos fortes e corajosos..."


**Painel 4:**  

*Cena: Outro flashback. A família está reunida no campo, colhendo juntos. Os filhos são crianças pequenas, ajudando com risadas e brincadeiras. O casal troca um olhar de cumplicidade e orgulho.*

"Mas a guerra levou nosso mais velho... Foi uma dor que nunca passou, mas ficamos mais unidos do que nunca."*


**Painel 5:**  

*Cena: Um retrato da parede, mostrando o filho mais velho em uniforme militar, com uma expressão séria. A mulher olha para a foto, e uma lágrima discreta rola por seu rosto. O homem tenta limpar a lágrima dela com a mão trêmula.*

 *"Agora, esta doença lembra-me todos os dias que o tempo está passando, e eu já não posso fazer o que fazia antes."*


**Painel 6:**  

*Cena: A mulher segura a mão dele com força, segurando-a com força para  parar o tremor. Ela o olha com amor e compreensão.


 *"Mas ainda te tenho a ti. E enquanto estivermos juntos, não importa o que aconteça, continuaremos lutando, como sempre fizemos."*


,**Painel 7:**  

*Cena: O casal está sentado junto, em silêncio, aproveitando a companhia um do outro enquanto o sol se põe do lado de fora. A imagem transmite um senso de paz, apesar das dificuldades.*

“Tenho uma coisa a dizer-te.”

Painel 8

-Desculpa, mas tenho uma coisa a dizer, antes que seja tarde. O nosso filho que morreu na guerra, não era nosso filho. O nosso bebé nasceu morto e eu troquei-o por outro que estava na cama ao lado, na maternidade.

- Porque fizeste isso?

- Queria poupar-te o desgosto. Estavas tão encantada com o facto de ires ser mãe!

“Não sei se te vou perdoar!”

Painel 9

- Nao pode ser…Diz que é mentira!

- Não sei se te vou perdoar.

- Mas eu sempre fui um bom pai. Não matei ninguém e fiz isso porque te amava…


Painel 10
- Mataste aqueles pais que viram seu bébé  morto.

- Seríamos nós a sofrer…assim , poupei -te o desgosto, porque eu sofri na mesma e sozinho. Isso já foi o maior castigo!


Painel 11

- Afinal acabou por morrer na mesma.Tanto que chorei por ele, aqui desta janela, quando soube da sua morte. Choro dois filhos perdidos e um marido que me mentiu toda a vida. Isso é um castigo demasiado. Não sei se sou capaz de te perdoar, apesar de estares doente com essa tremideira das mãos…

-Mas ainda temos dois filhos e um ao outro!

-Sim, mas nada faz esquecer um desgosto e uma traiçao! E como reagirão s irmãos, quando souberem a verdade?

- O que o amor pode fazer…não precisam de saber. É o nosso segredo!



Alexandre Inácio



quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Joaquim

 




**Biografia do Velho Pescador**


O velho pescador, conhecido na pequena vila costeira como Joaquim, nasceu em uma época em que o mar era tanto o maior amigo quanto o mais temível inimigo dos moradores. Filho de pescadores, Joaquim aprendeu desde cedo os segredos das águas. Aos sete anos, já acompanhava seu pai nas longas jornadas de pesca, enfrentando as ondas e os ventos com uma coragem precoce.

A vida no mar o moldou tanto quanto as marés esculpem as rochas na costa. Com o passar dos anos, o sal marinho se tornou parte de sua pele, e o cheiro do peixe fresco, de suas mãos. Joaquim era conhecido por sua destreza com as redes e por sua intuição aguçada — ele sabia, como poucos, onde encontrar os cardumes mais fartos, mesmo em tempos de escassez. Muitos diziam que ele tinha uma ligação mística com o oceano, como se as profundezas lhe sussurrassem segredos que mais ninguém podia ouvir.

Apesar de sua fama, Joaquim sempre foi um homem simples. Nunca desejou riquezas; para ele, o mar era o suficiente. Sua casa era uma cabana modesta perto da praia, onde vivia com Maria, sua esposa, que ele conheceu em um dia de tempestade, quando ela o ajudou a reparar sua embarcação avariada. Maria era o seu porto seguro, e juntos, criaram três filhos, que também se tornaram pescadores.

Os anos passaram, e o corpo de Joaquim começou a sentir o peso de uma vida dedicada ao mar. Seus ombros curvados contavam histórias de batalhas com grandes peixes e tempestades furiosas. Mesmo assim, ele nunca deixou de ir ao mar, mesmo que fosse apenas para sentar-se na beira da praia e observar as ondas. Ele dizia que o oceano era sua alma gêmea, e que um dia, quando seu corpo já não tivesse forças, ele se tornaria parte do mar, assim como as conchas que o mar engole e transforma em areia.

Numa manhã de neblina, Joaquim partiu para sua última jornada. Ele foi encontrado no dia seguinte, deitado na areia, como se estivesse em paz, olhando para o horizonte. A comunidade se reuniu para prestar suas últimas homenagens, e naquele dia, o mar estava mais calmo do que nunca, como se também estivesse se despedindo de seu velho amigo.

Hoje, a imagem de Joaquim permanece gravada na costa, moldada pela natureza, como uma lembrança eterna de sua ligação com o oceano. Os pescadores mais jovens ainda falam dele com reverência, e suas histórias são contadas nas noites em que a lua brilha sobre as águas calmas. Joaquim, o velho pescador, tornou-se uma lenda, não apenas por suas habilidades, mas por sua alma que sempre pertenceu ao mar.

O tempo passou, mas a memória de Joaquim nunca se desfez. Para muitos na vila, ele era mais do que apenas um pescador; era uma lenda viva, uma personificação da sabedoria antiga e do respeito pelo mar. As gerações que se seguiram aprenderam, por meio das histórias de Joaquim, a respeitar as forças da natureza e a valorizar os ensinamentos transmitidos através dos séculos.

Dizem que, durante as noites de tempestade, quando o vento uiva e o mar bate furiosamente contra as rochas, é possível ouvir o sussurro de Joaquim, acalmando as ondas, como costumava fazer em vida. "O mar é nosso irmão," dizia. "Não o tratem como um inimigo, mas sim como um parceiro na jornada da vida."

Após sua morte, a comunidade quis honrar Joaquim de uma forma especial. Além das histórias que continuavam a ser contadas, decidiram erguer um pequeno memorial na praia, próximo ao lugar onde ele foi encontrado. Não era um grande monumento, mas uma simples pedra com uma placa de bronze, onde estavam gravadas suas palavras favoritas: "O mar devolve a quem o ama." Era uma frase que refletia sua crença de que o oceano, embora poderoso e muitas vezes cruel, sempre recompensava aqueles que o tratavam com respeito e carinho.

Com o passar dos anos, a lenda de Joaquim se entrelaçou com o folclore local. Surgiram contos de como ele, mesmo após a morte, guiava os pescadores durante tempestades ou os ajudava a encontrar rotas seguras em meio a nevoeiros densos. Alguns diziam que sua alma se transformara em uma grande gaivota branca, que sobrevoava os barcos nas manhãs mais difíceis, garantindo que todos voltassem em segurança.

Os filhos de Joaquim, seguindo os passos do pai, continuaram a pescar, mas também assumiram o papel de guardiões da sua memória. Eles ensinaram seus próprios filhos a amar e respeitar o mar, assim como Joaquim havia lhes ensinado. E assim, a tradição continuou, passando de geração em geração, garantindo que a essência de Joaquim permanecesse viva na vila.

Um dos netos de Joaquim, Miguel, tornou-se um dos pescadores mais respeitados da região. Herdara a intuição do avô e, embora não tivesse conhecido Joaquim pessoalmente, sentia sua presença sempre que saía para o mar. Miguel acreditava que o avô ainda o guiava e frequentemente sonhava com ele, com o velho pescador sorrindo e acenando das profundezas do oceano.

O velho pescador tornou-se mais do que uma lenda; ele é um símbolo de união entre os habitantes da vila e o mar. Em cada rede lançada, em cada peixe capturado, havia um pouco de Joaquim, um reflexo de sua vida dedicada ao oceano.

Hoje, na vila, quando as crianças perguntam sobre o velho pescador, os anciãos sorriem e apontam para o horizonte, onde o céu encontra o mar. "Ele está ali," dizem. "Nas ondas, no vento, em cada respiração que o oceano toma. Joaquim nunca nos deixou, ele apenas voltou para casa." E assim, o velho pescador continua a viver, não apenas nas histórias, mas no próprio coração do mar, onde sempre pertenceu.

Alexandre Inácio



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Esta é uma biografia fictícia inspirada na imagem, construindo uma narrativa em torno da figura do velho pescador que aparece na rocha.


sábado, 17 de agosto de 2024

Novo voo

 


Composicaofotográfica, MRodas



Novo Voo


Nasce o dia e o céu se abre,  

como um palco de luz, infinito e sereno,  

onde o velho e o novo se encontram  

num espelho de águas rebentadas.  

"Ó mar salgado, quanto do teu sal  

São lágrimas de Portugal!"  

Ecoa a voz de Pessoa,  

lembrando o preço do destino,  

do sonho de navegar pelo poema, além.  


Uma ave com suas cores vibrantes,  

ergue-se no ar, num gesto de renovação.  

Suas asas, em laranja fogo,  

pincelam o horizonte,  

desenham esperanças ainda não sentidas.  

"Quem quer passar além do Bojador  

Tem que passar além da dor."  

O poeta o diz, e o poema  o sente,  

pois só quem ousa voar,  

descobre novos sentidos.


Reflete-se no lago,  

onde o passado se desmancha,  

e o futuro aguarda em segredo.  

Suas penas brilham como aurora,  

cintilam promessas,  

no eco de um silêncio que há-de ser.  

"Todo começo é involuntário,  

Deus é o agente."  

Assim nascem os novos passos,  

de um voo que se faz poema,  

nos céus de uma alma errante.


E ao tocar o céu,  

ele dança com o vento,  

livre de amarras, de medos antigos,  

buscando o que é seu,  

no destino dos que ousam.  

"E se mais mundo houvera, lá chegara,"  

declara Camões, em versos eternos,  

e a lira, em seu esplendor,  

alcança nova luz e novos heróis.


É um voo para o desconhecido,  

um mergulho no próprio ser,  

onde o fim se encontra com o começo,  

num ciclo eterno de renascer.  

"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,"  

Voa Pessoa ainda  mais além,  

em busca do rio que não tem nome,  

onde o sonho se encontra com a realidade.


Ave renovada de fulgor em cada sílaba 

carrega em suas asas a história,  

e convida a desenhar as letras  

rumo ao nosso poema de cada dia.

"Valeu a pena? Tudo vale a pena  

Se a alma não é pequena,"  

canta Pessoa, e a alma responde,  

no silêncio do voo,  

que todo começo é a promessa  

de um novo e eterno renascer.


Alexandre Inácio