terça-feira, 27 de agosto de 2013

Os outros em 2015






Descemos por um corrimão de casas brancas, alpendradas em janelas e portas, num corrupio de escadinhas que vêm sempre desaguar na rua. Dum lado e do outro, suspensas por fios, baloiçam ao vento as roupas, calças e blusas, cintos e chinelos, chapéus e saias coloridas pelo verão de Agosto. Os cafés oferecem as últimas receitas de hamburgers, as novas receitas de preços combinados com a fome e a vontade de comer. O artesanato da América do Sul, plásticos e bóias, baldes e bolas, pás e inutilidades da China, barquinhos galgando os ventos e as marés da imaginação das crianças e graúdos.
Só mais tarde saberemos qua atrás de nós ficaram supermercados, farmácias, lojas e castelos de casas, mais apartamentos com ou sem piscina, uns em cima dos outros, em frente das portas e janelas dos prédios vizinhos, numa aglomeração concentracionária de ânsia especulativa pelo dinheiro a pretexto do sol... do Algarve!
À nossa frente, rua abaixo, segue um exército de crianças pelas mãos das mães e avós, gordas e suspensas das toalhas, geleiras, guarda sóis, cuidados e apreensões à mistura com perspectivas de areia e mar, férias na praia. Cruzam-se com outros que, madrugadores, fogem do sol e da agrura do calor. Voltam a casa à procura dos banhos e sombras.
Os artistas de rua expõem as obras para venda, montam os cavaletes, que à noite hão de reproduzir a aguarela do dia, a caricatura, o retrato dos turistas mais avantajados e o olhar guloso, cínico dos pais de família. A eles juntam-se os vendedores de bijouterias, promessas de sonhos, brincos de princesas, anéis de Sodoma e Gomorra, pulseiras das arábias. Aqui não chegaram os homens estátuas. As estátuas são os homens em calções, que se comprazem na cavaqueira, na leitura do jornal, escondidos pelas imperiais de cervejas, loiras e frias...
De repente, acabou a estrada, abre-se o largo diretamente para o mar, calmo azul, quente de areia.  À esquerda, a pequena marginal, salpicada de bancos de pedra e palmeiras, continua até ao fundo, onde reinam os pescadores, últimos mandatários dum tempo já lá para trás, sem horizonte.  À direita, as últimas casas brancas de janelas azuis e terraços, abraçadas por buganvílias floridas, que teimosamente, como os turistas, voltam todos os anos.
É nesta pequena marginal, mesmo ao lado dos balneários públicos, que Ana ergue o seu castelo, loja, oficina e casa com vista para a praia, num espaço de menos de dois metros quadrados, e muita paciência com as voltas da vida e com as clientes, esperando as que ainda faltam com serenidade.
Cabelo liso e comprido, apanhado para trás, esguia de corpo, pescoço sereno e andar tranquilo, o olhar vai poisando aqui e ali nas suas peças e artefactos, mas é no mar que se demora, até as órbitas, em protesto, reclamarem o seu quinhão das pálpebras. As rugas ao canto dos olhos descem teimosamente em linhas paralelas, como os caminhos da existência. Umas vezes cruzam-se, outras não.
Arma a mesinha de apoio, ajudando com cautela a esticar-lhe as pernas. Dum saco retira um pano preto, toalha, tenda ou vela e sacudindo migalhas e réstias de pensamentos adiados,  volta a estendê-la sobre a mesa, com cuidado, para que fique regularmente simétrica, as pontas a descair sobre os paralelos da rua. O mar chama-a, mas os dois negros mostruário de pulseiras, anéis e brincos de alumínio e latão exigem a sua parte. Os dois elevam-se acima da mesa formando entre si um ângulo recto. À frente dos painéis e sobre a mesa estendem-se de forma regular e ascendente mais pulseiras, mais pendente, anéis enfeites de cores e sugestões, sintéticos, de pele ou metal.
É numa mesinha mais pequena , ao lado desta que no intervalo de dois olhares para o mar, prende o fuso dos anéis, os alicates, as tesouras, os ganchos, a faca, a fita métrica. Estende os fios de couro, algodão, plástico, o arame de alumínio com vários tamanhos, redondo, achatado, de várias cores.
Distribui com cuidado meticuloso as caixinhas de arrumação, com muitas divisões, onde sonolentos, aguardam os fechos e peças brilhantes, redondas, brilhantes, quadradas e triangulares coloridas de esperança, aplicações que hão de enfeitar o pescoço e pulsos de muitas jovens e crianças.
Um radiozinho de pilhas emite uma música arrastada ao sabor das ondas. Dois gatinhos de porcelana, um cavalo marinho e uma estrela do mar compõem o quadro, mas não são para vender. É só para enfeitar.
É nesta mesinha que coloca o prato e em silêncio vai engolindo as garfadas de esparguete com carne. Aqui poisa o copo de água e o guardanapo de papel. Aqui descansa os olhos e sossega os pensamentos.
Por baixo das mesinhas, os sacos de plástico, contêm segredos que a mais ninguém importam.

Eu nasci no Barreiro, mas desde que me conheço que vivo no Algarve. Aqui cresci e fiz a escola até me chatear. Arranjei uns empregozitos, mas nada de jeito. Depois trabalhei como empregada de mesa, mas eram muitas horas, sempre em pé, andar dum lado para o outro. Quanto mais clientes atendia, mais do mar me afastava...
Já faço isto há 11 anos.  Vivi em Tenerife alguns anos, mas voltei com saudades da família. Sou autodidata. Nunca fiz curso nenhum. Fui vendo e fazendo. Falo quatro línguas: francês, inglês, espanhol e italiano e ainda compreendo muitas coisas em alemão.
Aqui não ganho muito. É mais ou menos a mesma coisa do que como empregada. Trabalho as mesmas horas, mas tenho mais tempo para mim e para pensar na vida. Conheço toda a gente e toda a gente me conhece. Vou tomar um café, vou buscar o almoço, deixo as coisas aqui e ninguém tira nada. Respeitam-me!

O resto? Não quero falar disso agora. Fica para outra vez. Quem sabe, pró ano!

E sorri numa promessa, de olhar até ao fundo do mar.
Acredito que pró ano ela conta!
O que ela quiser, mas conta!  



Os outros riem-se, no intervalo simétrico, entre alegrias e tristezas.
O Lobo foi soldado, cabo força aérea, regressado de Angola em 1973, com cisma demais, memórias ruins e tratamentos prolongados. Medalhas de guerra, tatuagens no peito, aventuras negras, negras...
Agora concerta as redes para os outros irem pescar. Ele já desistiu do mar. Foi obrigado a desistir, diz contrariada a mão, que limpa o suor da testa. Os olhos perderam o brilho da lua no mar. Encolhe os ombros: É a vida! A vida ou a guerra?


O Ferreiro nunca quis nada com o mar. Cedo emigrou para França, casou e veio dezassete vezes de carro a Portugal. Uma vez por ano. De regresso à terra, trabalhou na construção civil, na Soares da Costa.
Agora está reformado e trata das courelas herdadas do pai. Vai aos figos, apanha as amêndoas e cuida das alfarrobeiras.
Espetáculo! Repete incessantemente. Espetáculo.
Vai de manhã dar um mergulho na praia, almoça, dorme a sesta , volta à tarde para  a marginal, à procura de conversa e ao fim da tarde vai regar a horta ou apanhar os figos.
Espetáculo.
Tem uma filha, Cidália e um neto, mas ninguém gosta de ir à horta.

                        Não gostam da terra! Só depois quando eu não puder e eles ficarem responsáveis por ela. Aí, a terra agarra-se à gente e até ganhamos gosto por isto. Espetáculo!


Agora que a mulher morreu e a família não se interessa pelo campo, a saudade brilha nos olhos de tristeza e de solidão. 
                       
                        Quer vir aos figos? Apanhamos uma cesta deles e leva os que quiser. As amêndoas ainda não estão boas, mas os figos... espetáculo!

Ah! Ferreiro amigo, como foi que a tua solidão descobriu a minha numa praia, algures perdido entre o castanho das falésias e o azul verde das ondas? Como sabias que eu procuro teimosamente apanhar figos, estrelas, ou caracóis nos raios da lua, numa praia qualquer?
Espetáculo!

Helena é uma loira avançada na idade, de curvas largas, largas como a praia. Tem a voz suave e o sorriso quente das mulheres do sul.

Ainda era nova e bonita. Uma vez ganhei um prémio Miss Albufeira, dado pela Amália Rodrigues. Mas a vida aqui era muito parada. Um dia apareceu por cá um rapaz de Lisboa, casapiano, agradou-me, olhei para ele e ele olhou para mim, mas eu hesitava. O meu pai dizia-me: Vai em frente, olha que aqui a vida não passa disto, pescadores na faina do mar e às vezes vão e não voltam.
Assim fiz, casei com o lisboeta. Na altura não havia amor, esse veio depois...

E agora?

Agora? Ele trabalhou num hotel e há vinte anos desempregou-se e começou a fazer umas coisas com pedras da praia e hoje é escultor. Olha, agora até vendeu umas coisas para o Inatel e já dá para passar o inverno...

Pedras da praia?

Sim, rochas. Vamos à praia, levamos a moto 4 e trazemos, mas já estamos mal das costas. São muito pesadas. Ele vai ali prá oficina, olha pra elas, vê o que podem ser e depois, aparece todo branco do pó e a pedra transformou-se numa escultura. Os estrangeiros gostam, mas é difícil o transporte. As peças são grandes, mas alguns levam... É assim... vamos vivendo...

Também pinta?

Sim, pinta, mas pouco. Tá  a ver este quadro? Pintou a meias com o irmão gémeo. Ele já sabia que ia morrer do cancro e combinaram pintar cada um metade. Quando acabaram o quadro, o irmão morreu. Andou um tempo sem pintar. Agora lá vai fazendo um quadro ou outro. Mas o que gosta é de trabalhar na pedra. É assim...

E ficamos a sorrir, revendo a vida dum pescador de pedras da praia, pescador de sonhos, inventor de sóis, luas, girassóis, borboletas, animais ... apanhador de figos,  soldado, vendedora ambulante de anéis, pontas de estrelas e colares, construtores dos nossos dias, numa praia qualquer.

E sorrimos numa promessa, de olhar até ao fundo do mar.
Acreditamos que pró ano contamos!
O que quisermos, mas vamos contar, não vamos?



Passaram dois anos. Voltei a Olhos D' Água! De água, de mar e de horizontes de gente e areia!
 O mesmo corrimão de casas brancas, alpendradas em janelas e portas, num corrupio de escadinhas que vêm sempre desaguar na rua! 
As mesmas bijouterias, promessas de sonhos, brincos de princesas, anéis das arábias, pulseiras. O mesmo mar.
Igual... que sorte tudo continuar igual!

Igual? Não. O Ferreiro não era o mesmo. Lá continuava nas suas rotinas, mas disse-me um olá indiferente e estranho. Longínquo, distante, de quem partira para outro lado e não tinha esperança de regresso.
- Então, Ferreiro? Não te lembras? A horta, os figos, as histórias, a França?!- dizia eu enquanto lhe estendia a mão!
Franziu as sobrancelhas, torceu o nariz  e ...nada. Ainda tive uma esperança quando parou o olhar, a tentar descortinar na névoa do tempo uma imagem, uma história ou personagem, mas a face voltou à mesma indiferença. Soltou a mão da minha e disse:
- A gente vê-se por aí!
Ferreiro, meu amigo, o que te aconteceu? Não há nada pior numa amizade que o outro dizer-nos, a gente vê-se por aí, assim sem mais!
Fiquei toda a tarde a remoer baixinho: a gente vê-se por aí, a gente vê-se por aí! Vê nada. Passa e não se vê. Eu perdi a vontade de ver, de encontrar. A gente vê-se por aí!
Fiquei tão triste que passei o tempo todo sem vontade de ir visitar a Helena e o marido. Ainda os vi, da minha janela, a atravessarem rua. Saíram do café e em passo molengão, lá iam... ela à frente e ele um a dois metros atrás, como quem corre a trilha do destino e não pode impedir de o trilhar! 

A Ana este ano não veio. Aind perguntei por ela, mas já o ano passado não veio. Sumiu! Por onde andará a Ana? E logo agora que estava à espera do espetáculo da sua tendinha, num constante monta e desmonta, abre e fecha, mostra e esconde!

Quem apareceu este ano exuberante e meiga, foi a Neila. Veio de Córdova, com duas crianças. Uma na barriga e outra nos cuidados do pai. A Neila, sorri e pinta a aguarela. Pinta a pessoas muito gordas em fato de banho, com as cores da areia, do céu e do mar. Pega num papel, estica-o em cima da bancada e com dois estojos de aguarela na frente, um copinho de água e pincéis, inventa novas pessoas, novas praias, novos mares, tudo ali, sem sair do lugar, só a olhar o mar. 
Neila, se eu soubesse pintar assim, não queria fazer mais nada na vida. Só pintava! Digo-lhe eu! É o que ela quer fazer. Pintar durante a vida toda.
E quem são os olhos que me fitam? São da filha daquela vendedora. 
Dás-me os teus olhos? Sorri da tolice. Como se podem dar os olhos? Só a alma!
Eu quero a tua alma! Vou levá-la comigo. Como se eu fosse um anjo do destino, esvoaçando por aqui, a blimundar os olhos sôfregos de vida.
Até pró ano, 2016! Até logo! Até sempre!









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