A aldeia é como uma ilha viva, que se
mexe, respira e vive, por ciclos: o ciclo das festas periódicas, natal,
passagem de ano, o reis, carnaval, páscoa e S. João; Intercala-se o ciclo das
romarias, S. Paz, S. Bento do Cando, Sª Madalena, em Lindoso, S. João e Santo
António, em Soajo, Sª da Conceição no próprio lugar, Sª Peneda, a Festa de
Cunhas e o 29 (outubro) na Várzea.
Ao mesmo tempo decorre o ciclo dos
trabalhos agrícolas: estrumar, lavrar e cavar, semear, mondar e regar, cortar
os fenos, tratar das hortas, cortar e desfolhar, vindimar, roçar no outono.
Cada uma destas atividades subdivide-se num conjunto infinito de tarefas, que vão
calejando as mãos e atiram com os pensamentos para outras paragens, onde se
ganhe mais! O trabalho é sempre duro, em qualquer parte!
Uma vida paralela decorre da manutenção
dos gados: nascimento, venda ou criação das crias, ensinar a trabalhar no arado
ou no carro às novas gerações, levar à serra na primavera e trazê-las no outono
já prenhes, algumas para vender na feira de Soajo e outras para assegurar a
manutenção da família com leite e trabalho. Só são comidas quando por acidente,
os donos se obrigam a matá-las, por necessidade, e os vizinhos a comprar uma
porção, por solidariedade.
A estes sobrepõem-se o ciclo da vida
das pessoas: batismos, namoros e casamentos, separações e funerais. E se se diz
batismos e não nascimentos é pela razão que o nascimento diz respeito aos
participantes e família mais próxima, enquanto batizado é já extensível a um
maior número de participantes convidados. Dos namoros quase todos sabem, mas no
casamento apenas participam os convidados, embora ao baile ninguém falte. As
separações são comentadas por todos, mas aos funerais ninguém falta e para a
morte não é preciso convite. Sempre que há ajuntamentos de pessoas há festa
pela certa. De arromba nos casamentos, mais comedida nos funerais. Em ambas há
mulheres de negro que volteiam de faces rubras pelo fogo, de colheres de pau ou
escumadeiras na mão, em torno de grandes potes negros e outras que levam e
trazem travessas de comida cozida e comida já comida. Em ambas, os homens de
faces roxas pelo cheiro e frenesim empurram canecas de vinho, à frente das
bocas sorridentes a perguntar se está bom e se querem mais. Nos funerais as
crianças continuam a brincar e a correr, os jovens puxam os cabelos e as saias
às raparigas, elas riem e ameaçam-nos, a pedirem mais e os mais velhos olham
compreensivos e benevolentes para a vida, que irrompe atrás deles e colmata a
baixa naquela trincheira. Para ele são muitas novidades duma vez só. Se é claro
que não pode haver festa sem muita gente, também não percebe porque se riem
tanto nos funerais, confundindo-se às vezes com casamentos. As velhas dizem
benevolentes: “Tende vergonha, que ainda o corpo está quente!”
Mas não há música. É por isso que os
casamentos são melhores, mas há menos do que funerais.
No carnaval a aldeia divide-se em dois
grupos, com fronteiras bem distintas: os de cima e os de baixo. Entram em
competição para se distinguir o melhor carro de bois enfeitado, os melhores
figurantes, que desfilam do Eiró ao Regueiro e depois até à Boucinha, onde as
afrontas e confrontos entre os dois grupos são maiores. Tudo termina em bem e
por consenso, encontra-se o vencedor do ano.
Na Páscoa alguns habitantes colocam as
maias às suas portas, assinalando aos anjos, a sua pertença ao povo eleito. Com
o padre e acólitos, as crianças acorrem à frente a despejar os confeitos e
amêndoas, enquanto o padre e a cruz benze os donos e demais povo. Alguns demoram-se
a despejar os copos e felicitam-se mutuamente.
Na véspera de natal os amigos visitam
os vizinhos saboreando as rabanadas e o vinho. Os rapazes aproveitam para dar
beliscões, apertões e provocar as raparigas, que reagem ruborizadas, de olhos
brilhantes e cúmplices.
Os tios moram numa ponta da aldeia.
Dali segue um caminho de pedras e terra, que passa pela capela, segue em frente
encostado à direita, uma casa grande em pedra, do Joaquim Bendeiro, que é surdo,
fala aos repelões e ele não o compreende. Do lado esquerdo, elevam-se várias
casas e pardieiros até ao cruzeiro do Santo. Aí numa fraga vêm as crianças
roçarem as calças, contra o desespero das mães, naquilo que muitos anos mais
tarde, as cidades e vilas hão-de chamar de escorregas e parques infantis!
O cruzeiro de braços abertos, parece
ajudar todos os que sobem com os cestos às costas, dos Portinhos para cima. Vêm
dos campos, que se estendem de socalco em socalco, até ao rio Lima, numa
simetria quase perfeita com a serra da Amarela. Os que vivem do lado de lá do
rio, são os de além, diz a tia.
- E se nós estivéssemos de lá como
chamávamos aos de cá?
- Cala-te e vê onde pões os pés!
Continuando em frente, à esquerda a
casa do avô Firmino e um caminho que sobe até às Lanjas, a casa do ti Arrobas e
depois a loja do tio Afonso, marido da professora. Mas seguindo em frente vamos
encontrar mais casario à esquerda, a casa da Ti Marcelina e do Ti Chico, e do
lado direito vemos os espigueiros, onde aos domingos soalheiros se dança e
namora. Este caminho continua até ao largo do Eiró, à esquerda fica a Escola e
á direita a Casa doTi Diogo. Mais á frente a taberna do Curto, logo seguida
duns casarios em pedra granítica, que tanto abriga pessoas como animais, desde o
Regueiro e da Fonte da Sapa, à Lanja. Da esquina da escola segue um caminho, à
direita a casa da comadre que já é e à esquerda a casa do padrinho e da comadre que há-de ser. Sempre a subir, vai-se
até à Lanja, com desvios à direita e à esquerda, onde à noite se acolhe um
povo, maioritariamente desconhecido para ele. Quem são estas pessoas? Nunca as
tinha visto antes, nem lhes tinha adivinhado a existência. Donde vieram? Ou
estiveram sempre ali?
Há um largo das solenidades, festas e
rituais, em frente da casa e da capela, mas há um centro vital, da festa e do
descanso, do encontro e desafio, do namoro e romance, da notícia e da taberna,
onde todos os caminhos desaguam: o Eiró.
“Fulana foi pedida, mas o pai disse
que não. Fugiram prá vila.”
O boato corre célere nas asas do vento
a respirar o fumo que sai dos telhados ao entardecer, repetindo-se em murmúrios
infinitos pela noite dentro, em volta de cada borralho.
- Chegou nem há uma semana de Lisboa,
e já apanhou a moça. Aquilo já estava combinado!
- Também a outra trocou o home! –
dizia alguém, enquanto cuspia para o chão o resto do cigarro.
- Roubaram a casa do Cachês! Tiraram
ferramentas, brocas e puas.
- O cabo tem de ir lá a casa fazer uma
vistoria, mas sem dar o alarme! De certeza que apanha alguma coisa e
descobre-se o tratante.
Contado no Eiró já o alarme estava
dado a toda a aldeia.
- Quem foi? Toda a gente sabe quem
foi. Ou um ou o outro. Um deles foi.
O Cabo e mais outro vão primeiro a uma
casa, para disfarçar e de seguida vão onde é preciso e lá encontram o produto
do roubo.
Como são estranhas estas personagens,
confundidas com pessoas. Tantos cálculos para planear, prever e roubar e agora
escondem o material debaixo da cama. Só faltava pendurarem à porta letreiros a
dizer: Venham ver o que roubamos!
- A Tia Gardeja foi apanhada com o
contrabando, os guardas levaram-na para o posto! Aquilo foi acusa… por quem?
Quem seria?
A notícia corre a arrancar
solidariedades, resignação, ou sorrisos de ironia vingativa: “ Bem feita!”
- O João da Eira vende tudo muito
caro, mais vale ir a Lindoso! A mulher é boa pessoa!
- O guarda prendeu as vacas do Curto e
do Bendeiro! Seis vacas. A mulher do Curto farta-se de chorar. Com o homem em
Lisboa, nem escreve nem nada…
- Os guardas abusam. As deles podem
andar na floresta e as nossas não!
É a primeira vez que ouve dizer mal do
pai. Saberia que diziam mal dele, nas suas costas? As pessoas eram injustas, o
pai tão bom e tão longe… por isso é que dizem mal dele. Ao pé não têm coragem.
Que sabor estranho o da contestação!
Definitivamente o mundo é muito
imperfeito…- pensa ele, enquanto aperta os cordões dos tamancos!
Manél os meus parabéns pela forma como contaste a nossa Aldeia e os seus tempos antigos, Bem-haja quem recorda os nossos dias de meninice, pois recordar é voltar a viver.
ResponderEliminarUm abraço
Carlos Belchior