quarta-feira, 16 de maio de 2012

O AFILHADO DO MEU AVÔ


O avô é padrinho do homem e por isso, também, se chama Firmino.
Vive em Lisboa e não sabe porque vem cá todos os anos, no inverno. Sabe que é gordo e tem um grande anel na mão direita, com uns dedos muito gordos, um relógio grande e dourado na mão esquerda. Vem visitar o irmão, a aldeia e seus fantasmas. Tem uma idade que ele tem dificuldade em saber se é novo ou velho. Talvez uns quarenta, ou cinquenta. Ele não sabe distinguir as pessoas que têm 30, 40, das que têm 50 anos. Existem as crianças, como ele, os jovens, moços e moças e depois são todos da mesma idade, até chegarem a velhos e morrerem. Uns com mais rugas, cicatrizes e caras tisnadas do sol e da vida. Outros com meio brilho no olhar, passo curto, voz rouca. Uns que não levantam a cabeça do chão e alguns, que nem olham para o chão e não tropeçam. Uns que não se calam e outros que mal mexem os lábios, numa tremura a imitar o sussurro das manhãs de verão. São quase todos morenos de olhos escuros. Ou apenas escuros, porque se vestem de escuro. A ele chamam-lhe ranjado, por ter os olhos claros e a pele tão branca, o que faz redobrar de cuidados a tia.
Quando o homem vai visitar o padrinho, leva-lhe dois maços de tabaco sem filtro e fumam os dois durante muito tempo, a falarem de Lisboa e das saudades do avô.
Ele despede-se respeitosamente, o padrinho diz-lhe, Deus te abençoe. Desejam mutuamente uma boa tarde, ou uma boa noite, raramente um bom dia, porque ele dorme pela manhã fora. Deve deitar-se tarde, porque a ocupação dele começa depois do lusco-fusco, quando se foram as últimas sombras a contornar as esquinas das casas.
O irmão do homem, quando vai visitar os  tios, conta:
- Elas chegam cedo. Umas são de cá, mas outras vêm de longe.
Ele já tinha reparado. Umas mulheres estranhas, com o avental pela cabeça, passam no caminho, ao lado de casa e não se benzem na porta da igreja. Seguem de cabeça baixa, a ocultar o destino, nas pegadas que se afastam da igreja, á saída do lugar, na direção do cemitério e só o latido dos cães as acompanham. A tia benze-se quando as vê passar, e o tio, abana a cabeça, em sinal de desaprovação. Ele interroga-se a saber qual o motivo da dissonância e da urgência dos caminhos escuros da alma.
Elas esperam sentadas ao borralho, mas quando dão de caras com o meu irmão, é o bonito. Ele espera-as na sala, uma de cada vez. Começam a gritar e a espumar pela boca, que não há quem as segure, enquanto ele reza uma ladainha impercetível. Outro dia uma rebolava pelo chão, puxava pelos cabelos, despiu-se toda, espumava da boca, revirava os olhos, nem sei quantas vezes, aquilo é de meter medo. Só acalmou quando ele lhe tocou, sempre a rezar e lhe fez o sinal da cruz, na cabeça, no peito. Entrou num sono tão profundo que tivemos de esperar meia hora que ela fosse acordando. Depois não se lembrava de nada, vestiu-se envergonhada, saiu com a irmã, boa noite e nunca mais voltou. O meu irmão estava cansado e nessa noite já não fez mais nada. Tiveram de se ir embora e voltar no dia seguinte.
A tia vai-se benzendo e o marido esconde-se atrás do ar critico, ele pressente-o, adivinha as suas reticencias, mas não ganha coragem a perguntar, porquê? Também só ganharia um vai-te deitar, isto não são conversas para ti. Por isso deixa-se estar calado, escondido naquela floresta de subentendidos, à espreita dos medos dos outros. Viriam um dia a ser os seus?
- Outro dia uma começou a espernear e não cedia às rezas dele. Vomitava, arrepelava os cabelos, arrancava os botões da camisa, com um ar tresloucado, (ai Jesus, bendito seja deus, dizia minha tia), e gritava com voz de homem, Não saio daqui, quem és tu para me tirar daqui? Quem pensas que és tu, que enganas a tua mulher com a outra e pedes dinheiro às duas? E já pagaste o dinheiro que pediste ao teu irmão?
- Foi aí que fiquei a saber que o meu irmão engana a mulher. Que ele lhe pedia dinheiro… eu já sabia, mas que a enganava…
- E que fez ele, compadre?- dizia minha tia a desviar o incómodo da revelação.
- Ora, pegou no crucifixo numa mão e deu-lhe com a estola da outra mão, e disse-lhe: Sais, sais, a bem ou a mal! Daqui para as pedras pintas, pedras negras, profundas do inferno!
Ela vomitou uns líquidos verdes, devia ter comido couves, sei lá… mijou-se toda, pelas pernas abaixo, arreganhava os dentes, abria os braços como uma águia, ripava os cabelos e … disse, Eu vou, mas hei-de voltar! E pronto, caiu numa prostração… apagou-se como uma fogueira a quem deitam um cântaro de água. Ali aninhada toda mijada e vomitada. Um cheirete a enxofre que não queira saber. Foi preciso lavar tudo com lixívia e arejar a sala, não sei quanto tempo.
Ele ouvia e os olhos brilhavam de entusiasmo, pela descoberta e confirmação das suas suspeitas: Bem lhe parecia que nós não éramos o que parecíamos. Havia mais mundos dentro de nós. Havia corredores, pessoas, diabos, raposas da murraça, lobos e homens misturados, sem se saber onde começa o lobo e caba o homem, anjos, bruxas, minas escuras, rios e corpos de todas as formas e feitios. O que víamos nas pessoas era apenas uma pequeníssima parte, era só a aragem, porque o verdadeiro mundo estava oculto e só se revelava em determinadas ocasiões. Também haveria jardins, princesas, reis e paraísos para todos?
- Oh! Compadre, ele há cada coisa! – Dizia a tia, enquanto o tio se mantinha calado e cada vez mais cético: Se fossem mais é trabalhar! Isso é falta de trabalho!
- Mas outro dia é que foi o bonito, continuava o compadre dos tios, a comprazer-se nas histórias de embasbacar! Uma mulher, aí da freguesia de cima, quando chegou à porta já não queria entrar. Tivemos de a meter à força. Ela já espumava antes de entrar. O meu irmão levantou-se e com a Bíblia numa mão e a estola na outra, começou a sorrir e disse-lhe: Então por cá outra vez?
Até parece que ele a conhecia. Mas não era ela que falava. Era uma voz rouca de um homem morto há muito tempo.
- O que te faz falta?- Perguntou meu irmão!
- A promessa que ninguém pagou ainda!
- E que promessa é essa?
- O sangue duma mulher virgem e menstruada, numa noite de lua cheia, espalhadas em volta da capela, com bocados de broa esfarelada. Três missas e uma novena.
- Porque foi essa promessa?
A mulher estrebuchou toda, a tremer como se a tivessem metido no gelo:
- Matei o meu pai… ele deitou-me a perder… e ao fim de algum tempo pus-lhe veneno dos escaravelhos da batata na sopa e morreu… ninguém descobriu, mas arrependi-me e fiz essa promessa.
- Porque não a pagaste tu?- Perguntou meu irmão.
A mulher perdeu as tremuras, mas os olhos saltavam-lhe das órbitas e os músculos da face estavam roxos.
- Porque já não era virgem, caralho! Foi ele que me deitou a perder… e a quem ia pedir o sangue?
- Também não vou pedir o sangue a ninguém. Mando rezar as missas e vais embora em paz…
A mulher começa a dizer os palavrões todos. Caralho, foda-se, …
Seria uma vergonha se estivesse escorreita.
A tia repetia incessantemente, Ai Jesus valha-me Deus! O tio só dizia, o que ela queria bem eu sei! E ele continuava:
A mulher começa a falar latim e ninguém percebe nada. Era a alma do avô que foi padre na Peneda! O meu irmão com um crucifixo e com a estola, gritou-lhe,
- Vai-te embora e deixa esta mulher em paz! Três missas pela tua alma e não voltes mais!
Pousou a cruz e começa a ler umas coisas da Bíblia. A mulher sobe pelas paredes acima, com as mãos esticadas até ao teto, por fim, deixa-se cair e começa a ressonar.
O meu irmão aspergiu-a com água benta e um raminho de alecrim e disse:
- Deixem-na descansar.
Por um pouco reinou o silêncio e cada um via nas labaredas do borralho o que queria ver. Nem a chuva lá fora a cair nas telhas e no caminho perturbava esta visão. Olhavam para dentro de si, à procura sabe-se lá de quê! O que veriam eles?
- Olhe comadre, tenho visto cada coisa, que nunca imaginei poder vir a ver tanto!
- Há cada coisa! Desabafa a tia.
- O que elas precisavam bem eu sei! Suspira o tio!
-Vai-te deitar! Nem devias estar a ouvir estas coisas! Ainda te fazem mal à cabeça! Amanhã faço-te um chá de alecrim e ervas!
- Com muito açúcar! – disse ele, enquanto se levantava de olhos presos na fogueira do borralho!

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