Nos anos cinquenta, o meu pai era
Guarda-Florestal e vivíamos no meio da serra, numa casa com 3 quartos, um
escritório, uma cozinha, 2 arrecadações e uma casa de banho. Havia ainda um
sótão misterioso e as gateiras sob a casa por onde entrava o ar e se escondia
um coelho doméstico, mas que resolvera viver em liberdade, até que um dia…um
cão estranho…o comeu.
Em volta da casa
havia um grande largo, onde, quando nos deixavam, corríamos de manhã à noite. O
terreiro para além de ser sala de estar e de visitas, era verdadeiramente o
coração da casa. Nada acontecia na casa que não se soubesse primeiro no largo e
nada acontecia no largo que não se soubesse primeiro em casa.
Do lado de baixo (sul) do terreiro e num
patamar inferior havia o quintal. Do lado este, a 40 metros, a ribeira, o
cortelho dos porcos, o caminho para Soajo e Adrão. Foi neste caminho, junto ao
pau do fio (poste com fio do telefone), que o meu pai, de cabeça perdida
perante a recusa persistente do nosso burro “Cadete” em ir a Soajo transportar 2
garrafas de gás, disse ao Tio Chico da Florinda :
- Vá lá a casa e
diga à minha mulher que lhe dê a pistola, que eu vou matá-lo!
Quando o Cadete
ouviu isto, começou a andar, disposto a ir onde fosse preciso! Grande burro, o
Cadete, ah!
Do lado Norte, o
caminho para a Várzea e Paradela, o
cortelho dos pitos, o caniço de varas, depois o dos cães à esquerda, a seguir, o das ovelhas à direita, a corte
das vacas, galinheiro e o forno ao fundo,
e por fim, lá no alto, sobre a esquerda, o dos burros. Era aqui que a
burrinha branca do meu avô vinha parar quando o peso dos netos era excessivo. O
primeiro fazia força com as mãos na padieira da porta e os detrás iam caindo
uns por cima dos outros, enquanto ela se refugiava lá dentro, resguardada de
nós, pelas pedras.
A oeste, o
tanque, onde minha mãe lavava e estendia a roupa e nós tomávamos banho,
bifurcando-se este, para a Mina e para o caminho de Cunhas e de Soajo.
A água era
extraída duma mina, mesmo do interior da serra. Às vezes, às escondidas eu e
meus irmãos aventurávamo-nos a descobrir-lhe as origens, mas quando ficava
mesmo muito escuro e já não havia fetos e ervas e só se ouvia a água a correr
pelas paredes frias de pedra, gritávamos a ouvir o eco, mas este era tão real, que nós
fugíamos dali, com medo. Mas saíamos de lá com a certeza que havia mais mundos
e nós tínhamos entrado lá…
Para mim foi sempre um espaço mágico e sedutor, que
me enchia de admiração e respeito, aquela entrada escura, no volumoso corpo da
serra, rodeada de ervas e fetos, donde brotava água límpida e fresca… onde apenas
se ouvia a água e uma leve brisa, ao fim da tarde…como um murmúrio de sedução.
Era no sótão que
o meu pai tinha colocado o motor e as baterias, a nossa central eléctrica! O
motor aquecia a gasolina, mas continuava a roncar a petróleo, por ser mais barato.
Como se enchia de carvão, muitas vezes o meu pai tinha de o limpar. Desmanchava
as peças todas, parafusos, velas e bielas carburadores e filtros, limpava-as
com petróleo e por fim, fazia o caminho inverso, voltava a montá-las, perante o
ar duvidoso e divertido da minha mãe e a minha mais completa admiração. O que é
certo é que quando ele puxava a corda e o motor arrancava um uivo ou um rugido,
o meu pai exibia um sorriso de triunfo, semelhante ao de Deus quando a terra
começou a girar pela primeira vez!
Nesta fase, o
meu pai era um mágico eloquente! Uma vez deixou cair um pouco da água das
baterias no meu braço. Admirado senti a irritação na pele. Como pode a água
arder? Como pode a água subir numa mangueira e esvaziar o poço? Como faz para
acender as lâmpadas, como sabe ele fazer sabão? Quem lhe ensinou a bater o
ferro em brasa e a cortar a madeira? A fazer dobradiças e portas? E a fazer
cortiços e crestar as colmeias? A fazer regos e plantar as couves e alfaces? A
escavar o barro e fazer compressas? A escolher as ervas e fazer chá? A matar a
ovelha e esfolá-la, a matar o porco e salgá-lo? Quantas histórias sabe
ele? Como pode, como sabe… dar ao pé e
ensinar a minha mãe a costurar na máquina, bater tão certinho nas teclas da
máquina de escrever e ler as linhas que lá estão? E o nome das plantas e
árvores? A quem reza? Porquê? Como faz para desenhar aquele sorriso na face da
minha mãe?
Como sabe o nome de todos os trabalhadores?
Eram tantos! Porque lhe obedecem e o tratam por senhor?
Quando “davam o
salto” para França, alguns homens confiavam-lhe o dinheiro, que entregaria aos
passadores, mediante a apresentação duma carta recebida pela família, em como a
viagem tinha corrido bem.
O meu pai sabia
quem ia para França, ou para a América e ficava a olhá-los, seguia-lhes as
pegadas com um sorriso … de esperança e
de admiração. Alguns vinham despedir-se, alguns pedir dinheiro emprestado e
outros confiavam-lhe o pagamento aos passadores. E gostava de ouvir os relatos
deles quando vinham de férias. Aquilo era tudo à grande… e à francesa. O
problema era a língua, os documentos, que eles apelidavam de “papéis” e o
serviço militar. Aí o meu pai discordava : Primeiro faziam o serviço militar e
depois de pagar essa dívida à nação, depois sim, podiam ir para onde quisessem.
Alguns não podiam entrar legalmente e havia notícias que a GNR os tinha ido
buscar a casa, mas só tinham encontrado gatos e aranhas…
Enfim, traziam muitas
histórias, muitas aventuras dum povo tresmalhado por essas cordilheiras dos
Alpes e pelas ruas de Paris, muitos francos e eu só me perguntava porque tinham
de voltar e deixar outra vez a família, a mulher e os filhos…
Quando uns de
Soajo foram para o Canadá, as mulheres, que costuravam na beira do largo em
volta da casa em Ramil, sorriam duma forma brejeira, com olhares cúmplices e eu
não sabia que terra era essa que só o nome arrancava sorrisos disfarçados, mas
o meu mundo alargava-se para outros mundos… mesmo sem ter ido ao Canadá!
Ainda hoje me
pergunto, porque não há mais histórias escritas, mais filmes, mais produção
cultural e artística desse povo que deixou tudo e foi procurar uma vida melhor.
Onde estão os autores dignos desta enorme aventura colectiva? Terá de ser a
próxima geração a redescobrir esta gesta? Alguma vez foram homenageados nas festas
do concelho, por exemplo? Quem sabe um dia ainda vamos ver a Casa das
Artes com uma programação focada na
emigração, ou um grupo de emigrantes de mala na mão, à noite, a descer o Vez, por baixo da ponte velha, pela
mão do Mocuna?
Se os emigrantes
fossem provenientes doutras classes sociais teriam o mesmo tratamento? Mas
afinal foram os mais insatisfeitos e inconformados com o que a sociedade e a
vida lhes reservava, os mais audazes e
construtores de futuros, que partiram. Tomaram o destino nas mãos e
participaram na construção doutras terras, doutras paragens e com isso
re-inventaram-se enquanto pessoas e cidadãos, duma cidadania mais universal e
geral.
Portugal tem
vindo desde o sec. XV a ficar sangrado destes homens inconformados que
arriscaram tudo, à procura do sonho duma vida melhor. Foi gente com ideias
novas, iniciativa, projecto, missão, vontade de arriscar, coragem, que partiram
e … poucos voltaram! Primeiro a carreira da Índia, depois o Brasil, África e
finalmente a Europa e América!
Portugal seria
concerteza um país diferente se este fermento, tivesse levedado cá, neste torrão pobre e isolado e tivesse
produzido afinal … o milagre dos pães! Porque de milagre precisamos para
re-inventar uma outra forma de nos olharmos, viver e construir uma sociedade
onde comprar por 10 e vender por mil seja um roubo e ter um bom emprego não
seja um local, onde não se faz nada e se ganha bem, onde a justiça se entretém
com os ladrões de galinhas, pune os que roubam as bicicletas e deixa em paz os
gananciosos magnatas finaceiros. Onde a corrupção impera e cada um fica a
pensar “ Se fosse eu, fazia o mesmo”. Onde no exame de admissão à Magistratura,
os 170 candidatos copiaram descaradamente e no final têm 10 valores, porque não
há tempo para repetir a prova!
Como ultrapassar
esta doença que nos aflige?
Já julguei
saber, mas hoje não sei. Cheguei a pensar que a Escola e a Educação poderiam
ajudar a mudar a sociedade. Ingenuidade minha! Quem muda a escola é a
sociedade. E a escola que temos cada vez
mais se parece com a sociedade.
A sociedade pede
à escola valores ou “canudos”?
E se por um
cálculo errado do destino de mãos dadas com o avolumar da crise mundial, os
nossos emigrantes decidissem voltar? Como seria a vida neste cantinho à
beira-mar, pobre e às vezes, mal frequentado?
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