Descemos por um corrimão de casas brancas,
alpendradas em janelas e portas, num corrupio de escadinhas que vêm sempre
desaguar na rua. Dum lado e do outro, suspensas por fios, baloiçam ao vento as
roupas, calças e blusas, cintos e chinelos, chapéus e saias coloridas pelo
verão de Agosto. Os cafés oferecem as últimas receitas de hamburgers, as novas
receitas de preços combinados com a fome e a vontade de comer. O artesanato da
América do Sul, plásticos e bóias, baldes e bolas, pás e inutilidades da China,
barquinhos galgando os ventos e as marés da imaginação das crianças e graúdos.
Só mais tarde saberemos qua atrás de nós
ficaram supermercados, farmácias, lojas e castelos de casas, mais apartamentos
com ou sem piscina, uns em cima dos outros, em frente das portas e janelas dos
prédios vizinhos, numa aglomeração concentracionária de ânsia especulativa pelo
dinheiro a pretexto do sol... do Algarve!
À nossa frente, rua abaixo, segue um
exército de crianças pelas mãos das mães e avós, gordas e suspensas das toalhas,
geleiras, guarda sóis, cuidados e apreensões à mistura com perspectivas de areia
e mar, férias na praia. Cruzam-se com outros que, madrugadores, fogem do sol e
da agrura do calor. Voltam a casa à procura dos banhos e sombras.
Os artistas de rua expõem as obras para
venda, montam os cavaletes, que à noite hão de reproduzir a aguarela do dia, a caricatura,
o retrato dos turistas mais avantajados e o olhar guloso, cínico dos pais de
família. A eles juntam-se os vendedores de bijouterias, promessas de sonhos, brincos
de princesas, anéis de Sodoma e Gomorra, pulseiras das arábias. Aqui não
chegaram os homens estátuas. As estátuas são os homens em calções, que se
comprazem na cavaqueira, na leitura do jornal, escondidos pelas imperiais de
cervejas, loiras e frias...
De repente, acabou a estrada, abre-se o
largo diretamente para o mar, calmo azul, quente de areia. À esquerda, a pequena marginal, salpicada de
bancos de pedra e palmeiras, continua até ao fundo, onde reinam os pescadores,
últimos mandatários dum tempo já lá para trás, sem horizonte. À direita, as últimas casas brancas de janelas
azuis e terraços, abraçadas por buganvílias floridas, que teimosamente, como os
turistas, voltam todos os anos.
É nesta pequena marginal, mesmo ao lado dos
balneários públicos, que Ana ergue o seu castelo, loja, oficina e casa com
vista para a praia, num espaço de menos de dois metros quadrados, e muita
paciência com as voltas da vida e com as clientes, esperando as que ainda
faltam com serenidade.
Cabelo liso e comprido, apanhado para trás,
esguia de corpo, pescoço sereno e andar tranquilo, o olhar vai poisando aqui e
ali nas suas peças e artefactos, mas é no mar que se demora, até as órbitas, em
protesto, reclamarem o seu quinhão das pálpebras. As rugas ao canto dos olhos
descem teimosamente em linhas paralelas, como os caminhos da existência. Umas
vezes cruzam-se, outras não.
Arma a mesinha de apoio, ajudando com
cautela a esticar-lhe as pernas. Dum saco retira um pano preto, toalha, tenda
ou vela e sacudindo migalhas e réstias de pensamentos adiados, volta a estendê-la sobre a mesa, com cuidado,
para que fique regularmente simétrica, as pontas a descair sobre os paralelos
da rua. O mar chama-a, mas os dois negros mostruário de pulseiras, anéis e
brincos de alumínio e latão exigem a sua parte. Os dois elevam-se acima da mesa
formando entre si um ângulo recto. À frente dos painéis e sobre a mesa
estendem-se de forma regular e ascendente mais pulseiras, mais pendente, anéis
enfeites de cores e sugestões, sintéticos, de pele ou metal.
É numa mesinha mais pequena , ao lado desta
que no intervalo de dois olhares para o mar, prende o fuso dos anéis, os
alicates, as tesouras, os ganchos, a faca, a fita métrica. Estende os fios de
couro, algodão, plástico, o arame de alumínio com vários tamanhos, redondo,
achatado, de várias cores.
Distribui com cuidado meticuloso as
caixinhas de arrumação, com muitas divisões, onde sonolentos, aguardam os
fechos e peças brilhantes, redondas, brilhantes, quadradas e triangulares coloridas
de esperança, aplicações que hão de enfeitar o pescoço e pulsos de muitas
jovens e crianças.
Um radiozinho de pilhas emite uma música
arrastada ao sabor das ondas. Dois gatinhos de porcelana, um cavalo marinho e
uma estrela do mar compõem o quadro, mas não são para vender. É só para
enfeitar.
É nesta mesinha que coloca o prato e em
silêncio vai engolindo as garfadas de esparguete com carne. Aqui poisa o copo
de água e o guardanapo de papel. Aqui descansa os olhos e sossega os
pensamentos.
Por baixo das mesinhas, os sacos de
plástico, contêm segredos que a mais ninguém importam.
Eu
nasci no Barreiro, mas desde que me conheço que vivo no Algarve. Aqui cresci e fiz a
escola até me chatear. Arranjei uns empregozitos, mas
nada de jeito. Depois trabalhei como empregada de mesa, mas eram muitas horas,
sempre em pé, andar dum lado para o outro. Quanto mais
clientes atendia, mais do mar me afastava...
Já
faço isto há 11
anos. Vivi em Tenerife alguns anos, mas
voltei com saudades da família. Sou autodidata. Nunca fiz curso
nenhum. Fui vendo e fazendo. Falo quatro línguas: francês, inglês,
espanhol e italiano e ainda compreendo muitas coisas em alemão.
Aqui
não ganho muito. É
mais ou menos a mesma coisa do que como empregada. Trabalho as mesmas horas,
mas tenho mais tempo para mim e para pensar na vida. Conheço
toda a gente e toda a gente me conhece. Vou tomar um café,
vou buscar o almoço, deixo as coisas aqui e ninguém
tira nada. Respeitam-me!
O
resto? Não quero falar disso agora. Fica para outra vez.
Quem sabe, pró ano!
E sorri numa promessa, de olhar até ao
fundo do mar.
Acredito que pró ano ela conta!
O que ela quiser, mas conta!
Os outros riem-se, no intervalo simétrico, entre alegrias e tristezas.
O Lobo foi soldado, cabo força aérea, regressado de Angola em
1973, com cisma demais, memórias ruins e tratamentos prolongados. Medalhas de
guerra, tatuagens no peito, aventuras negras, negras...
Agora concerta as redes para os outros irem pescar. Ele já
desistiu do mar. Foi obrigado a desistir, diz contrariada a mão, que limpa o
suor da testa. Os olhos perderam o brilho da lua no mar. Encolhe os ombros: É a
vida! A vida ou a guerra?
O Ferreiro nunca quis nada com o mar. Cedo emigrou para
França, casou e veio dezassete vezes de carro a Portugal. Uma vez por ano. De
regresso à terra, trabalhou na construção civil, na Soares da Costa.
Agora está reformado e trata das courelas herdadas do pai. Vai
aos figos, apanha as amêndoas e cuida das alfarrobeiras.
Espetáculo! Repete incessantemente. Espetáculo.
Vai de manhã dar um mergulho na praia, almoça, dorme a sesta ,
volta à tarde para a marginal, à procura
de conversa e ao fim da tarde vai regar a horta ou apanhar os figos.
Espetáculo.
Tem uma filha, Cidália e um neto, mas ninguém gosta de ir à
horta.
Não
gostam da terra! Só depois quando eu não
puder e eles ficarem responsáveis por ela. Aí,
a terra agarra-se à gente e até ganhamos
gosto por isto. Espetáculo!
Agora que a mulher morreu e a família não se interessa pelo
campo, a saudade brilha nos olhos de tristeza e de solidão.
Quer vir aos figos? Apanhamos uma cesta
deles e leva os que quiser. As amêndoas ainda não estão
boas, mas os figos... espetáculo!
Ah! Ferreiro amigo, como foi que a tua
solidão descobriu a minha numa praia, algures perdido entre o castanho das
falésias e o azul verde das ondas? Como sabias que eu procuro teimosamente
apanhar figos, estrelas, ou caracóis nos raios da lua, numa praia qualquer?
Espetáculo!
Helena é uma loira avançada na idade, de curvas
largas, largas como a praia. Tem a voz suave e o sorriso quente das mulheres do
sul.
Ainda
era nova e bonita. Uma vez ganhei um prémio Miss Albufeira, dado pela Amália
Rodrigues. Mas a vida aqui era muito parada. Um dia apareceu por cá
um rapaz de Lisboa, casapiano, agradou-me, olhei para ele e ele olhou para mim,
mas eu hesitava. O meu pai dizia-me: Vai em frente, olha que aqui a vida não
passa disto, pescadores na faina do mar e às vezes vão e não
voltam.
Assim
fiz, casei com o lisboeta. Na altura não havia amor, esse veio depois...
E agora?
Agora? Ele trabalhou
num hotel e há vinte anos desempregou-se e começou
a fazer umas coisas com pedras da praia e hoje é escultor.
Olha, agora até vendeu umas coisas para o Inatel e já
dá para passar o inverno...
Pedras da praia?
Sim, rochas. Vamos à
praia, levamos a moto 4 e trazemos, mas já estamos mal das costas. São
muito pesadas. Ele vai ali prá oficina, olha pra elas, vê
o que podem ser e depois, aparece todo branco do pó
e a pedra transformou-se numa escultura. Os estrangeiros gostam, mas é
difícil o transporte. As peças
são grandes, mas alguns levam... É
assim... vamos vivendo...
Também pinta?
Sim, pinta, mas
pouco. Tá a
ver este quadro? Pintou a meias com o irmão gémeo. Ele já sabia que
ia morrer do cancro e combinaram pintar cada um metade. Quando acabaram o
quadro, o irmão morreu. Andou um tempo sem pintar. Agora
lá vai fazendo um quadro ou outro. Mas o que
gosta é de trabalhar na pedra. É
assim...
E ficamos a sorrir, revendo a vida dum pescador de pedras da
praia, pescador de sonhos, inventor de sóis, luas, girassóis, borboletas,
animais ... apanhador de figos, soldado,
vendedora ambulante de anéis, pontas de estrelas e colares, construtores dos
nossos dias, numa praia qualquer.
E sorrimos numa promessa, de olhar até ao
fundo do mar.
Acreditamos que pró ano contamos!
O que quisermos, mas vamos contar, não
vamos?
Passaram dois anos. Voltei a Olhos D' Água! De água, de mar e de horizontes de gente e areia!
O mesmo corrimão de casas brancas, alpendradas em janelas e portas, num corrupio de escadinhas que vêm sempre desaguar na rua!
As mesmas bijouterias, promessas de sonhos, brincos de princesas, anéis das arábias, pulseiras. O mesmo mar.
Igual... que sorte tudo continuar igual!
Igual? Não. O Ferreiro não era o mesmo. Lá continuava nas suas rotinas, mas disse-me um olá indiferente e estranho. Longínquo, distante, de quem partira para outro lado e não tinha esperança de regresso.
- Então, Ferreiro? Não te lembras? A horta, os figos, as histórias, a França?!- dizia eu enquanto lhe estendia a mão!
Franziu as sobrancelhas, torceu o nariz e ...nada. Ainda tive uma esperança quando parou o olhar, a tentar descortinar na névoa do tempo uma imagem, uma história ou personagem, mas a face voltou à mesma indiferença. Soltou a mão da minha e disse:
- A gente vê-se por aí!
Ferreiro, meu amigo, o que te aconteceu? Não há nada pior numa amizade que o outro dizer-nos, a gente vê-se por aí, assim sem mais!
Fiquei toda a tarde a remoer baixinho: a gente vê-se por aí, a gente vê-se por aí! Vê nada. Passa e não se vê. Eu perdi a vontade de ver, de encontrar. A gente vê-se por aí!
Fiquei tão triste que passei o tempo todo sem vontade de ir visitar a Helena e o marido. Ainda os vi, da minha janela, a atravessarem rua. Saíram do café e em passo molengão, lá iam... ela à frente e ele um a dois metros atrás, como quem corre a trilha do destino e não pode impedir de o trilhar!
A Ana este ano não veio. Aind perguntei por ela, mas já o ano passado não veio. Sumiu! Por onde andará a Ana? E logo agora que estava à espera do espetáculo da sua tendinha, num constante monta e desmonta, abre e fecha, mostra e esconde!
Quem apareceu este ano exuberante e meiga, foi a Neila. Veio de Córdova, com duas crianças. Uma na barriga e outra nos cuidados do pai. A Neila, sorri e pinta a aguarela. Pinta a pessoas muito gordas em fato de banho, com as cores da areia, do céu e do mar. Pega num papel, estica-o em cima da bancada e com dois estojos de aguarela na frente, um copinho de água e pincéis, inventa novas pessoas, novas praias, novos mares, tudo ali, sem sair do lugar, só a olhar o mar.
Neila, se eu soubesse pintar assim, não queria fazer mais nada na vida. Só pintava! Digo-lhe eu! É o que ela quer fazer. Pintar durante a vida toda.
E quem são os olhos que me fitam? São da filha daquela vendedora.
Dás-me os teus olhos? Sorri da tolice. Como se podem dar os olhos? Só a alma!
Eu quero a tua alma! Vou levá-la comigo. Como se eu fosse um anjo do destino, esvoaçando por aqui, a blimundar os olhos sôfregos de vida.
Até pró ano, 2016! Até logo! Até sempre!
Passaram dois anos. Voltei a Olhos D' Água! De água, de mar e de horizontes de gente e areia!
O mesmo corrimão de casas brancas, alpendradas em janelas e portas, num corrupio de escadinhas que vêm sempre desaguar na rua!
As mesmas bijouterias, promessas de sonhos, brincos de princesas, anéis das arábias, pulseiras. O mesmo mar.
Igual... que sorte tudo continuar igual!
Igual? Não. O Ferreiro não era o mesmo. Lá continuava nas suas rotinas, mas disse-me um olá indiferente e estranho. Longínquo, distante, de quem partira para outro lado e não tinha esperança de regresso.
- Então, Ferreiro? Não te lembras? A horta, os figos, as histórias, a França?!- dizia eu enquanto lhe estendia a mão!
Franziu as sobrancelhas, torceu o nariz e ...nada. Ainda tive uma esperança quando parou o olhar, a tentar descortinar na névoa do tempo uma imagem, uma história ou personagem, mas a face voltou à mesma indiferença. Soltou a mão da minha e disse:
- A gente vê-se por aí!
Ferreiro, meu amigo, o que te aconteceu? Não há nada pior numa amizade que o outro dizer-nos, a gente vê-se por aí, assim sem mais!
Fiquei toda a tarde a remoer baixinho: a gente vê-se por aí, a gente vê-se por aí! Vê nada. Passa e não se vê. Eu perdi a vontade de ver, de encontrar. A gente vê-se por aí!
Fiquei tão triste que passei o tempo todo sem vontade de ir visitar a Helena e o marido. Ainda os vi, da minha janela, a atravessarem rua. Saíram do café e em passo molengão, lá iam... ela à frente e ele um a dois metros atrás, como quem corre a trilha do destino e não pode impedir de o trilhar!
A Ana este ano não veio. Aind perguntei por ela, mas já o ano passado não veio. Sumiu! Por onde andará a Ana? E logo agora que estava à espera do espetáculo da sua tendinha, num constante monta e desmonta, abre e fecha, mostra e esconde!
Quem apareceu este ano exuberante e meiga, foi a Neila. Veio de Córdova, com duas crianças. Uma na barriga e outra nos cuidados do pai. A Neila, sorri e pinta a aguarela. Pinta a pessoas muito gordas em fato de banho, com as cores da areia, do céu e do mar. Pega num papel, estica-o em cima da bancada e com dois estojos de aguarela na frente, um copinho de água e pincéis, inventa novas pessoas, novas praias, novos mares, tudo ali, sem sair do lugar, só a olhar o mar.
Neila, se eu soubesse pintar assim, não queria fazer mais nada na vida. Só pintava! Digo-lhe eu! É o que ela quer fazer. Pintar durante a vida toda.
E quem são os olhos que me fitam? São da filha daquela vendedora.
Dás-me os teus olhos? Sorri da tolice. Como se podem dar os olhos? Só a alma!
Eu quero a tua alma! Vou levá-la comigo. Como se eu fosse um anjo do destino, esvoaçando por aqui, a blimundar os olhos sôfregos de vida.
Até pró ano, 2016! Até logo! Até sempre!
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