Parecia
que a minha vida tinha entrado numa roleta sem saída. Por mais que
andasse voltava sempre ao mesmo lugar!
Era
naquela escola que tinha feito a instrução primária, era àquela
aldeia que tinha regressado dois anos antes, e agora... voltava ali
outra vez.
Para
trás tinha deixado os colegas em Viana do Castelo, uma experiência
pedagógica de articulação com a Escola do Magistério,
interrompida pelo então Ministro da Educação, Sotto Maior Cardia.
Voltava
a casa dos meus pais, voltava à aldeia para ser monitor de
Telescola.
A
Telescola era um sistema que permitia aos alunos fazer o 5º e 6º
ano e que não poderiam frequentar a escolaridade obrigatória, por
residirem em aldeias e locais muito afastados de povoações com
escolas preparatórias. Desde 1973 que o Ministro Veiga Simão tinha
alargado a escolaridade obrigatória para 6 anos, mas só agora,
passados 5 anos, os alunos da aldeia iam beneficiar desse direito.
Eu
nunca tinha sido monitor de Telescola. Não recebi preparação para
tal e desde logo percebi que se pretendia que o meu papel fosse
diminuto, pois os professores das várias disciplinas planificavam as
aulas e transmitiam-nas pela tv, a partir do Monte da Virgem, no
Porto.
Esperavam
que eu fosse um monitor. Abria e fechava a escola, fazia a chamada,
marcava as presenças e ausências, distribuía as fichas das
respectivas disciplinas e depois da transmissão pela tv, tirava
dúvidas e apoiava a realização das fichas de consolidação de
conhecimentos. Fiscalizava os testes, que remetia pelo correio e mais
tarde recebia a classificação. Regularmente fazia os mapas de
controle dos lanches para o IASE e comunicava aos pais a evolução
da aprendizagem dos alunos.
A
aldeia, apesar de ter cedido gratuitamente baldios para a barragem
elétrica D'el Lima, ainda não possuía electricidade.
O
delegado escolar informou-me que além dum pequeno gerador, ainda
teria por mês, direito a 25 litros de gasolina e 5l de óleo. Os
alunos teriam direito a um pão com queijo ou marmelada, um quarto de
litro de leite, por dia e de resto... boa sorte!
Além
da televisão a preto e branco, havia ainda um estojo de carpintaria
para apoio às aulas de Educação Visual e trabalhos práticos.
A
escola era uma única sala e estava igual aos meus tempos de
primária. Subia-se por uns degraus de pedra. Uma janela e uma varanda, as carteiras em fila, a secretária junto do quadro, uma luz difusa e as recordações da infância a emergirem da minha memória, à mistura com o cheiro a giz e o ar viciado pela falta de oxigénio e excesso de respiração.
A minha professora continuava a exercer da parte de manhã, partilhando, pela primeira vez a sala, à tarde, com outro colega e ex-aluno, que era eu. Nas paredes já não existiam os retratos de Salazar e Américo Tomás, mas o crucifixo, mas as paredes nuas erguiam-se frias, como ameias dum castelo.
A minha professora continuava a exercer da parte de manhã, partilhando, pela primeira vez a sala, à tarde, com outro colega e ex-aluno, que era eu. Nas paredes já não existiam os retratos de Salazar e Américo Tomás, mas o crucifixo, mas as paredes nuas erguiam-se frias, como ameias dum castelo.
Os
alunos já me conheciam e esperavam-me com afecto e muita ansiedade.
Era a primeira vez que na aldeia ia funcionar a telescola. Eles iam
ser os primeiros alunos!
Era
um grupo de 18 alunos, mais rapazes que raparigas, à volta de 12 e
13 anos. Três vinham a pé duma povoação a 4 Km, dois eram gémeos.
Havia dois alunos ( o Pedro e a Maria) que tinham regressado de
França e falavam melhor francês do que eu. Todos tinham feito a 4ª
classe no ano anterior e possuíam as aprendizagens básicas para
enfrentarem o 5º ano com alguma serenidade.
Eu
adorava a minha profissão de professor e tinha de provar a mim mesmo
que independentemente das circunstancias, continuaria a gostar da
minha profissão e a minha opção estava confirmada. Fosse ali ou em
qualquer outro local. Ali, na minha aldeia tinha a oportunidade de continuar a ser um bom profissional. E aquelas crianças
precisavam ter um bom estímulo para progredirem. Que melhor exemplo,
do que um natural da aldeia, que regressava como professor e motivado
para ensinar?
Após
o desconforto inicial, arregacei as mangas e deitamos mão à obra.
Eu não seria um monitor qualquer. Eu era o professor e como tal,
comecei por organizar o espaço, com os alunos. Ao fundo da sala do
lado esquerdo, improvisamos uma bancada com fogão para aquecer o
leite e distribuímos a tarefa a uma equipa de três. Aquecer,
distribuir e lavar a panela e os copos.
Ao
fundo da sala, do lado direito, organizamos uma pequena oficina com os utensílios,
martelos, serras, esquadros, berbequim, tesouras, serrotes, etc. e
uma bancada de trabalho. Outra equipa de três alunos ficava
responsável pela sua organização, arrumo e sistema de requisição
destes materiais, para fim de semana.
No
armário lateral, organizamos os materiais e fichas das disciplinas a
distribuir diariamente. Outra equipa de três alunos
responsabilizava-se por manter arrumado o material, seleccionar
diariamente as fichas de apoio e distribuí-las aos colegas.
Fiz
ainda um duplicador de gelatina, num tabuleiro de alumínio, o que
permitia tirar rapidamente 30 a 40 cópias dum documento.
Outra
equipa de três alunos era a responsável pela manutenção e
funcionamento do sistema eléctrico. Transportavam o motor para o
exterior, num abrigo, verificavam o nível do óleo e da gasolina,
atestavam o depósito, punham-no a funcionar e nos intervalos
enquanto houvesse luz suficiente vinham a correr desligar o motor,
para deste modo, poupar gasolina, o que permitia prolongar no final
do dia, mais meia hora de funcionamento, para ver.... desenhos
animados, como me tinham pedido.
Havia
ainda dois alunos responsáveis pela marcação das presenças e
faltas e outros dois com a tarefa de manutenção da limpeza da sala
e arrumação geral.
À
sexta feira fazíamos o balanço das actividades e do desempenho das
tarefas, mudávamos de equipas e espreitávamos a programação da
semana seguinte, no manual da telescola.
Com
estas quatro equipas a funcionar e tarefas distribuídas sentia-me o
capitão dum navio a velejar a toda a vela...
Atenção
aos alunos a precisarem mais de apoio, atenção aos pais, que por
natureza são mais conservadores, atenção ao delegado escolar,
atenção ao Inspector, atenção a tudo o que mexe e põe em causa
este empreendimento.
Sentia
que os alunos andavam muito motivados e eufóricos com esta
organização. Tentavam corresponder com o melhor que sabiam e podiam
e como se conheciam todos, persuadia-os a desenvolverem relações de
camaradagem, amizade, respeito mútuo e inter-ajuda.
Um
dia, quando achei que a máquina estava no auge do seu funcionamento,
entreguei a chave da sala um aluno e disse que não demoraria muito.
Eles que começassem a trabalhar. Demorei-me intencionalmente,
interrogando-me: Serão eles capazes? Estou a pedir muito?
Que
alegria e satisfação poder confirmar, que eles tinham alcançado um
nível de autonomia tão grande, que conseguiam desempenhar todas as
tarefas responsavelmente.
Tinham
posto o leite a aquecer para o lanche, tinham visto o nível do óleo
e da gasolina, tinham selecionado as fichas do dia, tinham marcado as
presenças e as ausências e sentados, em silêncio ouviam a
transmissão pela tv.
Era
verdade! Cada professor transporta em si o desejo de se anular e
deixar de ser imprescindível! A autonomia dos alunos impõe a
diminuição da "presença" do professor.
Em
Janeiro ou Fevereiro recebemos a visita do Inspector. Um homem mais
velho do que eu, de bigode e “pêra”, a surgirem os primeiros
cabelos brancos, na casa dos trinta... baixo e entroncado.
Após
as apresentações gerais, à frente dos alunos e lamentações por
só agora ter podido visitar-nos, o semblante foi-se desanuviando e
deixou marcada a data de posterior visita para observação da aula
de francês. Entretanto foi dizendo que discordava da exposição do
material da Educação visual e trabalhos práticos, pois se
desaparecesse algum objecto eu seria o único responsável.
Que
sim, não havia problema, eu assumia toda a responsabilidade e os
meus alunos mereciam-me toda a confiança.
Após
a sua saída os alunos manifestaram a sua revolta para com o Inspector,
pois,
Quem
é que ele pensa que nós somos?
Nós
não tiramos nada a ninguém!
-
Concerteza, concerteza, deve ter-nos confundido com outras escolas.
Mas... a juventude irreverente (minha e dos alunos) a sussurrar: porque não aproveitar e pregar uma partida ao Inspector?
Mas como?
Fazemos
assim:
Nesse
dia a aula decorre normalmente. A equipa distribui as fichas,
sentamo-nos, ouvimos a emissão, e depois eu faço as perguntas de
compreensão, ás quais vocês respondem naturalmente, “oui” ou
“non”. Ao Pedro e à Maria faço perguntas mais desenvolvidas,
estilo, O que pensas sobre a importância dos frutos? E eles falam,
falam até eu dizer que já chega. E pronto. Desta forma ele fica a
pensar que todo falam muito bem francês.
Isto
foi fogo que deu na estopa. Não falavam noutra coisa, enquanto eu me
interrogava se seria boa ideia, ou tinha deixado o barco bater em
rochedo. Pelo menos, permitia-me ir recuperando alguma energia,
avisando: Vamos aprender francês, para fazer boa figura!
E
se o Inspector descobrisse? E se eles não aguentassem a pressão e
se desmanchassem? E se contassem em casa e os pais me viessem
perguntar o porquê dessa agitação? E que andava eu a ensinar? O
engano? O fingimento? Eram esses os meus valores?
Esta
aventura teria de seguir em frente, já era tarde para voltar atrás,
mas prometi a mim mesmo, que não me meteria noutra, tão cedo.
No
dia aprazado, após os cumprimentos iniciais, sentou-se o Inspector
ao fundo da sala e eu a seu lado. Sentia no ar a agitação dos
olhares e as palpitações daqueles pequenos corações, que um ou
outro suspiro atraiçoava.
A
colega no Monte da Virgem iniciava a aula a preto e branco no monitor
da nossa sala. Um pequeno filme de desenhos animados, uma pequena
história, e depois algumas frases de gramática. Fim de emissão.
Tinha chegado a minha vez. Levantei-me fui para a frente dos alunos e
comecei o ensaio. Perguntava a dois ou três alunos e a reposta
surgia comprometida: “Oui”
-Trés
bien, merci!
E
agora uma pergunta mais difícil a requerer uma resposta mais
elaborada!
E
mais duas ou três perguntas a pedirem um “non”. Outra pergunta
dirigida à Maria, intercalada por outras a solicitar o “oui “ e
uma difícil ao Pedro, permitindo-lhe parler, parler...
A
turma vibrava com o desempenho de todos. Eu olhava o Inspector e
confirmava que ele não se apercebia do engano. Ele olhava a floresta
e não via a árvore. Comecei a sentir pena dele. Não gostava de
estar no seu lugar. Era melhor acabar com aquilo. Para os alunos era
um momento de glória, tínhamos pregado uma partida ao “Perinhas”,
mas eu iria recordá-la como uma acção menos feliz. Esperava não
ter de me arrepender.
Por
fim, o Inspector perguntou-me se utilizava alguma metodologia
diferente do habitual, porque estava admirado com o desempenho dos
alunos, em tão pouco tempo de aulas. A minha consciência não me
permitiu gozar o efeito da aventura! Eu queria despachar aquilo com
urgência. Aproveitei para os elogiar, dizendo que eram muito
inteligentes e aprendiam depressa.
Ainda
me perguntou se achava razoável o pedido doutros colegas sobre a
necessidade de dicionários. Claro, que não ia contradizer os meus
colegas e que sim, com dicionários eles teriam aprendido ainda mais.
Quando
ele se foi embora, ficamos na sala a festejar a nossa representação.
Tentei baixar o entusiasmo, dizendo que todos tinham estado bem, mas
essencialmente porque eles tinham estudado muito e eram bons rapazes.
Mais
tarde, quando fui formador em vários cursos e seminários de
formação e professor na Escola Superior de Educação em Lisboa,
contei esta história, para realçar a importância do professor e da
sala de aula, como elemento fulcral e essencial do sistema educativo
(em cada sala de aula, o professor tem mais poder que o ministro). Salientei a aprendizagem que tinha feito com os colegas da Escola Moderna, na organização cooperativa do trabalho e chamei
atenção para a necessidade dos instrumentos de observação que nos
permitem ver as árvores e não somente a floresta! Foi Maria Montessori, (1870-1952)
quem primeiro chamou atenção para a importância da observação na
educação e o Prof. Albano Estrela, quem em Portugal, primeiramente
criou um conjunto de instrumentos de observação, primeiro
passo, para o desenvolvimento duma ciência da educação!
Saiu de lá o Inspector sem uma palavra para a nossa organização! E se ele tivesse construído uma grelha de análise dos
comportamentos verbais verificava, numa planta da sala, que somente
dois alunos respondiam elaboradamente e a todos os outros correspondiam
respostas curtas e breves, OUI ou NON.
Faz muita falta sabermos observar!
Faz muita falta sabermos observar!
IG escreveu:
ResponderEliminardescreveste bem o tipo de trabalho que tínhamos de fazer..
Agora imagina eu, uma lingrinhas, a pôr o gerador a funcionar..era uma aventura...Chamava-se "Pachancho??"
Um dia o "Perinhas" chegou primeiro à escola que eu...
À 2ª feira eu chegava tarde, pois tinha só uma camioneta que saía dos Arcos ao meio-dia. Ele chegou e percebeu que ia sempre tarde...
Disse " Minha filha o que você passa!!!"
Mas aguentei bem e gostei...
Parabéns !!!
Tens boa memória ...
Continua a escrever.
O motor era da Honda!... Obrigado pelo incentivo...
ResponderEliminarCecília Ribeiro
ResponderEliminarAdorei o teu trabalho,senti-me a viver como professora que fui...não há medos quando fazemos o trabalho consciente, isso é pedagogia!
Era assim.
ResponderEliminarE ainda mais umas caminhadas por montes e estradas não alcatroadas, e escolas sem água canalizada com poços que atraiam os meninos para o perigo, e salas de aula onde as mães eram aos fins de semana as empregadas de limpeza...
Mas uma indomável vontade e tambem uma enorme ingenuidade nos alimentava.
Ingenuidade, é a palavra que está subjacente ao teu texo. Ingenuidade e humildade que foram no teu caso (não o será em todos) a génese do sucesso na profissão que escolheste.
Ou terás sido tu o escolhido?
Ser professor não é, de facto, para todos. Ou, pelo menos, não devia ser. Quanto a ti, caro Manuel, o pouco tempo que trabalhámos na mesma equipa deu para perceber que estavas na profissão certa. A tua maneira de ser, alegre, otimista, bom comunicador, brincalhão mas profissional,capaz de descer aos alunos para melhor os motivar, entusiasta, voluntarista, inovador, faz com que arrastes os teus pupilos para o sucesso. Com empatia tudo se torna mais fácil e tu consegues fazer um amigo de cada aluno. As historietas que aqui revives são também a prova do teu entusiasmo e dedicação a uma causa por vezes tão mal tratada, sobretudo pelos governantes deste país. É bom ter tido colegas como tu. Um grande abraço, amigo, e nunca percas o entusiasmo que te carateriza.enarix
ResponderEliminarAntes de mais, deixa-me agradecer pela recordação que a imagem das tuas palavras me trouxe. Pois eu era um aluno do turno da manhã que experimentou o teu duplicador de gelatina em casa devido à competência dos teus alunos, que me deram a receita. Aproveito para dizer que desejei imenso pertencer aquela turma ou pelo menos ter o professor da tarde, tal era o sucesso dos teus métodos pedagógicos. O facto da televisão numa aldeia onde não existia luz também fascinava qualquer criança, ainda que em minha casa havia televisão a bateria que só se ligava em dias de festas.
ResponderEliminarAinda tenho memórias da figura do inspector que descreves.
Quanto à tua metodologia vem de encontro ao livro "A arte de tornar-se inútil" de Ricardo Vargas. É uma boa forma de desenvolver responsabilidade e competências.
Muitos parabéns pela arte de transformares as palavras em imagens magnificas que encantam qualquer leitor e fazem reviver o passado com alguma saudade.
Um grande abraço,
Paulo Rodas
Zita Amorim
ResponderEliminarManuel, ri, ri, ri e recordei(com emoção) a minha própria vivência como professora da Telescola. As aulas de francês...que saudades!!!!!