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segunda-feira, 7 de julho de 2014

As putigas

Um dia, ela pegou no cântaro e disse:
- Queres vir às putigas?
- Quero!
Sempre que podia ia de mão dada. A mão erguia-se acima da cabeça, procurava a dela que estendida agarrava a minha. Era mais seguro e sabia-me bem o calor húmido do corpo.
Pelo caminho, já perto da mina, assustei-me com um levantar rápido das perdizes e o piar dos perdigotos. A mãe, ou o pai, ou os dois de longe chamavam os filhotes, e estes visivelmente espavoridos corriam entre os fetos e os sargaços, urzes e giestas, numa azáfama de corações enlouquecidos...até permanecerem imóveis de rabo pro ar a passarem despercebidos, os marotos...
Ela ria-se, dos medos e das nervosas criaturas.
- Olha aquele tão pequenino... como ele corre...
- E não se perdem da mãe?
- Não... eles sabem orientar-se...
Às vezes caminhava atrás dela e olhava para as pernas longas e brancas no verão e escuras de meias no inverno.
A pouco e pouco fui tendo a certeza que ela sabia e não dizia nada. Comprimia levemente os lábios vermelhos, semicerrava os olhos em desalinho e sorria num desafio. Às vezes apertava a saia contra as pernas e fazia um sorriso benevolente, com um meneio de cabeça, em sinal de desaprovação, mas que eu entendia mais como um estímulo para continuar, do que uma recusa ou reprimenda séria...
As pedras também tinham segredos. Espreitava e se podia virava-as ao contrário e o que procurava?
Corredores e corredores esculpidos na terra por centopeias ou bichos-de-conta.
Tantas pernas... e não se enganavam. Se se enganassem podiam começar a andar para trás, ou tropeçar umas nas outras e fazer cair o corpo avermelhado.
Os sargaços, uns arbustos rasteiros, sarapintados de flores brancas e exalavam um perfume entre o mel e o acre resinoso. Junto à raiz nasciam umas protuberâncias vermelhas, do tamanho do indicador, com as pontas amareladas. Arrancava-as e depois de espremidas soltavam uma gelatina gostosa que leitosamente absorvíamos com os lábios e fruíamos da natureza, em estado puro. Eram as putigas.
- Queres vir às putigas?
Era maio. Elas ofereciam-se em forma de pinhas, com gomos amarelos vibrantes!
Do lado esquerdo do quintal havia umas escadas de granito íngremes. Era o sitio onde as pernas dela eram maiores, até cima, ao escuro... Era também o local onde mais sorria e... não dizia nada. Às vezes abraçava-me... e sorria...
Eu sentia que o vento era mais forte, o sol queimava mais e o azul do céu estava mais perto e as ervas, as plantas e os animais se afastavam de mim como se estivesse a flutuar. As cores e os cheiros eram mais intensos e lá no fundo ninguém me acenava e eu não via ninguém...flutuava…um grão de pó entre o tudo e o nada, na fronteira precisa entre o dia e a noite, entre o desejo e a morte.



sábado, 13 de julho de 2013

Os imigrantes


Nos anos cinquenta, o meu pai era Guarda-Florestal e vivíamos no meio da serra, numa casa com 3 quartos, um escritório, uma cozinha, 2 arrecadações e uma casa de banho. Havia ainda um sótão misterioso e as gateiras sob a casa por onde entrava o ar e se escondia um coelho doméstico, mas que resolvera viver em liberdade, até que um dia…um cão estranho…o comeu.
Em volta da casa havia um grande largo, onde, quando nos deixavam, corríamos de manhã à noite. O terreiro para além de ser sala de estar e de visitas, era verdadeiramente o coração da casa. Nada acontecia na casa que não se soubesse primeiro no largo e nada acontecia no largo que não se soubesse primeiro em casa.
 Do lado de baixo (sul) do terreiro e num patamar inferior havia o quintal. Do lado este, a 40 metros, a ribeira, o cortelho dos porcos, o caminho para Soajo e Adrão. Foi neste caminho, junto ao pau do fio (poste com fio do telefone), que o meu pai, de cabeça perdida perante a recusa persistente do nosso burro “Cadete” em ir a Soajo transportar 2 garrafas de gás, disse ao Tio Chico da Florinda :
- Vá lá a casa e diga à minha mulher que lhe dê a pistola, que eu vou matá-lo!
Quando o Cadete ouviu isto, começou a andar, disposto a ir onde fosse preciso! Grande burro, o Cadete, ah!
Do lado Norte, o caminho para  a Várzea e Paradela, o cortelho dos pitos, o caniço de varas, depois o dos cães à esquerda,  a seguir, o das ovelhas à direita, a corte das vacas, galinheiro e o forno ao fundo,  e por fim, lá no alto, sobre a esquerda, o dos burros. Era aqui que a burrinha branca do meu avô vinha parar quando o peso dos netos era excessivo. O primeiro fazia força com as mãos na padieira da porta e os detrás iam caindo uns por cima dos outros, enquanto ela se refugiava lá dentro, resguardada de nós, pelas pedras.
A oeste, o tanque, onde minha mãe lavava e estendia a roupa e nós tomávamos banho, bifurcando-se este, para a Mina e para o caminho de Cunhas e de Soajo.
A água era extraída duma mina, mesmo do interior da serra. Às vezes, às escondidas eu e meus irmãos aventurávamo-nos a descobrir-lhe as origens, mas quando ficava mesmo muito escuro e já não havia fetos e ervas e só se ouvia a água a correr pelas paredes frias de pedra, gritávamos a ouvir o eco, mas este era tão real, que nós fugíamos dali, com medo. Mas saíamos de lá com a certeza que havia mais mundos e nós tínhamos entrado lá… 
Para mim foi sempre um espaço mágico e sedutor, que me enchia de admiração e respeito, aquela entrada escura, no volumoso corpo da serra, rodeada de ervas e fetos, donde brotava água límpida e fresca… onde apenas se ouvia a água e uma leve brisa, ao fim da tarde…como um murmúrio de sedução.
Era no sótão que o meu pai tinha colocado o motor e as baterias, a nossa central eléctrica! O motor aquecia a gasolina, mas continuava a roncar a petróleo, por ser mais barato. Como se enchia de carvão, muitas vezes o meu pai tinha de o limpar. Desmanchava as peças todas, parafusos, velas e bielas carburadores e filtros, limpava-as com petróleo e por fim, fazia o caminho inverso, voltava a montá-las, perante o ar duvidoso e divertido da minha mãe e a minha mais completa admiração. O que é certo é que quando ele puxava a corda e o motor arrancava um uivo ou um rugido, o meu pai exibia um sorriso de triunfo, semelhante ao de Deus quando a terra começou a girar pela primeira vez!
Nesta fase, o meu pai era um mágico eloquente! Uma vez deixou cair um pouco da água das baterias no meu braço. Admirado senti a irritação na pele. Como pode a água arder? Como pode a água subir numa mangueira e esvaziar o poço? Como faz para acender as lâmpadas, como sabe ele fazer sabão? Quem lhe ensinou a bater o ferro em brasa e a cortar a madeira? A fazer dobradiças e portas? E a fazer cortiços e crestar as colmeias? A fazer regos e plantar as couves e alfaces? A escavar o barro e fazer compressas? A escolher as ervas e fazer chá? A matar a ovelha e esfolá-la, a matar o porco e salgá-lo? Quantas histórias sabe ele?  Como pode, como sabe… dar ao pé e ensinar a minha mãe a costurar na máquina, bater tão certinho nas teclas da máquina de escrever e ler as linhas que lá estão? E o nome das plantas e árvores? A quem reza? Porquê? Como faz para desenhar aquele sorriso na face da minha mãe?
 Como sabe o nome de todos os trabalhadores? Eram tantos! Porque lhe obedecem e o tratam por senhor?
Quando “davam o salto” para França, alguns homens confiavam-lhe o dinheiro, que entregaria aos passadores, mediante a apresentação duma carta recebida pela família, em como a viagem tinha corrido bem.
O meu pai sabia quem ia para França, ou para a América e ficava a olhá-los, seguia-lhes as pegadas com um sorriso … de esperança  e de admiração. Alguns vinham despedir-se, alguns pedir dinheiro emprestado e outros confiavam-lhe o pagamento aos passadores. E gostava de ouvir os relatos deles quando vinham de férias. Aquilo era tudo à grande… e à francesa. O problema era a língua, os documentos, que eles apelidavam de “papéis” e o serviço militar. Aí o meu pai discordava : Primeiro faziam o serviço militar e depois de pagar essa dívida à nação, depois sim, podiam ir para onde quisessem. Alguns não podiam entrar legalmente e havia notícias que a GNR os tinha ido buscar a casa, mas só tinham encontrado gatos e aranhas…
Enfim, traziam muitas histórias, muitas aventuras dum povo tresmalhado por essas cordilheiras dos Alpes e pelas ruas de Paris, muitos francos e eu só me perguntava porque tinham de voltar e deixar outra vez a família, a mulher e os filhos…
Quando uns de Soajo foram para o Canadá, as mulheres, que costuravam na beira do largo em volta da casa em Ramil, sorriam duma forma brejeira, com olhares cúmplices e eu não sabia que terra era essa que só o nome arrancava sorrisos disfarçados, mas o meu mundo alargava-se para outros mundos… mesmo sem ter ido ao Canadá!
Ainda hoje me pergunto, porque não há mais histórias escritas, mais filmes, mais produção cultural e artística desse povo que deixou tudo e foi procurar uma vida melhor. Onde estão os autores dignos desta enorme aventura colectiva? Terá de ser a próxima geração a redescobrir esta gesta? Alguma vez foram homenageados nas festas do concelho, por exemplo? Quem sabe um dia ainda vamos ver a Casa das Artes  com uma programação focada na emigração, ou um grupo de emigrantes de mala na mão, à noite,  a descer o Vez, por baixo da ponte velha, pela mão do Mocuna?
Se os emigrantes fossem provenientes doutras classes sociais teriam o mesmo tratamento? Mas afinal foram os mais insatisfeitos e inconformados com o que a sociedade e a vida lhes reservava, os mais audazes  e construtores de futuros, que partiram. Tomaram o destino nas mãos e participaram na construção doutras terras, doutras paragens e com isso re-inventaram-se enquanto pessoas e cidadãos, duma cidadania mais universal e geral.
Portugal tem vindo desde o sec. XV a ficar sangrado destes homens inconformados que arriscaram tudo, à procura do sonho duma vida melhor. Foi gente com ideias novas, iniciativa, projecto, missão, vontade de arriscar, coragem, que partiram e … poucos voltaram! Primeiro a carreira da Índia, depois o Brasil, África e finalmente a Europa e América!
Portugal seria concerteza um país diferente se este fermento, tivesse levedado cá,  neste torrão pobre e isolado e tivesse produzido afinal … o milagre dos pães! Porque de milagre precisamos para re-inventar uma outra forma de nos olharmos, viver e construir uma sociedade onde comprar por 10 e vender por mil seja um roubo e ter um bom emprego não seja um local, onde não se faz nada e se ganha bem, onde a justiça se entretém com os ladrões de galinhas, pune os que roubam as bicicletas e deixa em paz os gananciosos magnatas finaceiros. Onde a corrupção impera e cada um fica a pensar “ Se fosse eu, fazia o mesmo”. Onde no exame de admissão à Magistratura, os 170 candidatos copiaram descaradamente e no final têm 10 valores, porque não há tempo para repetir a prova!
Como ultrapassar esta doença que nos aflige?
Já julguei saber, mas hoje não sei. Cheguei a pensar que a Escola e a Educação poderiam ajudar a mudar a sociedade. Ingenuidade minha! Quem muda a escola é a sociedade. E  a escola que temos cada vez mais se parece com a sociedade.
A sociedade pede à escola valores ou “canudos”?
E se por um cálculo errado do destino de mãos dadas com o avolumar da crise mundial, os nossos emigrantes decidissem voltar? Como seria a vida neste cantinho à beira-mar, pobre e às vezes, mal frequentado?

domingo, 27 de janeiro de 2013

Os banhos




 Desde a primavera que a casa andava num reboliço. A minha mãe tinha decidido que íamos a banhos. A Olinda vinha connosco e o meu pai ia visitar-nos quando pudesse. "Ela" ficava para o ajudar nos trabalhos de casa.
Era preciso pensar o que levar, toalhas, roupa, colchões e comida. A senhora alugou-nos uma sala, onde com colchões no chão todos dormíamos, eu, minha mãe, meu irmão mais velho e minha irmã, bem como a Olinda. Por mim, não sei o que tinham o mar e a praia, mas quando chegava a noite, o som das ondas embalava-me numa viagem sem retorno, até de madrugada. Mas para aquele acampamento ficar perfeito em sua unidade, apenas faltava meu pai e ela.
De manhã, ainda o sol não tinha nascido, não sei o que dava a minha mãe, começava numa azáfama, a pôr-nos a pé, acordar-nos aos arremessos e atropelos da sonolência, motivada pelo exemplo da cura da sua perna.
Lá saíamos estremunhados daquela casinha baixa no largo, emparedada por outras iguais e seguíamos pela avenida dos estaleiros, virávamos à Praia Norte, íamos aspirando o estranho cheiro enjoativo das algas salgadas e maresia e preparávamos a batalha no Castelo Velho. Só Stª Luzia altaneira e as rochas e as areias à esquerda, e os milheirais à direita, nos seguiam como testemunhas mudas e quedas dum presságio sem fim à vista!
Quando finalmente chegávamos ao golgotá, ainda o sol não tinha nascido e as gaivotas dormiam, mas
A minha mãe agarrava-se a um penedo e de combinação vestida, enfrentava as arremetidas das ondas na sua contínua luta com os rochedos. Depois de muitos ais, suspiros e gritos, retirava-se, limpava-se e nós sabíamos que era a nossa vez.
Outras mulheres já lá estavam também aos gritos, como jesus-cristas, agarradas aos lenhos de pedra, a serem fustigadas pelo azorrague das ondas, confirmando as suspeitas de minha mãe sobre o valor destes banhos, para a prevenção de doenças e manutenção da sua própria saúde e dos filhos, eu, o mais novo, de pouca idade, 5 ou 6 anos, e os meus irmãos 4 a 5 anos mais velhos.
Minha irmã não gritava, mas soluçava em surdina, quando finalmente retirava em debandada à frente do mostrengo ameaçador. O meu irmão, era preciso arrastá-lo à força, como condenado à forca ou ao degredo, e brandia os gritos como lanças, direitos ao coração inamovível da minha mãe e à nossa compaixão:
- Ai meu rico paizinho, vem-me buscar que eu morro afogado! Esta mulher mata-me aqui!
Eu ficava repartido entre os soluços da minha irmã e o desespero de meu irmão, como uma desgraça inadiável. O frio das águas enregelava-me o corpo, o cheiro a maresia dava-me vómitos, mas verdadeiramente assustador era o rugido imenso das ondas a desabar sobre os rochedos e sobre mim. Quem eram aqueles que assim rugiam, e quem se escondia atrás daquela massa escura e fria que vinha direita a nós sem hesitações e nos ameaçava engolir duma só vez?
O sol ainda havia de nascer, umas horas mais tarde, lá prós lados da cidade e chegava tarde para nos libertar desta agrura infinita e aterradora. Só sossegávamos quando chegávamos a casa e minha mãe nos dava o pequeno-almoço.
Num fim de semana meu pai veio visitar-nos e ouviu todas as queixas que tínhamos para lhe fazer, perante o ar divertido e satisfeito de minha mãe.
- E a casa Zé, ficou fechada?
“Não, ficou lá ela a tratar dos animais”.
Meu pai levou-nos a passear por Viana e fomos à tourada.
Podia tentar descrever como era Viana e a praça de touros, a multidão aos gritos, os touros a entrarem e a investirem contra os cavalos, como é tradicional nas touradas, mas em boa verdade, só me lembro da violência que era tanta gente aos gritos e dum touro negro todo ensanguentado pelas farpas... que o toureiro lhe cravava, ajudado pelo lindo e matreiro cavalo branco.
Devo ter esquecido essas imagens, porque estavam carregadas de dor e sofrimento. Talvez tenha adormecido, de propósito, para estando com a família, me impedir de ver algo tão ameaçador, mesmo de pé no meio das pernas de meu pai.
E de Viana só me lembro de Santa Luzia altaneira, da Praia Norte escura e fria e do Castelo Velho moribundo dos combates travados contra piratas... E claro, das casinhas no Largo ao lado do quartel, onde dormíamos.
E todos os dias, pela madrugada, as cenas dos banhos, acompanhados pelos choros e gritos se repetiram e … perduraram até hoje, na memória dos filhos, como exemplo da luta da minha mãe, a esconjurar os seus medos e as suas doenças.

domingo, 6 de janeiro de 2013

O RÁDIO


À casa iam chegando pessoas, animais e objetos. Alguns ficavam e outros partiam, ou por vontade própria ou por serem desnecessários. Às vezes era só uma questão de tempo.
Um dia o meu pai trouxe um rádio castanho de baquelite e botões amarelos, com duas colunas exteriores, cilíndricas donde saiam as coisas mais imprevistas: canções, notícias, relatos futebol, conversas e muita risota, parodiantes...
O rádio ficou na cozinha com uma coluna. A outra prolongou-se através dum fio pelo corredor adiante até ao quarto de meus pais. Assim nós ouvíamos na cozinha e meu pai no quarto, enquanto descansava. Mais tarde mudou de vez para o quarto e ficou a coluna na cozinha. Assim ele ouvia as notícias enquanto almoçávamos.
No início o rádio era intrigante. A minha mãe sorria. Eu olhava entre o admirado e inquieto por confirmar que havia mais mundo, que não via. Comecei a tentar reproduzir os relatos de futebol, porque os locutores falavam muito depressa e como um eco, eu repetia o mais depressa que podia numa vertigem louca da minha língua, lábios, maxilares, garganta, pulmões e ouvidos: finta um, finta dois, pela linha lateral, vai rematar e é rasteirado! Falta! O árbitro marca falta (ouvia-se com intensidade o clamor das pessoas protestando). As mulheres, que ajudavam a minha mãe lá em casa, riam-se e como os jogadores, mais me entusiasmava eu: Eusébio prepara-se para marcar, ganha balanço, atira e é gooooooolooooo! Goooooolooo do Beeeeenfiiiiiiicaaaa! Eusébiooooo! Benficaaaaaa!

Às vezes eram as canções da Amália: “Povo que lavas no rioooo…” Outras, o Salazar naquela voz meticulosamente monocórdica soprava: “Portugueeeses…”
Um dia meu pai disse que vinha aí a febre-amarela.
- E donde vem, Zé?
- Vem da China!
- Então não chega cá! - Afirmava peremptória minha mãe.
- Olha que qualquer dia está aí! - Retorquia meu pai.
Ria-se a minha mãe perante o ar grave e sério do meu pai. A China era longe. Não haveria de chegar a Soajo, quanto mais a Ramil, no meio da serra.
Mas a febre ia-se alargando. Vietname, Indochina, Costa oriental, Costa ocidental de África e o meu pai a repetir:
- Qualquer dia está aí! Já chegou a Moçambique… a Angola, à Guiné…
Tantos nomes... e estranhos! 
- Qualquer dia está aí! Norte de África. Já só falta atravessar o mar para chegar cá!
Ria-se a minha mãe. Atravessar o mar? A febre? Não, isso eram histórias da rádio.
Mas a coisa ficou séria. Tinham aparecido os primeiros casos no Algarve, depois Alentejo, Lisboa, Porto, Braga…
-Qualquer dia está aí!
A minha mãe hesitava. Mas … como chegaria a Ramil, lá no meio da serra? Que asas tinha essa febre-amarela? Afinal sempre existiam coisas que não se viam... e coisas que se podiam meter medo a meus pais, quanto mais a mim...
… E um dia o meu pai tossiu, suava, tinha temperatura e a febre tinha chegado a Ramil, mesmo no meio da serra.
O meu pai e a rádio tinham marcado pontos na minha consideração e da minha mãe, mas mais aumentava a minha preocupação.
Afinal o mundo era maior do que eu pressentia. Mas como cabia dentro daquela caixinha? O telefone enfim, tinha um fio suportado por paus, por onde as vozes corriam velozmente, mas o rádio só tinha um fio pendurado na prateleira a servir de antena e alguns botões que o meu pai rodava e as falas sucediam-se umas atrás das outras. Por onde vinham as vozes?
Numas férias o meu irmão mais velho resolveu o problema com uma chave de fendas. Abriu a parte detrás e finalmente pudemos ver: um mundo de válvulas, fios e luzes. Era isto um rádio? Onde as pessoas?
Um dia o meu pai foi insinuando que havia ratos no rádio.
- Ratos, Zé?
Talvez mais uma rata. Uma rata que abriu o rádio, tirou as notas que ele lá pôs, desfez uns pedacitos de papel de jornal, a provocar a cumplicidade dos ratos, a criar um álibi, um céu que se ia carregando de nuvens.
- Eu não fui! – Dizia minha mãe, entre a ironia e a preocupação. Eu não! Sei lá tirar parafusos…

Mas o meu pai ficou a saber que a mulher o tinha apanhado! Podia perdoar-lhe, mas ele não podia voltar a traí-la…

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

A casa






A casa era térrea e de granito, tinha 4 portas exteriores, pintadas de verde e 6 janelas verdes, também. Era caiada de branco e as telhas vermelhas formavam um conjunto que sobressaía, ao longe, do verde das árvores e do castanho das plantas rasteiras e o cinza do granito.
Em volta da casa ele mandou pôr os canteiros com lírios que todas as primaveras se abriam em cânticos de azul amarelo e branco.
Foi ele que escolheu aquele sítio e aquela organização: a casa, o quintal, a mina, o poço a casa do forno e os cortelhos.
Um dia veio com dois homens e quando chegou a Fonte Fiães, subiu ao alto do Maranho, um promontório rochoso, qual capitão sem mar! A vista era linda. Mas como fazer uma casa neste deserto de gente? De certeza que sorriu e parou a olhar. Nem muito longe das pessoas, nem muito longe da serra e …a água por perto. 
À esquerda, o território já estava ocupado com bouças e tapadas. À direita era muito íngreme. Lá no alto, mesmo pertinho do céu, as imagens foram passando na sua mente, na ponta do indicador a apontar: naquele morro faria a casa e o largo em volta. As crianças brincariam, os trabalhadores passariam por lá e a minha mãe correria da casa para o poço deste para o quintal, mais em baixo, onde a terra parecia fértil, e do quintal para casa. O resto apareceria mais tarde. Tinha tempo até ao sétimo dia.
Logo apareceram os trabalhadores a revolver a terra, alinhar as pedras, a cavar os alicerces, erguer as paredes, rasgar as janelas e portas, sobrepor o telhado e tudo o mais que a uma casa diz respeito.
Todos os dias de manhã vinha de Paradela e à tarde voltava. 
A minha mãe perguntava: 
- Falta muito, Zé ?
Não, a obra ia bem e assim se fez durante um ano e seis mêses. Após esta data, a nossa família mudou-se duma casa igual, em Paradela, onde nasci, para esta. Assim foi mais fácil arrumar a mobília e a mim só me custou orientar no exterior, porque lá dentro, o escuro, o frio e a solidão eram iguais…

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O AFILHADO DO MEU AVÔ


O avô é padrinho do homem e por isso, também, se chama Firmino.
Vive em Lisboa e não sabe porque vem cá todos os anos, no inverno. Sabe que é gordo e tem um grande anel na mão direita, com uns dedos muito gordos, um relógio grande e dourado na mão esquerda. Vem visitar o irmão, a aldeia e seus fantasmas. Tem uma idade que ele tem dificuldade em saber se é novo ou velho. Talvez uns quarenta, ou cinquenta. Ele não sabe distinguir as pessoas que têm 30, 40, das que têm 50 anos. Existem as crianças, como ele, os jovens, moços e moças e depois são todos da mesma idade, até chegarem a velhos e morrerem. Uns com mais rugas, cicatrizes e caras tisnadas do sol e da vida. Outros com meio brilho no olhar, passo curto, voz rouca. Uns que não levantam a cabeça do chão e alguns, que nem olham para o chão e não tropeçam. Uns que não se calam e outros que mal mexem os lábios, numa tremura a imitar o sussurro das manhãs de verão. São quase todos morenos de olhos escuros. Ou apenas escuros, porque se vestem de escuro. A ele chamam-lhe ranjado, por ter os olhos claros e a pele tão branca, o que faz redobrar de cuidados a tia.
Quando o homem vai visitar o padrinho, leva-lhe dois maços de tabaco sem filtro e fumam os dois durante muito tempo, a falarem de Lisboa e das saudades do avô.
Ele despede-se respeitosamente, o padrinho diz-lhe, Deus te abençoe. Desejam mutuamente uma boa tarde, ou uma boa noite, raramente um bom dia, porque ele dorme pela manhã fora. Deve deitar-se tarde, porque a ocupação dele começa depois do lusco-fusco, quando se foram as últimas sombras a contornar as esquinas das casas.
O irmão do homem, quando vai visitar os  tios, conta:
- Elas chegam cedo. Umas são de cá, mas outras vêm de longe.
Ele já tinha reparado. Umas mulheres estranhas, com o avental pela cabeça, passam no caminho, ao lado de casa e não se benzem na porta da igreja. Seguem de cabeça baixa, a ocultar o destino, nas pegadas que se afastam da igreja, á saída do lugar, na direção do cemitério e só o latido dos cães as acompanham. A tia benze-se quando as vê passar, e o tio, abana a cabeça, em sinal de desaprovação. Ele interroga-se a saber qual o motivo da dissonância e da urgência dos caminhos escuros da alma.
Elas esperam sentadas ao borralho, mas quando dão de caras com o meu irmão, é o bonito. Ele espera-as na sala, uma de cada vez. Começam a gritar e a espumar pela boca, que não há quem as segure, enquanto ele reza uma ladainha impercetível. Outro dia uma rebolava pelo chão, puxava pelos cabelos, despiu-se toda, espumava da boca, revirava os olhos, nem sei quantas vezes, aquilo é de meter medo. Só acalmou quando ele lhe tocou, sempre a rezar e lhe fez o sinal da cruz, na cabeça, no peito. Entrou num sono tão profundo que tivemos de esperar meia hora que ela fosse acordando. Depois não se lembrava de nada, vestiu-se envergonhada, saiu com a irmã, boa noite e nunca mais voltou. O meu irmão estava cansado e nessa noite já não fez mais nada. Tiveram de se ir embora e voltar no dia seguinte.
A tia vai-se benzendo e o marido esconde-se atrás do ar critico, ele pressente-o, adivinha as suas reticencias, mas não ganha coragem a perguntar, porquê? Também só ganharia um vai-te deitar, isto não são conversas para ti. Por isso deixa-se estar calado, escondido naquela floresta de subentendidos, à espreita dos medos dos outros. Viriam um dia a ser os seus?
- Outro dia uma começou a espernear e não cedia às rezas dele. Vomitava, arrepelava os cabelos, arrancava os botões da camisa, com um ar tresloucado, (ai Jesus, bendito seja deus, dizia minha tia), e gritava com voz de homem, Não saio daqui, quem és tu para me tirar daqui? Quem pensas que és tu, que enganas a tua mulher com a outra e pedes dinheiro às duas? E já pagaste o dinheiro que pediste ao teu irmão?
- Foi aí que fiquei a saber que o meu irmão engana a mulher. Que ele lhe pedia dinheiro… eu já sabia, mas que a enganava…
- E que fez ele, compadre?- dizia minha tia a desviar o incómodo da revelação.
- Ora, pegou no crucifixo numa mão e deu-lhe com a estola da outra mão, e disse-lhe: Sais, sais, a bem ou a mal! Daqui para as pedras pintas, pedras negras, profundas do inferno!
Ela vomitou uns líquidos verdes, devia ter comido couves, sei lá… mijou-se toda, pelas pernas abaixo, arreganhava os dentes, abria os braços como uma águia, ripava os cabelos e … disse, Eu vou, mas hei-de voltar! E pronto, caiu numa prostração… apagou-se como uma fogueira a quem deitam um cântaro de água. Ali aninhada toda mijada e vomitada. Um cheirete a enxofre que não queira saber. Foi preciso lavar tudo com lixívia e arejar a sala, não sei quanto tempo.
Ele ouvia e os olhos brilhavam de entusiasmo, pela descoberta e confirmação das suas suspeitas: Bem lhe parecia que nós não éramos o que parecíamos. Havia mais mundos dentro de nós. Havia corredores, pessoas, diabos, raposas da murraça, lobos e homens misturados, sem se saber onde começa o lobo e caba o homem, anjos, bruxas, minas escuras, rios e corpos de todas as formas e feitios. O que víamos nas pessoas era apenas uma pequeníssima parte, era só a aragem, porque o verdadeiro mundo estava oculto e só se revelava em determinadas ocasiões. Também haveria jardins, princesas, reis e paraísos para todos?
- Oh! Compadre, ele há cada coisa! – Dizia a tia, enquanto o tio se mantinha calado e cada vez mais cético: Se fossem mais é trabalhar! Isso é falta de trabalho!
- Mas outro dia é que foi o bonito, continuava o compadre dos tios, a comprazer-se nas histórias de embasbacar! Uma mulher, aí da freguesia de cima, quando chegou à porta já não queria entrar. Tivemos de a meter à força. Ela já espumava antes de entrar. O meu irmão levantou-se e com a Bíblia numa mão e a estola na outra, começou a sorrir e disse-lhe: Então por cá outra vez?
Até parece que ele a conhecia. Mas não era ela que falava. Era uma voz rouca de um homem morto há muito tempo.
- O que te faz falta?- Perguntou meu irmão!
- A promessa que ninguém pagou ainda!
- E que promessa é essa?
- O sangue duma mulher virgem e menstruada, numa noite de lua cheia, espalhadas em volta da capela, com bocados de broa esfarelada. Três missas e uma novena.
- Porque foi essa promessa?
A mulher estrebuchou toda, a tremer como se a tivessem metido no gelo:
- Matei o meu pai… ele deitou-me a perder… e ao fim de algum tempo pus-lhe veneno dos escaravelhos da batata na sopa e morreu… ninguém descobriu, mas arrependi-me e fiz essa promessa.
- Porque não a pagaste tu?- Perguntou meu irmão.
A mulher perdeu as tremuras, mas os olhos saltavam-lhe das órbitas e os músculos da face estavam roxos.
- Porque já não era virgem, caralho! Foi ele que me deitou a perder… e a quem ia pedir o sangue?
- Também não vou pedir o sangue a ninguém. Mando rezar as missas e vais embora em paz…
A mulher começa a dizer os palavrões todos. Caralho, foda-se, …
Seria uma vergonha se estivesse escorreita.
A tia repetia incessantemente, Ai Jesus valha-me Deus! O tio só dizia, o que ela queria bem eu sei! E ele continuava:
A mulher começa a falar latim e ninguém percebe nada. Era a alma do avô que foi padre na Peneda! O meu irmão com um crucifixo e com a estola, gritou-lhe,
- Vai-te embora e deixa esta mulher em paz! Três missas pela tua alma e não voltes mais!
Pousou a cruz e começa a ler umas coisas da Bíblia. A mulher sobe pelas paredes acima, com as mãos esticadas até ao teto, por fim, deixa-se cair e começa a ressonar.
O meu irmão aspergiu-a com água benta e um raminho de alecrim e disse:
- Deixem-na descansar.
Por um pouco reinou o silêncio e cada um via nas labaredas do borralho o que queria ver. Nem a chuva lá fora a cair nas telhas e no caminho perturbava esta visão. Olhavam para dentro de si, à procura sabe-se lá de quê! O que veriam eles?
- Olhe comadre, tenho visto cada coisa, que nunca imaginei poder vir a ver tanto!
- Há cada coisa! Desabafa a tia.
- O que elas precisavam bem eu sei! Suspira o tio!
-Vai-te deitar! Nem devias estar a ouvir estas coisas! Ainda te fazem mal à cabeça! Amanhã faço-te um chá de alecrim e ervas!
- Com muito açúcar! – disse ele, enquanto se levantava de olhos presos na fogueira do borralho!

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A aldeia




A aldeia é como uma ilha viva, que se mexe, respira e vive, por ciclos: o ciclo das festas periódicas, natal, passagem de ano, o reis, carnaval, páscoa e S. João; Intercala-se o ciclo das romarias, S. Paz, S. Bento do Cando, Sª Madalena, em Lindoso, S. João e Santo António, em Soajo, Sª da Conceição no próprio lugar, Sª Peneda, a Festa de Cunhas e o 29 (outubro) na Várzea.
Ao mesmo tempo decorre o ciclo dos trabalhos agrícolas: estrumar, lavrar e cavar, semear, mondar e regar, cortar os fenos, tratar das hortas, cortar e desfolhar, vindimar, roçar no outono. Cada uma destas atividades subdivide-se num conjunto infinito de tarefas, que vão calejando as mãos e atiram com os pensamentos para outras paragens, onde se ganhe mais! O trabalho é sempre duro, em qualquer parte!   
Uma vida paralela decorre da manutenção dos gados: nascimento, venda ou criação das crias, ensinar a trabalhar no arado ou no carro às novas gerações, levar à serra na primavera e trazê-las no outono já prenhes, algumas para vender na feira de Soajo e outras para assegurar a manutenção da família com leite e trabalho. Só são comidas quando por acidente, os donos se obrigam a matá-las, por necessidade, e os vizinhos a comprar uma porção, por solidariedade.
A estes sobrepõem-se o ciclo da vida das pessoas: batismos, namoros e casamentos, separações e funerais. E se se diz batismos e não nascimentos é pela razão que o nascimento diz respeito aos participantes e família mais próxima, enquanto batizado é já extensível a um maior número de participantes convidados. Dos namoros quase todos sabem, mas no casamento apenas participam os convidados, embora ao baile ninguém falte. As separações são comentadas por todos, mas aos funerais ninguém falta e para a morte não é preciso convite. Sempre que há ajuntamentos de pessoas há festa pela certa. De arromba nos casamentos, mais comedida nos funerais. Em ambas há mulheres de negro que volteiam de faces rubras pelo fogo, de colheres de pau ou escumadeiras na mão, em torno de grandes potes negros e outras que levam e trazem travessas de comida cozida e comida já comida. Em ambas, os homens de faces roxas pelo cheiro e frenesim empurram canecas de vinho, à frente das bocas sorridentes a perguntar se está bom e se querem mais. Nos funerais as crianças continuam a brincar e a correr, os jovens puxam os cabelos e as saias às raparigas, elas riem e ameaçam-nos, a pedirem mais e os mais velhos olham compreensivos e benevolentes para a vida, que irrompe atrás deles e colmata a baixa naquela trincheira. Para ele são muitas novidades duma vez só. Se é claro que não pode haver festa sem muita gente, também não percebe porque se riem tanto nos funerais, confundindo-se às vezes com casamentos. As velhas dizem benevolentes: “Tende vergonha, que ainda o corpo está quente!”
Mas não há música. É por isso que os casamentos são melhores, mas há menos do que funerais.
No carnaval a aldeia divide-se em dois grupos, com fronteiras bem distintas: os de cima e os de baixo. Entram em competição para se distinguir o melhor carro de bois enfeitado, os melhores figurantes, que desfilam do Eiró ao Regueiro e depois até à Boucinha, onde as afrontas e confrontos entre os dois grupos são maiores. Tudo termina em bem e por consenso, encontra-se o vencedor do ano.
Na Páscoa alguns habitantes colocam as maias às suas portas, assinalando aos anjos, a sua pertença ao povo eleito. Com o padre e acólitos, as crianças acorrem à frente a despejar os confeitos e amêndoas, enquanto o padre e a cruz benze os donos e demais povo. Alguns demoram-se a despejar os copos e felicitam-se mutuamente.
Na véspera de natal os amigos visitam os vizinhos saboreando as rabanadas e o vinho. Os rapazes aproveitam para dar beliscões, apertões e provocar as raparigas, que reagem ruborizadas, de olhos brilhantes e cúmplices.
Os tios moram numa ponta da aldeia. Dali segue um caminho de pedras e terra, que passa pela capela, segue em frente encostado à direita, uma casa grande em pedra, do Joaquim Bendeiro, que é surdo, fala aos repelões e ele não o compreende. Do lado esquerdo, elevam-se várias casas e pardieiros até ao cruzeiro do Santo. Aí numa fraga vêm as crianças roçarem as calças, contra o desespero das mães, naquilo que muitos anos mais tarde, as cidades e vilas hão-de chamar de escorregas e parques infantis!
O cruzeiro de braços abertos, parece ajudar todos os que sobem com os cestos às costas, dos Portinhos para cima. Vêm dos campos, que se estendem de socalco em socalco, até ao rio Lima, numa simetria quase perfeita com a serra da Amarela. Os que vivem do lado de lá do rio, são os de além, diz a tia.
- E se nós estivéssemos de lá como chamávamos aos de cá?
- Cala-te e vê onde pões os pés!

Continuando em frente, à esquerda a casa do avô Firmino e um caminho que sobe até às Lanjas, a casa do ti Arrobas e depois a loja do tio Afonso, marido da professora. Mas seguindo em frente vamos encontrar mais casario à esquerda, a casa da Ti Marcelina e do Ti Chico, e do lado direito vemos os espigueiros, onde aos domingos soalheiros se dança e namora. Este caminho continua até ao largo do Eiró, à esquerda fica a Escola e á direita a Casa doTi Diogo. Mais á frente a taberna do Curto, logo seguida duns casarios em pedra granítica, que tanto abriga pessoas como animais, desde o Regueiro e da Fonte da Sapa, à Lanja. Da esquina da escola segue um caminho, à direita a casa da comadre que já é e à esquerda a casa do padrinho  e da comadre que há-de ser. Sempre a subir, vai-se até à Lanja, com desvios à direita e à esquerda, onde à noite se acolhe um povo, maioritariamente desconhecido para ele. Quem são estas pessoas? Nunca as tinha visto antes, nem lhes tinha adivinhado a existência. Donde vieram? Ou estiveram sempre ali?
Há um largo das solenidades, festas e rituais, em frente da casa e da capela, mas há um centro vital, da festa e do descanso, do encontro e desafio, do namoro e romance, da notícia e da taberna, onde todos os caminhos desaguam: o Eiró.
“Fulana foi pedida, mas o pai disse que não. Fugiram prá vila.”
O boato corre célere nas asas do vento a respirar o fumo que sai dos telhados ao entardecer, repetindo-se em murmúrios infinitos pela noite dentro, em volta de cada borralho.
- Chegou nem há uma semana de Lisboa, e já apanhou a moça. Aquilo já estava combinado!
- Também a outra trocou o home! – dizia alguém, enquanto cuspia para o chão o resto do cigarro.
- Roubaram a casa do Cachês! Tiraram ferramentas, brocas e puas.
- O cabo tem de ir lá a casa fazer uma vistoria, mas sem dar o alarme! De certeza que apanha alguma coisa e descobre-se o tratante.
Contado no Eiró já o alarme estava dado a toda a aldeia.
- Quem foi? Toda a gente sabe quem foi. Ou um ou o outro. Um deles foi.
O Cabo e mais outro vão primeiro a uma casa, para disfarçar e de seguida vão onde é preciso e lá encontram o produto do roubo.
Como são estranhas estas personagens, confundidas com pessoas. Tantos cálculos para planear, prever e roubar e agora escondem o material debaixo da cama. Só faltava pendurarem à porta letreiros a dizer: Venham ver o que roubamos!
- A Tia Gardeja foi apanhada com o contrabando, os guardas levaram-na para o posto! Aquilo foi acusa… por quem? Quem seria?
A notícia corre a arrancar solidariedades, resignação, ou sorrisos de ironia vingativa: “ Bem feita!”
- O João da Eira vende tudo muito caro, mais vale ir a Lindoso! A mulher é boa pessoa!
- O guarda prendeu as vacas do Curto e do Bendeiro! Seis vacas. A mulher do Curto farta-se de chorar. Com o homem em Lisboa, nem escreve nem nada…
- Os guardas abusam. As deles podem andar na floresta e as nossas não!
É a primeira vez que ouve dizer mal do pai. Saberia que diziam mal dele, nas suas costas? As pessoas eram injustas, o pai tão bom e tão longe… por isso é que dizem mal dele. Ao pé não têm coragem.
Que sabor estranho o da contestação!
Definitivamente o mundo é muito imperfeito…- pensa ele, enquanto aperta os cordões dos tamancos!