sábado, 13 de julho de 2013

Os imigrantes


Nos anos cinquenta, o meu pai era Guarda-Florestal e vivíamos no meio da serra, numa casa com 3 quartos, um escritório, uma cozinha, 2 arrecadações e uma casa de banho. Havia ainda um sótão misterioso e as gateiras sob a casa por onde entrava o ar e se escondia um coelho doméstico, mas que resolvera viver em liberdade, até que um dia…um cão estranho…o comeu.
Em volta da casa havia um grande largo, onde, quando nos deixavam, corríamos de manhã à noite. O terreiro para além de ser sala de estar e de visitas, era verdadeiramente o coração da casa. Nada acontecia na casa que não se soubesse primeiro no largo e nada acontecia no largo que não se soubesse primeiro em casa.
 Do lado de baixo (sul) do terreiro e num patamar inferior havia o quintal. Do lado este, a 40 metros, a ribeira, o cortelho dos porcos, o caminho para Soajo e Adrão. Foi neste caminho, junto ao pau do fio (poste com fio do telefone), que o meu pai, de cabeça perdida perante a recusa persistente do nosso burro “Cadete” em ir a Soajo transportar 2 garrafas de gás, disse ao Tio Chico da Florinda :
- Vá lá a casa e diga à minha mulher que lhe dê a pistola, que eu vou matá-lo!
Quando o Cadete ouviu isto, começou a andar, disposto a ir onde fosse preciso! Grande burro, o Cadete, ah!
Do lado Norte, o caminho para  a Várzea e Paradela, o cortelho dos pitos, o caniço de varas, depois o dos cães à esquerda,  a seguir, o das ovelhas à direita, a corte das vacas, galinheiro e o forno ao fundo,  e por fim, lá no alto, sobre a esquerda, o dos burros. Era aqui que a burrinha branca do meu avô vinha parar quando o peso dos netos era excessivo. O primeiro fazia força com as mãos na padieira da porta e os detrás iam caindo uns por cima dos outros, enquanto ela se refugiava lá dentro, resguardada de nós, pelas pedras.
A oeste, o tanque, onde minha mãe lavava e estendia a roupa e nós tomávamos banho, bifurcando-se este, para a Mina e para o caminho de Cunhas e de Soajo.
A água era extraída duma mina, mesmo do interior da serra. Às vezes, às escondidas eu e meus irmãos aventurávamo-nos a descobrir-lhe as origens, mas quando ficava mesmo muito escuro e já não havia fetos e ervas e só se ouvia a água a correr pelas paredes frias de pedra, gritávamos a ouvir o eco, mas este era tão real, que nós fugíamos dali, com medo. Mas saíamos de lá com a certeza que havia mais mundos e nós tínhamos entrado lá… 
Para mim foi sempre um espaço mágico e sedutor, que me enchia de admiração e respeito, aquela entrada escura, no volumoso corpo da serra, rodeada de ervas e fetos, donde brotava água límpida e fresca… onde apenas se ouvia a água e uma leve brisa, ao fim da tarde…como um murmúrio de sedução.
Era no sótão que o meu pai tinha colocado o motor e as baterias, a nossa central eléctrica! O motor aquecia a gasolina, mas continuava a roncar a petróleo, por ser mais barato. Como se enchia de carvão, muitas vezes o meu pai tinha de o limpar. Desmanchava as peças todas, parafusos, velas e bielas carburadores e filtros, limpava-as com petróleo e por fim, fazia o caminho inverso, voltava a montá-las, perante o ar duvidoso e divertido da minha mãe e a minha mais completa admiração. O que é certo é que quando ele puxava a corda e o motor arrancava um uivo ou um rugido, o meu pai exibia um sorriso de triunfo, semelhante ao de Deus quando a terra começou a girar pela primeira vez!
Nesta fase, o meu pai era um mágico eloquente! Uma vez deixou cair um pouco da água das baterias no meu braço. Admirado senti a irritação na pele. Como pode a água arder? Como pode a água subir numa mangueira e esvaziar o poço? Como faz para acender as lâmpadas, como sabe ele fazer sabão? Quem lhe ensinou a bater o ferro em brasa e a cortar a madeira? A fazer dobradiças e portas? E a fazer cortiços e crestar as colmeias? A fazer regos e plantar as couves e alfaces? A escavar o barro e fazer compressas? A escolher as ervas e fazer chá? A matar a ovelha e esfolá-la, a matar o porco e salgá-lo? Quantas histórias sabe ele?  Como pode, como sabe… dar ao pé e ensinar a minha mãe a costurar na máquina, bater tão certinho nas teclas da máquina de escrever e ler as linhas que lá estão? E o nome das plantas e árvores? A quem reza? Porquê? Como faz para desenhar aquele sorriso na face da minha mãe?
 Como sabe o nome de todos os trabalhadores? Eram tantos! Porque lhe obedecem e o tratam por senhor?
Quando “davam o salto” para França, alguns homens confiavam-lhe o dinheiro, que entregaria aos passadores, mediante a apresentação duma carta recebida pela família, em como a viagem tinha corrido bem.
O meu pai sabia quem ia para França, ou para a América e ficava a olhá-los, seguia-lhes as pegadas com um sorriso … de esperança  e de admiração. Alguns vinham despedir-se, alguns pedir dinheiro emprestado e outros confiavam-lhe o pagamento aos passadores. E gostava de ouvir os relatos deles quando vinham de férias. Aquilo era tudo à grande… e à francesa. O problema era a língua, os documentos, que eles apelidavam de “papéis” e o serviço militar. Aí o meu pai discordava : Primeiro faziam o serviço militar e depois de pagar essa dívida à nação, depois sim, podiam ir para onde quisessem. Alguns não podiam entrar legalmente e havia notícias que a GNR os tinha ido buscar a casa, mas só tinham encontrado gatos e aranhas…
Enfim, traziam muitas histórias, muitas aventuras dum povo tresmalhado por essas cordilheiras dos Alpes e pelas ruas de Paris, muitos francos e eu só me perguntava porque tinham de voltar e deixar outra vez a família, a mulher e os filhos…
Quando uns de Soajo foram para o Canadá, as mulheres, que costuravam na beira do largo em volta da casa em Ramil, sorriam duma forma brejeira, com olhares cúmplices e eu não sabia que terra era essa que só o nome arrancava sorrisos disfarçados, mas o meu mundo alargava-se para outros mundos… mesmo sem ter ido ao Canadá!
Ainda hoje me pergunto, porque não há mais histórias escritas, mais filmes, mais produção cultural e artística desse povo que deixou tudo e foi procurar uma vida melhor. Onde estão os autores dignos desta enorme aventura colectiva? Terá de ser a próxima geração a redescobrir esta gesta? Alguma vez foram homenageados nas festas do concelho, por exemplo? Quem sabe um dia ainda vamos ver a Casa das Artes  com uma programação focada na emigração, ou um grupo de emigrantes de mala na mão, à noite,  a descer o Vez, por baixo da ponte velha, pela mão do Mocuna?
Se os emigrantes fossem provenientes doutras classes sociais teriam o mesmo tratamento? Mas afinal foram os mais insatisfeitos e inconformados com o que a sociedade e a vida lhes reservava, os mais audazes  e construtores de futuros, que partiram. Tomaram o destino nas mãos e participaram na construção doutras terras, doutras paragens e com isso re-inventaram-se enquanto pessoas e cidadãos, duma cidadania mais universal e geral.
Portugal tem vindo desde o sec. XV a ficar sangrado destes homens inconformados que arriscaram tudo, à procura do sonho duma vida melhor. Foi gente com ideias novas, iniciativa, projecto, missão, vontade de arriscar, coragem, que partiram e … poucos voltaram! Primeiro a carreira da Índia, depois o Brasil, África e finalmente a Europa e América!
Portugal seria concerteza um país diferente se este fermento, tivesse levedado cá,  neste torrão pobre e isolado e tivesse produzido afinal … o milagre dos pães! Porque de milagre precisamos para re-inventar uma outra forma de nos olharmos, viver e construir uma sociedade onde comprar por 10 e vender por mil seja um roubo e ter um bom emprego não seja um local, onde não se faz nada e se ganha bem, onde a justiça se entretém com os ladrões de galinhas, pune os que roubam as bicicletas e deixa em paz os gananciosos magnatas finaceiros. Onde a corrupção impera e cada um fica a pensar “ Se fosse eu, fazia o mesmo”. Onde no exame de admissão à Magistratura, os 170 candidatos copiaram descaradamente e no final têm 10 valores, porque não há tempo para repetir a prova!
Como ultrapassar esta doença que nos aflige?
Já julguei saber, mas hoje não sei. Cheguei a pensar que a Escola e a Educação poderiam ajudar a mudar a sociedade. Ingenuidade minha! Quem muda a escola é a sociedade. E  a escola que temos cada vez mais se parece com a sociedade.
A sociedade pede à escola valores ou “canudos”?
E se por um cálculo errado do destino de mãos dadas com o avolumar da crise mundial, os nossos emigrantes decidissem voltar? Como seria a vida neste cantinho à beira-mar, pobre e às vezes, mal frequentado?

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