domingo, 6 de janeiro de 2013

O RÁDIO


À casa iam chegando pessoas, animais e objetos. Alguns ficavam e outros partiam, ou por vontade própria ou por serem desnecessários. Às vezes era só uma questão de tempo.
Um dia o meu pai trouxe um rádio castanho de baquelite e botões amarelos, com duas colunas exteriores, cilíndricas donde saiam as coisas mais imprevistas: canções, notícias, relatos futebol, conversas e muita risota, parodiantes...
O rádio ficou na cozinha com uma coluna. A outra prolongou-se através dum fio pelo corredor adiante até ao quarto de meus pais. Assim nós ouvíamos na cozinha e meu pai no quarto, enquanto descansava. Mais tarde mudou de vez para o quarto e ficou a coluna na cozinha. Assim ele ouvia as notícias enquanto almoçávamos.
No início o rádio era intrigante. A minha mãe sorria. Eu olhava entre o admirado e inquieto por confirmar que havia mais mundo, que não via. Comecei a tentar reproduzir os relatos de futebol, porque os locutores falavam muito depressa e como um eco, eu repetia o mais depressa que podia numa vertigem louca da minha língua, lábios, maxilares, garganta, pulmões e ouvidos: finta um, finta dois, pela linha lateral, vai rematar e é rasteirado! Falta! O árbitro marca falta (ouvia-se com intensidade o clamor das pessoas protestando). As mulheres, que ajudavam a minha mãe lá em casa, riam-se e como os jogadores, mais me entusiasmava eu: Eusébio prepara-se para marcar, ganha balanço, atira e é gooooooolooooo! Goooooolooo do Beeeeenfiiiiiiicaaaa! Eusébiooooo! Benficaaaaaa!

Às vezes eram as canções da Amália: “Povo que lavas no rioooo…” Outras, o Salazar naquela voz meticulosamente monocórdica soprava: “Portugueeeses…”
Um dia meu pai disse que vinha aí a febre-amarela.
- E donde vem, Zé?
- Vem da China!
- Então não chega cá! - Afirmava peremptória minha mãe.
- Olha que qualquer dia está aí! - Retorquia meu pai.
Ria-se a minha mãe perante o ar grave e sério do meu pai. A China era longe. Não haveria de chegar a Soajo, quanto mais a Ramil, no meio da serra.
Mas a febre ia-se alargando. Vietname, Indochina, Costa oriental, Costa ocidental de África e o meu pai a repetir:
- Qualquer dia está aí! Já chegou a Moçambique… a Angola, à Guiné…
Tantos nomes... e estranhos! 
- Qualquer dia está aí! Norte de África. Já só falta atravessar o mar para chegar cá!
Ria-se a minha mãe. Atravessar o mar? A febre? Não, isso eram histórias da rádio.
Mas a coisa ficou séria. Tinham aparecido os primeiros casos no Algarve, depois Alentejo, Lisboa, Porto, Braga…
-Qualquer dia está aí!
A minha mãe hesitava. Mas … como chegaria a Ramil, lá no meio da serra? Que asas tinha essa febre-amarela? Afinal sempre existiam coisas que não se viam... e coisas que se podiam meter medo a meus pais, quanto mais a mim...
… E um dia o meu pai tossiu, suava, tinha temperatura e a febre tinha chegado a Ramil, mesmo no meio da serra.
O meu pai e a rádio tinham marcado pontos na minha consideração e da minha mãe, mas mais aumentava a minha preocupação.
Afinal o mundo era maior do que eu pressentia. Mas como cabia dentro daquela caixinha? O telefone enfim, tinha um fio suportado por paus, por onde as vozes corriam velozmente, mas o rádio só tinha um fio pendurado na prateleira a servir de antena e alguns botões que o meu pai rodava e as falas sucediam-se umas atrás das outras. Por onde vinham as vozes?
Numas férias o meu irmão mais velho resolveu o problema com uma chave de fendas. Abriu a parte detrás e finalmente pudemos ver: um mundo de válvulas, fios e luzes. Era isto um rádio? Onde as pessoas?
Um dia o meu pai foi insinuando que havia ratos no rádio.
- Ratos, Zé?
Talvez mais uma rata. Uma rata que abriu o rádio, tirou as notas que ele lá pôs, desfez uns pedacitos de papel de jornal, a provocar a cumplicidade dos ratos, a criar um álibi, um céu que se ia carregando de nuvens.
- Eu não fui! – Dizia minha mãe, entre a ironia e a preocupação. Eu não! Sei lá tirar parafusos…

Mas o meu pai ficou a saber que a mulher o tinha apanhado! Podia perdoar-lhe, mas ele não podia voltar a traí-la…

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