domingo, 27 de janeiro de 2013

Os banhos




 Desde a primavera que a casa andava num reboliço. A minha mãe tinha decidido que íamos a banhos. A Olinda vinha connosco e o meu pai ia visitar-nos quando pudesse. "Ela" ficava para o ajudar nos trabalhos de casa.
Era preciso pensar o que levar, toalhas, roupa, colchões e comida. A senhora alugou-nos uma sala, onde com colchões no chão todos dormíamos, eu, minha mãe, meu irmão mais velho e minha irmã, bem como a Olinda. Por mim, não sei o que tinham o mar e a praia, mas quando chegava a noite, o som das ondas embalava-me numa viagem sem retorno, até de madrugada. Mas para aquele acampamento ficar perfeito em sua unidade, apenas faltava meu pai e ela.
De manhã, ainda o sol não tinha nascido, não sei o que dava a minha mãe, começava numa azáfama, a pôr-nos a pé, acordar-nos aos arremessos e atropelos da sonolência, motivada pelo exemplo da cura da sua perna.
Lá saíamos estremunhados daquela casinha baixa no largo, emparedada por outras iguais e seguíamos pela avenida dos estaleiros, virávamos à Praia Norte, íamos aspirando o estranho cheiro enjoativo das algas salgadas e maresia e preparávamos a batalha no Castelo Velho. Só Stª Luzia altaneira e as rochas e as areias à esquerda, e os milheirais à direita, nos seguiam como testemunhas mudas e quedas dum presságio sem fim à vista!
Quando finalmente chegávamos ao golgotá, ainda o sol não tinha nascido e as gaivotas dormiam, mas
A minha mãe agarrava-se a um penedo e de combinação vestida, enfrentava as arremetidas das ondas na sua contínua luta com os rochedos. Depois de muitos ais, suspiros e gritos, retirava-se, limpava-se e nós sabíamos que era a nossa vez.
Outras mulheres já lá estavam também aos gritos, como jesus-cristas, agarradas aos lenhos de pedra, a serem fustigadas pelo azorrague das ondas, confirmando as suspeitas de minha mãe sobre o valor destes banhos, para a prevenção de doenças e manutenção da sua própria saúde e dos filhos, eu, o mais novo, de pouca idade, 5 ou 6 anos, e os meus irmãos 4 a 5 anos mais velhos.
Minha irmã não gritava, mas soluçava em surdina, quando finalmente retirava em debandada à frente do mostrengo ameaçador. O meu irmão, era preciso arrastá-lo à força, como condenado à forca ou ao degredo, e brandia os gritos como lanças, direitos ao coração inamovível da minha mãe e à nossa compaixão:
- Ai meu rico paizinho, vem-me buscar que eu morro afogado! Esta mulher mata-me aqui!
Eu ficava repartido entre os soluços da minha irmã e o desespero de meu irmão, como uma desgraça inadiável. O frio das águas enregelava-me o corpo, o cheiro a maresia dava-me vómitos, mas verdadeiramente assustador era o rugido imenso das ondas a desabar sobre os rochedos e sobre mim. Quem eram aqueles que assim rugiam, e quem se escondia atrás daquela massa escura e fria que vinha direita a nós sem hesitações e nos ameaçava engolir duma só vez?
O sol ainda havia de nascer, umas horas mais tarde, lá prós lados da cidade e chegava tarde para nos libertar desta agrura infinita e aterradora. Só sossegávamos quando chegávamos a casa e minha mãe nos dava o pequeno-almoço.
Num fim de semana meu pai veio visitar-nos e ouviu todas as queixas que tínhamos para lhe fazer, perante o ar divertido e satisfeito de minha mãe.
- E a casa Zé, ficou fechada?
“Não, ficou lá ela a tratar dos animais”.
Meu pai levou-nos a passear por Viana e fomos à tourada.
Podia tentar descrever como era Viana e a praça de touros, a multidão aos gritos, os touros a entrarem e a investirem contra os cavalos, como é tradicional nas touradas, mas em boa verdade, só me lembro da violência que era tanta gente aos gritos e dum touro negro todo ensanguentado pelas farpas... que o toureiro lhe cravava, ajudado pelo lindo e matreiro cavalo branco.
Devo ter esquecido essas imagens, porque estavam carregadas de dor e sofrimento. Talvez tenha adormecido, de propósito, para estando com a família, me impedir de ver algo tão ameaçador, mesmo de pé no meio das pernas de meu pai.
E de Viana só me lembro de Santa Luzia altaneira, da Praia Norte escura e fria e do Castelo Velho moribundo dos combates travados contra piratas... E claro, das casinhas no Largo ao lado do quartel, onde dormíamos.
E todos os dias, pela madrugada, as cenas dos banhos, acompanhados pelos choros e gritos se repetiram e … perduraram até hoje, na memória dos filhos, como exemplo da luta da minha mãe, a esconjurar os seus medos e as suas doenças.

2 comentários:

  1. Anónimo2/02/2013

    mais uma fantástica história. Assim que começo não mais consigo despegar até ao fim. Impôe se uma pergunta: quem é a ela que ficou a guardar a casa?
    abraço
    paulo

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  2. Maria Branco
    Estes banhos, fazem-me lembrar os meus. Que barbaridade!!!!!! a água gelada, quase de madrugada, e, nós, com aquela combinção, a nos comportarmos... algumas vezes, com uma certa má « criação» pudera!!!!!! Parabéns, gosto imenso de ler as suas públicações.

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