terça-feira, 1 de setembro de 2020

Acredito

Acredito que vou morrer
e não tenho medo da morte
desse ir silencioso
sem ruído nem luz ou aplauso
só o silêncio frio a paz sem emoção
a tranquilidade tranquila e segura

A vida vai continuar
e talvez um dia
nos encontremos nas estrelas
ou num grão de areia à beira mar
ou apenas 
na leitura destes poemas

Por eles virei até ti
saber como sorris
e se ainda queres mudar o mundo
com tintas e bandeiras
riso e amor profundo...

MRodas


A bruxa


Quem foi a bruxa alada
que te levou de mim
ver-te parada e suspensa
numa névoa opaca 
de paredes prestas sem luz, nem sombra?

Quem foi o malfeitor 
que suspendeu o teu riso
deixou-te ao frio
presa nas palavras
que não sabemos?

Agarro-te, abraço-te
mas estás moribunda 
em tua vida mais profunda

Ó deuses
ó nuvens, ó sol e lua
forças azuis e verdes da natureza
raio sideral
a vós apelo
que o vosso sussurro
se erga em luz
 e indique o caminho
e nos liberte
do labirinto e do silêncio
destrua estas paredes
que fingem sentimento
mas não deixam passar 
nem luz, nem vento

Eu olho, mas não me vês
Eu olho, mas não te vejo...

Se o olhar cegasse e a alma, finalmente, visse...

MRodas

Agosto existe


Agosto existe
na memória do tempo quente 
abraçar a gente
e de repente
ficar triste

Porque

Agosto já não existe
foi-se
nas noites quentes e suadas
de desejo e frenesim
último mês do ano

Porque

Agosto já não existe
na memória do tempo
e dos corpos suados
suspendeu-se o frenesim
Abel matou Caim

Porque

Este Agosto nunca existiu
fugiu
e nós à espera duma vacina
para a raiva 
de ver o tempo a fugir!

MRodas

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Sol da rua

Para a Inês Pinto, no dia do seu aniversário!




O sol nasce à esquerda da nossa moradia
E espera todo o dia
Pelo teu riso e pela lua 
Para Namorar na nossa rua
E ir adormecer na imaginação
Do teu sorriso pela mão

Onde habitam os sonhos!

MRodas

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Desfolhada

A partir duma fotografia com 5 espigas vermelhas de Diamantino Fernandes


Eram cinco espigas vermelhas
rubras do desejo na saliva do teu olhar
Eram cinco noites de luar
Cinco vezes outras tantas
E o suspiro de te abraçar
E a raiva de te perder

Cinco vezes te percorri
E cinco vezes tu me tiveste
Em cada grão de milho rubro
Da cor de cada despedida

Não sei se era desfolhada ou vindima
Sabias a mosto
A pão e fruta madura

Em cada dia
até o sol morrer
Em cada vida
Até a vida nascer

MRodas

terça-feira, 25 de agosto de 2020

O gaio






Quando era menino tirei um gaio dum ninho
Todos os dias tratei dele e ficava encantado a olhar as suas penas coloridas

Eu cresci e fui de férias!
Quando voltei alguém o tinha libertado e eu nunca mais parei de voar!

Voava no teu sorriso e nos teus sonhos
Voava nos textos de sacola às costas a caminho da escola
Voei enquanto as asas quiseram
E antes das penas se soltarem.

Não foi o sol que derreteu as minhas asas
Foi antes a falta dele
Que deixou de iluminar a minha rota
E as flores foram morrendo no meu caminho.

As asas murcharam e empunhei a espada
Em vão.
Morri na mesma!

MR

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

É o fogo






Ouvia os meu passos na escada de madeira
e íamos passear os teus 4 anos ao jardim dos patos
Ias de saia azul e fita no cabelo
e os teus pés aprendiam o doce equilíbrio da vida

Reparávamos em tudo à nossa volta
as ervas, as flores, os arbustos verdes e a nuvem refletida na água
dançando em círculos reflexos nas patas dos patos
e nas cabeças hesitantes dos cágados

Um dia quiseste rebolar na relva dum alto
que para ti seria uma montanha
Esperei ao fundo
enquanto te via bolear na erva verde
e o meu coração ansioso pelo mal que te poderia acontecer

Mas perguntava me
que mal pode acontecer
a não ser a tua saia com manchas de verde
e as faces róseas pintadas de vermelho?
Também eu já tinha rolado por quantas montanhas
quantos declives de ervas e pedras...

Fomos crescendo
com essa imagem de crianças felizes
a confirmar nos meus olhos
a felicidade que ia nos teus

Todas as manhãs corríamos para a carruagem
que nos iria levar ao teu palácio
onde aguardavam outros príncipes e princesas
entregues às mãos duma rainha
tendo a certeza que no final do dia
iríamos descobrir a forma de levar água ao loureiro
e matar a sede dos peixes vermelhos

Foi mais tarde que vieram os estranhos
e habitaram as tuas noites
enquanto eu ficava à espera
sentado no tapete da entrada
que o declive trouxesse nova luz
e os maus desaparecessem para sempre

As sombras  instalaram-se nas nossas vidas
usurpando os abraços e sorrisos que tínhamos guardados
Resistimos aqui, onde a humanidade começou
e alguém gritou: não é! É fogo!

Agora sei que a viagem não terminou
que sou pai, irmão, avô, primo e sobrinho
todas as formas que o amor pode ser
por mais verde que seja o verde
e mais escuras as sombras que nos habitam

Deixa- me dizer-te
com as mãos a agarrar as raízes de flores que hão de vir
tenho saudades de nós e ...dos patos!

MRodas



segunda-feira, 20 de julho de 2020

Alcobaça e a invenção do amor


A visita ao mosteiro de Alcobaça deixou-me a pensar quando foi a primeira vez que o amor apareceu na história da humanidade. A amiga Lena disse que foi antes da invenção do fogo! Achei graça, pois o frio a isso conduziria...
Podia ter sido com Adão e Eva, disse o Vitor. 
Para mim, não podia ter sido com Adão e eEva porque eles não tinham opção de escolha. Eram únicos e nem sabiam da existência de outros e todo o amor implica escolher e ser escolhido. 
No filme da Guerra do Fogo, o amor surge entre duas pessoas de diferentes tribos, que ousam enfrentar os desafios que a vida lhes oferece, mudar de tribo, de hábitos e adotar uma nova comunidade e...olhar de frente o companheiro quando fazem amor! A mudança de posição convoca- nos para a humanidade do amor!
Nesta visita, sentei-me num degrau lateral e, contemplando os dois túmulos de Pedro e Ines, pensei em histórias  de amor e desamor que conheço da literatura, Amados de Gaula, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Frei Luís de Sousa e o nosso esquecido Amor de Perdição...
Mas este drama de Inês e Pedro perdura na nossa memória coletiva como referência aos amores impossíveis...
Foi assim que os vi, ali deitados, um ao lado do outro, para sempre, sem se poderem tocar, embora possa imaginar as longas conversas na solidão noturna do mosteiro, porque de dia é impossível, com os visitantes em volta, a tirar fotografias e espiolhar os pormenores das pedras frias...





quarta-feira, 8 de julho de 2020

Paradela de Soajo





Em 1657, D. Vicente Gonzaga, governador de Armas da Galiza, mandou atacar o castelo de Lindoso. Foi renhido o combate, mas os portugueses levaram os espanhóis de vencida, causando-lhes duzentos mortos, entre eles alguns oficias e nobres.

Pouco depois voltaram os Espanhóis a atacar Portugal, pela serra Amarela, com seiscentos homens de infantaria e alguns de Cavalaria.

Manuel de Oliveira Pimenta, com as forças de Lindoso, desbaratou-os, apoderando-se da presa, que eles tinham tomado.

Este combate está descrito por uma testemunha ocular no documento que vou transcrever. Fazia parte dos manuscritos do grande genealogista Manuel J.C Felgueiras Gaio e veio-me parar à mão por amabilidade do seminarista Leonardo de Oliveira Faria

Uma testemunha, que era criado de Amaro Pimenta, sobrinho do poeta Diogo Bernardes e Frei Agostinho da Cruz, narra os factos numa linguagem despretensiosa e popular, que respeito o mais possível. Começa por fazer referência a uma anterior notícia do combate, que não aparece na miscelânea, onde encontrei o documento que passo a transcrever.

 

No dia em que tive esta relação, chegou um criado meu com sua mulher, de Lindoso, que me recolhiam a renda, e disseram que os galegos seriam oitocentos homens de pé e mais dum cento a cavalo. Vinham três mangas, uma da parte norte do castelo e outra do sul, que era a de maior poder e outra que era menor trazia oitocentas cabeças de gado de Vileirinho e Fornos da Ermida de Lindoso.
Começaram a queimar o lugar de Lindoso, que foram cinquenta e duas casas, fora os cereais e celeiros.
A esta guerra acudiram de Soajo, duzentos homens de um lugar de Paradela, que andando os nossos a brigar com os galegos da parte norte, mataram muitos e os fizeram fugir, acudiram os nossos e os soldados e de outro lugar que tem aí na serra de Soajo e deram na manga do sul, de maneira que os fizeram fugir. E na retirada mataram mais de duzentos e se eles não fossem fugindo, não havia de ficar nenhum galego que eles não matassem. E de um monte alto botaram penedos que faziam muito pezar na cavalaria.
As mulheres também brigaram num lugar que está junto a Lindoso, no Real e o defenderam com pedradas para que o não queimassem. Os soldados que eram cinquenta, com mais oito da Ponte da Barca e com os moradores de Lindoso e os que acudiram de Soajo fizeram maravilhas e depois acudiram ao gado que o tomaram todo ...[1]
Paradela, o pequeno povoado, situado em dois terraços rochosos, sobranceiros à margem direita do Lima está concentrado em dois núcleos habitacionais, em torno de duas fontes de água fresca, a do Regueiro e a do Santo. 
É a água que organiza as casas e alimenta os campos e são estes que condicionam a vida. A água e o sol dão a cor aos campos e matas, mas é o granito que que cria as fundações, para suster a água, as terras, os passos de quem vai e volta e abriga os homens e os medos, as alegrias e tristezas, nas casas escuras e frias.
Um caminho feito de pedras e terra ladeia a todo o comprimento a sul enquanto outro, norte sul, delimita os que estão de Cima dos que estão em Baixo, todos abraçados na mesma identidade.
A introdução do milho ‘mays’ por altura destes acontecimentos, obrigou a um melhor aproveitamento das terras disponíveis e rentabilizaram-se os terrenos onde antes estavam as hortas, os campos de feno, as cercas de carvalhos, as tapadas de tojo, os soutos de castanheiros, ou o generoso baldio, em toda a região norte e também em Soajo e lugares limítrofes.
 O processo de apropriação e adaptação do solo foi lento exigindo um denodado trabalho de reconstituição e melhoria dos solos agrícolas, incluindo a "despedrega", o nivelamento e a limpeza, assim como a reconstituição da camada de terra arável, a primeira sementeira em caso de pastagem e a replantação de árvores de fruto. Com o milho foi preciso aprender todo um novo ciclo do pão, que ia desde o roçar os matos, inventar novos instrumentos de corte e transporte - adaptando os que já havia, como carros de bois e enxadas -, estrumar os terrenos, lavrar, semear, mondar, regar, cortar, desfolhar, debulhar, moer o grão, peneirar, fermentar a farinha, enfornar e finalmente saborear um pão doce como o mel e loiro como o sol.
Para a rega do milho foi necessário fazer o alargamento do regadio por uma intrincada rede de regos e levadas partindo de poças e charcos, explorar pequenos olheiros mais distantes, extrair o precioso líquido e encaminhá-lo para locais onde depois se faria a distribuição, de acordo com o tamanho dos campos e dando sentido a todo um conjunto de regras de rega.
aproveitamento da água também serviu os moinhos de rodízio horizontal, em granito, cujo número aumentou extraordinariamente e que anos mais tarde a insensibilidade da EDP e das autarquias haveriam de destruir.
Com a introdução do milho também aumentou o número de galináceos, porcos e um aconchego às vacas parideiras permitindo maior quantidade de leite para os vitelos e seus donos, um quotidiano mais desafogado e planeado, não sujeito às improvisações de quem precisa de todos os dias procurar o que comer.
Com a farinha alteraram-se hábitos alimentares, aprendeu-se a fazer, além do pão, o bolo da pedra, farinha amassada e estendida em cima duma pedra estreita e circular esquentada e exposta ao fogo da lareira. Fizeram-se as bicas, os enchidos, o caldo de farinha, as papas de leite e bolos de milho. Com as barbas do milho fizeram chás e da farinha cozida com vinho se esquentaram muitas dores e entorses.
No interior dos agregados houve necessidade de ampliar a capacidade de armazenamento dos grãos, com caixas e baús, optando muitas famílias pela construção dos caniços em varas e as mais numerosas e abastadas, os espigueiros em pedra, concentrando-se a maioria no mesmo local.
Esta alteração no modo de viver destas gentes, implantou outras rotinas e ao mesmo tempo, decorria o ciclo dos trabalhos agrícolas: estrumar, carrejar, lavrar e cavar, semear, mondar e regar, cortar os fenos, tratar das hortas, vindimar, roçar. Cada uma destas atividades subdividia-se num conjunto infinito de tarefas, que calejando as mãos, atiram com os pensamentos para outras paragens, outras lisboas, onde se ganhe mais ! 
Com o cultivo do milho foi necessário ampliar a rede de trabalho solidário e comunal, já experimentado na divisão de tarefas na pastorícia, através da “vezeira”, em que cada “vizinho” se disponibilizava para a guarda da rês, à vez, uns tantos dias por semana, ou mês. Assim se desenvolveu o primeiro “banco de tempo”, onde cada indivíduo, de livre vontade, emprestava o seu trabalho a outro, durante um número de dias, que lhe seria devolvido, equitativamente, quando necessário nos seus próprios afazeres, em datas acordadas, consensualmente. 
O trabalho é sempre duro, em qualquer parte!
Uma vida paralela decorre da manutenção dos gados. A pastorícia, vacas cachenas adaptadas às agruras da serra, ovelhas e cabras e alguns burros e cavalos, ocupa a outra parte do tempo, que o milho e as hortas e o cuidar dos filhos, velhos e doentes deixam livre.
O nascimento, venda ou criação das crias, ensinar a trabalhar no arado ou no carro de bois, às novas gerações de animais e pessoas, levar à serra na primavera e trazê-las no outono já prenhes, algumas para contrabandear ou vender na feira de Soajo e outras para assegurar a manutenção da família com leite e trabalho. Só são comidas quando por acidente, os donos se obrigam a matá-las, por necessidade, e os vizinhos a comprar uma porção, por solidariedade. 
A estes, sobrepõe-se o ciclo da vida das gentes: batismos, namoros e casamentos, separações e funerais. 
 Passaram 15 gerações depois dos acontecimentos em que a solidariedade antiga se manifestou com os povos de Lindoso, em 1657, e a valentia destes homens e mulheres ficou na memória, de pais para filhos, de geração em geração.
Durante três séculos a vida correu entre sobressaltos, preocupações e cuidados de quem sabia estar entregue a si próprio, aos vizinhos e a Deus! 
  A aldeia continuou como uma ilha viva, que se mexe, respira e vive, por ciclos,  ciclo da vida das gentes, batismos, namoros e casamentos, separações e funerais, o ciclo dos trabalhos agrícolas e da pastorícia e o ciclo das festas periódicas, onde se cruzam a fantasia, a cultura e a religião. A saúde e a doença, o amor e desamor, a vida e a morte.
Por volta dos anos cinquenta e até final do século XX a aldeia sangrou-se de gente. Correram mundo, outras lisboas e outras franças, ajudaram outros lindosos, por lá ficaram e os filhos e netos não querem voltar. 
Hoje, os Bombeiros fazem simulação de incêndios e reunem 30 pessoas em volta da capela, depois do toque a rebate do sino. 
É agonia duma terra antiga, agonia do interior perante a cidade, hidra devoradora, que tudo consome, de goela aberta até se consumir a si própria!

7/2020
Manuel Rodas



[1] [1] In, Subsídios para História da Terra da Nóbrega e do Concelho de Ponte da Barca, ed. Centro Cultural Frei Agostinho da Cruz e Diogo, Bernardes, Ponte da Barca,1997

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Guilhermino



A aldeia e arredores dormem tranquilamente. 
Hão de acordar cedo. Mas, mais cedo que as aldeias, acordam os animais dos montes e os galos e só depois, o Guilhermino. 
Desde cedo os pais lhe notaram uma estranheza. Tinha dificuldade em sorrir e não dirigia o coração no olhar para os olhos da mãe e do pai, nem para ninguém.
Crescera a evitar o contacto com os outros e baixar a cabeça para o chão, quando alguém o chamava. E julgando desviar os olhos, julgava esconder-se do olhar dos outros, evitando que os outros o vissem. E de tanto porfiar, foi-se tornando invisível.
 Sempre escolheu estar só, com as suas pedras, os seus bugalhos, a descobrir os segredos que estes refletiam da sua alma, num percurso de silêncios e invisibilidade das emoções e dos sorrisos ausentes. 
Para Guilhermino tudo era difícil.
Apesar de todas as maleitas tinha-se feito um rapagão. O pior era quando os outros o chamavam para o trabalho, para as danças, para a conversa ou divertimento, isto é, para a vida em comum.
Guilhermino olhava-os aborrecido, reagia com manifesto desagrado e corria a meter-se no seu buraco. Um lugar escuro, sombrio e longínquo.
O moço é chocho! - diziam a rir, enquanto abanavam a cabeça a reconhecer a impossibilidade de o compreender.

Após a morte dos pais, vive sozinho num casinhoto encostado aos outros, mas só nas pedras da parede, porque a alma vagueia pelas sombras e inquietações de quem não pode estar com os outros.

É invisível quando amanha a horta, planta as couves e as nabiças, as cebolas e as alfaces, as batatas e os feijões. Pode ser invisível, mas a vida tem premências e exigências que é preciso satisfazer!
É invisível quando pastoreia as ovelhas, pelo Bucanal adiante até avistar a veiga da Várzea.
Regressa a casa, tarde, pelos caminhos que descobre solitários, às escondidas, como se a vida pudesse ser contornada nas suas esquinas, menos duras e inflexíveis que os vizinhos!
Não chega a sentir humilhação na sua condição de solitário, porque para isso é preciso estar dentro dum conjunto de referências e abraços da comunidade. Vive numa fronteira entre o possível e o desejável, onde a luz ofusca e a sombra engrandece, mas já dentro da sua humanidade.
Mesmo quando os rapazes mais audazes vão sorrateiramente empurrar o bolo da pedra, junto ao borralho, por uma fenda na parede, ele não lhes reconhece a existência e diz para si próprio, 
o raio do bolo tem sono.
 Não acredita noutra possibilidade para o bolo cair. Ele não tem vontade própria, porque cai? Guilhermino está fora, apesar de viver dentro. Vagueia pelos ares, observa a terra e o pó, mas não se lhes mistura.
Não sabe explicar como lhe aparecem batatas à porta, às vezes couves, ou um bocado de pão, embrulhado em folhas de couve. 
Para ele é um mistério. Há vontades que a vontade desconhece.
A aldeia divide-se entre a aceitação e a exclusão. Também eles preferem ficar cegos e não o ver, ou pelo menos só ocasionalmente. Cada um faz a sua vida, ajudam-se mutuamente, quando necessário, são solidários, mas aquele é diferente... e recusam-se a vê-lo, vivente subalterno, porque não o reconhecem como um igual. É diferente! Não é mensageiro do diabo, se deus o marcou, algum erro lhe topou, mas também não é a imagem e obra de Deus. 
Vagueia por ali, no espaço intermédio.
A consciência dessa diferença manifesta-se no agradecimento a Deus por não ter castigado nenhum dos seus filhos e por não existir ninguém na família com aquelas características, enfim, chocho!
Não se sabia porque Deus tinha castigado aqueles pais, que mal teriam feito, mas Quem tudo sabia e tudo podia, lá teria as suas razões.
Não havia conversa, não ouvia, nem era ouvido, não era reconhecido, nem visto, não existia na zona clara da consciência, apenas na penumbra esfumeada da memória.
Havia muita coisa que ninguém sabia explicar, e ainda menos ele próprio. Coisas da vida, da morte, do dia e da noite!
Também ele não sabe explicar porque vem de noite aquela criatura meter-se com ele na cama, afagar-lhe o corpo com as mãos até os membros endurecerem, possuí-lo e ir embora na calada da noite, sem um ai, ou um beijo.
Ele pensa que é um sonho, mesmo quando olha para a cama manchada, e a porta entreaberta, o cheiro acre-doce do sexo.
Na primeira noite, ainda estremunhado, sentira uma mão quente no meio das suas pernas nuas. E gostou. Pensou em gritar e fugir, mas aquele calor quente no meio do sonho, tanto podia ser realidade como invenção sua. Deixou-se ficar quieto a saborear a doce surpresa. Quando por fim descobriu que o seu corpo se desflorava em gritos e estertores e a carne humedecida esquentava, disse, obrigado.
Não sabe quem é, se nova ou velha, mulher ou bruxa. Nem sequer sabe se é homem ou mulher. Alguém que lhe entrava na cama e não na vida. Seria incapaz de o reconhecer de dia, mas já lhe conhecia o corpo e as mãos. E durante muito tempo deixou-se ficar preso naquelas mãos que o afagavam com ternura. E nos braços fortes que o apertavam.
Depois, à medida que o tempo ia passando, começou a fixar-se nas pernas longas e quentes que o abraçavam e tremiam, a fervilhar de gozo. Aquele corpo quente e suave que se lhe oferecia, em convulsões de prazer e gemidos de luxúria. 
A porta fica sempre na taramela. 
As noites vão correndo a intervalos de gozo e prazer.
Mas como não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe, as visitas começaram a ser espaçadas até que foram interrompidas, sem se saber porquê!
Essas noites tinham sido os momentos mais importantes da sua vida e inexplicavelmente deixaram de existir, foram riscadas, apagadas. Talvez nunca tenham existido, pensava Guilhermino. 
Há o prazer da carne, há o antes e o depois, que é nada. Talvez seja a minha cabeça doida - filosofava ele, abraçado na insónia.
Teve um pressentimento indizível, quando ouviu o sino a tocar a defuntos. Era uma compressão no peito até lhe chegar à garganta que não deixava passar, nem a sopa, nem o presigo.
Ele deixou-se ficar todo o dia com as ovelhas, longe da confusão e das pessoas. Nunca tanto olhara para o Castelo de Lindoso e a serra Amarela, bem lá mais longe do que a sua vista alcança.
Foram várias as noites em que ficou acordado. Ouvir os ruídos e silêncios da aldeia. Deitar, acordar, trabalhar e comer. Pessoas e animais, ventos e chuvas. E outras coisas invisíveis, que vagueavam pelos caminhos da noite, nas veredas do pensamento solitário, entravam pelas frinchas e se ululavam nas mantas da cama.
Nunca mais a taramela se mexeu durante a noite. Nunca mais.
Quando um rapaz deu a notícia no Eiró, 
o ti Guilhermino está a chorar, 
ninguém queria acreditar que ele tivesse retornado ao mundo conhecido das emoções e sentimentos. 
Quem? O Guilhermino?
Algumas mulheres curiosas que se alimentam das desgraças alheias vão a correr ver o sucedido. Sentado, em frente a sua porta, Guilhermino chora copiosamente, esconde a cara debaixo do braço e aponta para a taramela, silenciosa 
Entreolhadas, as mulheres olham-se entre o riso e a inquietação. 
Que quer ele? Porque chora e aponta para a porta?
Sem respostas e condoídas da tristeza alheia, uma a uma desandam dali, 
Coitado,
deixá-lo, ele é chocho!
Guilhermino só voltou a ser visível quando morreu. É muito melhor evitar diversos predadores imaginários do que ser comido por um real.
Partiu à descoberta de todos os invisíveis que vagueiam por este mundo e o outro. E por ação da morte, a parte tornou-se o todo, o escuro ficou claro, a inquietação tranquilidade e a tempestade dissolveu-se num bafo sem fim. Eterno.
É preciso fazer-lhe o funeral e apesar de se saber que nunca se tinha confessado, não se sabe se tinha sido batizado. Quem o vai vestir e aprontar? Quem fará a vigília noturna? Quem lhe vai abrir a cova? Quem o levará em ombros até à entrada no paraíso? Chamar o padre será o mais fácil!

2020
Manuel Rodas