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sábado, 28 de maio de 2022

O livro

Desafiaram me a escrever sobre um livro de que tenha gostado muito. Escrevi este texto


 
O livro
 


Nunca soube porque ela me deixou o livro na mesinha de cabeceira, sem um recado, sem um adeus. Deixou-me, deitado na cama, foi-se embora e nunca mais voltou. Dela ficou apenas o livro, Não me mates porque não sou tua, de M.Wheels,Amazon.com,2000.
O livro ficou muito tempo arrumado na secretária, naquela prateleira dos livros a ler, mas que tardam em ser lidos.
Só anos mais tarde, quando soube do acidente de carro que a colocou numa cadeira de rodas me lembrei do livro...em cima da mesa de cabeceira. Fui à estante, sentei-me e nunca mais parei à procura do final, ou à procura do enigma que nós éramos.
A história podia resumir-se muito brevemente: numa cidade satélite duma grande capital europeia, vivia um casal, ele professor e ela médica. Faziam uma vida tranquila e reservada, sem muitos amigos, dedicados às suas exigentes profissões. Nos tempos livres faziam pequenas saídas e no verão visitavam outros países. 
Um dia acolheram, provisoriamente, uma colega de escola de Julian e rapidamente se percebeu que entre ela e Linda, se originou uma cumplicidade, que progressivamente se traduziu numa relação amorosa
A exigência profissional da vida na escola e algum arrefecimento da relação criaram uma névoa de distração a Julian, que quando se apercebeu do que se passava, mesmo à sua frente, já o incêndio transbordava o seu conteúdo num continente perdido.
Julian ainda tentou que com a saída da colega de sua casa, a relação pudesse voltar à tranquilidade anterior, mas o mal estava feito e os danos eram irreparáveis.
O autor alonga-se na descrição de diálogos surdos entre os dois, numa mistura de despeito e sombra, amor e luz, verdade e raiva, ou pela ordem inversa, despeito e amor, sombra e raiva, verdade e luz. 
Ao longo dos vários capítulos o leitor sente-se atraído pelo desenrolar dos acontecimentos, umas vezes deixa-nos soltos a divagar para, logo de seguida, nos agarrar pelo braço e levar-nos, à força, por novos caminhos e veredas insuspeitos.
 As descrições e analogias entre a sensualidade e os odores culinários são irresistíveis, a desenhar sorrisos cúmplices de água na boca e suores no corpo.
 
Quando acabei a sua leitura, revi toda a nossa relação e, finalmente, pude entender porque a amiga solteira de minha esposa nunca respondeu aos meus olhares e sorrisos, vendeu a casa por baixo preço e conduzia o automóvel no dia do trágico acidente em que morreu e condenou a uma cadeira de rodas aquela que durante tanto tempo foi minha companheira.
 
Manuel Rodas 
Oeiras, 26 maio 2022














  

  

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Setubal

 







 

1- Ponto de partida

Há já alguns anos que visito Setúbal. Gosto da sua gente, das ruas e dos barcos com seus pescadores e todos os que em volta das ondas navegam.

Mas, por imperativos vários, sempre voltava a casa no mesmo dia, aumentando a gminha consciência de que para sentir um lugar é preciso dormir nele.

Desta vez, dormi três noites em Setúbal.

Durante o dia visitei vários locais, tendo começado pelo edifício da Câmara Municipal, o largo defronte, no Largo de Bocage!

O sítio transpira calma e um certo apaziguamento. Será das gentes? Será das consequências do Covid? 

Dali, segui para o Posto de Turismo, belamente decorado e com um bar no terraço, sobranceiro à praça, onde saboreei um delicioso café, sob o olhar atento do sol, que me envolvia com o seu tradicional calor duma manhã diferente de fevereiro!

Impossível visitar esta terra e não caminhar ao longo da Av. Luísa Todi, uma avenida verde e pujante de vida e arte!

O tempo corre, mesmo em férias, ou sobretudo, em férias. Uns choquinhos bem grelhados, bem regados, sob o olhar atencioso da empregada ( cabelos pretos e lisos, orientais, ou mais uma imigrante brasileira...) e ala até à beira mar, apanhar sol,  beber um café e consultar as notícias no tablet,  no Press Reader!

Voltamos ao Mosteiro de Jesus, na rua Acácio Barradas e as semelhanças com os Jerónimos são por demais evidentes. Soubemos mais tarde, que o convento se situa na passagem do gótico para o renascimento manuelino, tendo sido desenhado por Diogo Boitaca, em  1495, por desejo e ordem de Justa Pereira Rodrigues, ama de D. Manuel I.

O monumento, em fase de recuperação- pelo que, apenas, podemos visitar a nave central da capela mor- está despido de ornamentações e estatuária, de momento preservadas até final das obras.

O teto é suportado por colunas torças, ou torcidas feitas com pedras da Arrábida, acrescentando-lhe uma leveza e originalidade peculiares. As paredes laterais são revestidas de azulejos descrevendo cenas religiosas. Como curiosidade, fica a nota de que foi aqui rectificado o  Tratado de Tordesilhas, por D.JoaoII, dividindo as descoberto do novo mundo com a Espanha. Admirável terra, que a tudo assistiu e deu aval ao primeiro tratado global da história da humanidade!

Neste périplo, acabamos a tarde, na Casa da Baía, mais que um posto de turismo, é um espaço de divulgação dos bens desta terra e onde se pode lanchar, petiscar,alongar as pernas e saborear um delicioso licor!

Nas suas costas, o Bairro do Troino, um bairro com origem nos pescadores, mas parece que já no tempo dos romanos se fazia por aqui a salga de peixe! Lugar de destaque à mercearia Confiança, ricamente preservada pela câmara municipal e pelos herdeiros, a lembrar as mercearias deste país desde os séculos passados.

Era obrigatório passar no mercado do Livramento, que existe desde 1876, mas o edifício Art Déco é de 1930 e destaca-se pelos painéis de azulejos do interior, com cenas do quotidiano setubalense como o cuidar das redes, a salga do peixe, o transporte do sal ou a vindima. Salienta-se as cores dos frutos e legumes,  brilho dos peixes e a azáfama de quem lá trabalha.

Bem pertinho da Igreja de São Sebastião, na Rua Edmond Bartissol, n.º 12, encontra-se o espaço museológico Casa Bocage, o local onde nasceu o polémico poeta português. Vale a pena a visita para saber mais da vida e obra do Bocage. Não há outra terra onde um poeta esteja tão presente na vida da cidade, como esta. São ruas, largos, casas comerciais, em todo o lado, lá está Bocage, concerteza a sorrir por boas e memórias e outras de escarnecer, ou rir!

O mesmo preito é oferecido a Luísa Todi. Em estátuas, referências e nomes de rua e praça é outra presença constante a disputar a atenção com o poeta!

Não vou falar do Forte de S. Filipe, do Museu do Trabalho, nem no Miradouro de S. Sebastião, porque os tinha visitado anteriormente. 

Aqui, ainda muitos se lembram da importância da industria conserveira. Ainda andam no ar os gritos de chegado do peixe e o barulho das corridas das mulheres nas ruas, a correr para as fábricas, onde só havia trabalho quando havia peixe, trabalho que podia durar 12, 14 ou 16 horas. O tempo era determinado pela existência do peixe e a necessidade de sobreviver. Até que o 25 de abril pôs fim a este calvário.

Desapareceram as conserveiras, os soldadores das latas, os batedores, os "mexilhões" e os carregadores, de cestos à cabeça.

Numa próxima vez prometo visitar o parque do Bonfim e o aqueduto de Setúbal, sempre com bom peixe ao almoço e boa companhia ao jantar e ceia.

Venho embora com o sentimento de ter estado com gente amiga, uns familiares distantes e alguns soajeiros que para aqui migraram nos anos 30 e 40 do século passado. A todos procurei, nas ruas, jardins e padarias. A todos deixo a promessa de voltar mais vezes e, quem sabe, visitar os amigos, fazer amizades novas a acrescentar às atuais, em próximas crónicas. 

Manuel Rodas




terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O Brasil é um país irmão?

 

Durante o jantar tentei saber o que sentia a Juliana, uma estudante brasileira, a  viver nas Caldas da Rainha, sobre os portugueses.  Ela tentou lembrar-me a escravatura, a mortandade dos índios, um país com uma estrutura colonialista, com a riqueza concentrada em meia dúzia e a pobreza generalizada. 

Tentei retorquir que naquele tempo era normal o colonialismo e o imperialismo  subjugarem os povos nativos, como o fizeram todas as potências coloniais europeias. Aliás , como o tinham feito os árabes e mais tarde os romanos, os Vandalos, Alanos Suevos, Visigodos.  E não esquecer as invasões francesas que por onde passaram, mataram, roubaram e saquearam! 

Portugal tinha deixado uma história e uma cultura portuguesa no Brasil, bem como uma língua, e como dizia o poeta, a Língua Portuguesa é a minha pátria!

Mas fiquei insatisfeito na minha argumentação. Claro que sou anticolonialista, anti-racista e defendo a autonomia e liberdade dos povos e das nações, bem com9 respeito poema pessoa humana, seja ela quem for.

Mas faltou-me qualquer coisa na minha argumentação. Procurei, procurei e encontrei esta pérola:


EU AMO A PORTUGALIDADE

Fernando d’Oliveira Neves - Embaixador jubilado.

Público, 2 de Dezembro de 2021


É claro que o Império Português foi colonialista e racista. Mas todas as sociedades, por mais opressoras que sejam, têm vida para além dessas dimensões. É da tradição diplomática, ou melhor, era, que, quando um embaixador acreditado num posto terminava a sua missão, o ministro do país anfitrião lhe oferecia um almoço de despedida. Tal era possível quando, em cada capital, havia uma dúzia de embaixadores. Hoje, numa capital como Lisboa esse número ronda a centena. É impossível que todos os almoços sejam oferecidos pelo ministro. Na sua indisponibilidade, é substituído por um dos secretários de Estado ou pelo secretário-geral do ministério.

Era eu secretário de Estado dos Assuntos Europeus, quando me pediram para oferecer o almoço de despedida ao embaixador de Cabo Verde, Onésimo da Silveira. Nunca o tinha visto e confesso que só li o respectivo currículo pouco antes de me dirigir para a casa de jantar do Palácio das Necessidades. No fim do almoço, faço um brinde, com as banalidades usuais, apenas reforçadas pela forte singularidade das relações entre os dois países e o facto de saber que o meu convidado era poeta. Quando acabo, o embaixador Onésimo da Silveira levanta-se, com um pequeno caderno na mão e, antes de começar a ler, diz “Eu amo a portugalidade”. Fiquei encandeado perante a surpresa e a profunda sabedoria desta frase maravilhosa. Tive vontade de pintar a cara de preto, face à banalidade do que dissera. A conjugação do conceito de portugalidade com o verbo amar enfeitiçou-me e fiquei, encantado, a ouvir a magia do discurso que o embaixador continuou a ler, levando-nos pelos meandros mágicos da experiência dessa portugalidade, tão bem cognominada.

Este episódio ficou-me atravessado. Tentei, reconheço que sem a persistência necessária, obter o texto, sem nunca o conseguir. Agora, que tantos dislates se ouvem sobre a expansão portuguesa, esse valor que mais alto se alevantou e calou as musas, tenho-me lembrado dele.

É claro que o Império Português foi colonialista e racista e mais outras práticas condenáveis de todas as sociedades humanas. Dessa ignomínia não restam dúvidas. Apesar de tudo, parece avisado olhar para cada época em função dos valores então prevalecentes. Vivi o bastante para ver valores considerados vitais desaparecerem e, felizmente, ver surgir novos que nunca me tinham passado pela cabeça. Mas todas as sociedades, por mais


opressoras que sejam, têm vida para além dessas dimensões. A expansão portuguesa foi muito mais que isso. Foi uma das epopeias que mais mudaram a História, dando aos homens uma nova e real dimensão do mundo em que viviam.

Até pelo limitado número de portugueses que a fizeram, provocou uma convivência sem precedentes de pessoas de todas as partes do mundo, que, no quotidiano, se misturaram, fizeram amizades, riram em conjunto, beberam e comeram ao pôr do sol dos cantos do mundo por onde andámos e onde muitos ficaram, trocaram experiências e constataram a relatividade das suas virtudes, crenças, medos e ambições.

Não é fácil definir a portugalidade. Talvez o resultado positivo desse intercâmbio seja a criação e perpetuação de laços afectivos e familiares entre gentes das mais diversas partes do mundo. As amas índias da Casa Grande poderão ser exemplo. Ou talvez não passe de uma amarga saudade doce, de uma utopia que, por vezes e por instantes, se transforma em realidade. Talvez seja mais simples dar exemplos concretos.

Portugalidade é estar na antecâmara do chefe do Governo de Malaca, a conversar com um chinês, e de repente este dizer: “Mas o Senhor é português? Eu também. Sou da freguesia de S. Pedro, em Singapura, e nos dias 13 de cada mês fazemos a procissão de Nossa Senhora de Fátima”.

Portugalidade é chegar a Jacarta, ao fim de 25 anos de hostilidade em torno de Timor, ser levado a jantar no centro histórico da cidade pelo embaixador do Brasil, amante da presença portuguesa na Indonésia, e ouvi- lo dizer que o canhão que está no meio da praça é um canhão português, onde as noivas se vão fotografar no dia do casamento, porque é um símbolo da fertilidade.

Portugalidade é ser-nos dito, no Barém [Bahrein] e no Kuwait, que os únicos edifícios de pedra que ali existem anteriores ao século XX são os fortes portugueses que lá resistem.

Portugalidade é ouvir Samora Machel a olhar para o Índico e dizer do seu orgulho, quando se lembra que Vasco da Gama ali passou e, logo a seguir, afirmar, num tom meio agastado: “Nós é que descobrimos o Brasil e agora têm um Presidente que se chama Geisel!”.

Portugalidade é ouvir um goês a manifestar o orgulho num seu remoto antepassado agraciado com a Cruz de Cristo pela Rainha D. Maria II e outro a lembrar que o trisavô fora Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.


Portugalidade é ir jantar ao International Hotel do Barém, onde decorria a semana gastronómica do Texas, e chegar à mesa um empregado indiano, vestido à cowboy, que nos diz, em bom português, “boa noite” e tem na farda um dístico onde se lê o seu nome: Bragança.

Portugalidade é verificar que os católicos de diversos países da Indochina falam um português arcaico a que chamam christian, que é para eles sinónimo de português, e por isso se dizem portugueses.

Portugalidade é ir ao Portuguese Setllement de Malaca, encontrar uma mistura inédita de raças, malaios, chineses, indianos, e ouvi-los a cantar e dançar o Tia Anica de Loulé, em trajes minhotos, e a falar um português compreensível.

Portugalidade é um liurai timorense desenterrar e entregar-nos uma bandeira portuguesa e dizer que o pai dele a tinha enterrado quando Timor foi invadido pela Indonésia, e lhe disse para a dar aos portugueses quando (não se) eles voltassem.

Portugalidade é ir ao CCB assistir a uma sessão das comemorações dos 500 anos da Descoberta do Brasil e ouvir o embaixador brasileiro, Sinésio Sampaio Goes, ele também, como historiador, cultor da portugalidade, a apresentar o chefe da maior tribo de índios do Brasil, os índios tupis, se a memória não me falha. Vemos entrar um senhor com um aberto ar jovial, envergando um casaco de tweed e um maravilhoso cocado que lhe caía pelas costas até aos calcanhares, e ouvi-lo dizer, com ostensivo júbilo e orgulho: “O meu nome é António Cardoso e o meu avô era de Trás-os- Montes”.

Acabou o Império colonial português e a opressão de uma nação sobre as outras. Fica na História um admirável património universal, físico e afectivo. Este último, símbolo notável de humanismo, será a portugalidade. Que Onésimo da Silveira me ensinou a amar.

Mistério na caixa do correio

 Há já 10 anos, pelo menos, que uma criatura desconhecida ou invisível, se imiscui na minha correspondência, tentando abrir envelopes, lendo e comendo prospectos  pela calada da noite. A intriga tem durado este tempo todo , sem que eu lhe tenha dedicado a devida atenção.

Mas quem será a misteriosa criatura? 

A janela da caixa do correio tem uma abertura limitada, não cabendo nela a mão dum adulto, nem duma criança, de modo a agarrar a correspondência, roê-la e voltar a depositá-la.

Posto isto, fica excluída a hipótese de ser mão humana, a causadora desta provocação na minha caixa de correio e violação da minha correspondência.

Mas, então quem será?

Cheguei a pensar ser algum caracol, que decidiu incluir na dieta alimentar um reforço de fibras de papel. Cheguei a deixar na caixa de correio folhas de alface e de couve, mas curioso, estas ficaram secas, sem nenhuma dentada. Logo, é alguém que prefere o papel, a fibra lenhosa do papel, com sabor a tinta de impressão. Mesmo correndo o risco de a sua carapaça ficar colorida. 

Mas como seria possível que vivesse tanto tempo? Uma consulta ao Google informa que o tempo de vida dum caracol é de 5 a 10 anos. 

Se é o caracol, deve estar a morrer, pelo que o melhor é esperar que morra e deixe de me visitar. Entretanto vou procurando pelos muros um caracol verde ou azul. Viram por aí algum?

E se não for um caracol? 

Quem será?







terça-feira, 11 de janeiro de 2022

A fotografia

 



A minha irmã enviou-me esta foto, recentemente. Retrata umas férias de verão na praia norte, em Viana do Castelo, no início anos 70.
O nosso olhar está dirigido à fotógrafa, uma colega da minha irmã, enquanto ao fundo, numa linha oblíqua, a fronteira entre o mar e a areia da praia.
A minha irmã e o meu irmão têm um ar mais pousado, tranquilo, ela repousa a mão no joelho direito, ele apoia mão direita nas pernas e a mão esquerda apoia a bola ou apoia-se na bola, como a dizer, agora bola não, agora é para a fotografia.
Eu tenho um ar mais intranquilo, de quem interrompe algo, para vir tirar uma foto. Pronto para voltar a jogar à bola.
O nosso olhar começa por fixar-se no meu rosto, descai em diagonal para a direita, passa pela figura feminina, matriarcal e maternal, e  termina na criança e na bola.
O conjunto forma um triângulo recto, com uma hipótenusa equilibradora, unindo os dois lados e dando consistência ao conjunto. Por tudo isso, para além das gratas e saudosas recordações que subjazem, esta é uma bela foto, a preto e branco, das nossas memórias.
Contudo, esta fotografia está incompleta. A fotografia não diz como aparecemos aqui na praia, nem refere os elementos que faltam.
Estas férias devem-se à generosidade da minha irmã, que alugou uma casa e com mais 3 colegas (professoras),
nos proporcionou umas belas férias, na praia, no seu primeiro ano de trabalho, em Soajo.
Nesta fotografia falta um irmão nosso, que desde muito cedo viveu afastado do conjunto da família, primeiro, vivendo com a minha tia Adelina e depois, com 14 anos, foi trabalhar para Lisboa e com 16 emigrou para França,  vindo cá, apenas, nas férias e em anos alternados. Quando regressou já as nossas rotas nos tinham dispersado, eu para Lisboa, a minha irmã para Gondoriz com sua família e o mais novo, o Zé, para Paris, seguindo as pégadas do mais velho.
O meu irmão não esteve presente na maior parte da nossa juventude. Isso deixou uma saudade, uma ausência, cuja falta perdura, dolorosamente, até hoje. Isso, a fotografia não pode mostrar, apesar de ser uma bela fotografia da nossa juventude, onde os sonhos podem acontecer! Nessa altura, por fatores e dinâmicas divergentes, o meu irmão Firmino, não esteve presente, nem nós estivemos presentes nas suas deambulações itinerantes por Mem Martins e por Paris! O que resta? Uma imensa saudade, uma falta, uma ausência que a vida toda nunca preencheu, nem preencherá!
Por isso, esta fotografia esconde mais do que mostra! 
Há fotografias assim!





O Hillman, o primeiro carro da minha irmã, um verdadeiro carro de assalto!



quarta-feira, 26 de maio de 2021

A última viagem

 Depois que a Mini  morreu fui invadido por uma vontade enorme de a não deixar morrer. 
Sentei-me à secretária e durante longos dias escrevi 10 capítulos e 40 páginas. Depois escolhi as fotografias, imprimir-as e com lápis de pastel de óleo retoquei, acrescentei e inventei. Deste modo, nasceu o livro A ULTIMA VIAGEM que, depois do seu estágio em processo de fermentação, sofrerá uma revisão final e será publicado na Amazon. 
Eis algumas ilustrações e o primeiro e último capítulo.

1 Últimos dias
 
É na viagem que te encontras
 
Já há algum tempo que não me sentia bem. A visão ia faltando e as sombras habitavam os meus olhos, tendo dificuldade em perceber os contornos dos objetos e das pessoas. As imagens não apareciam definidas e até a luz do sol me deixava cega. 
O mesmo se passava com a audição. Sentia que perdia a intensidade e a orientação. 
Dele, apenas a voz e a silhueta permaneciam definidas e claras. Desde sempre que estavam gravadas em mim e as distinguiria em qualquer lugar. Era grande e tinha uma voz sibilante, às vezes cortante e outras uma ternura desconcertante.
Foi com ele que aprendi a encontrar um espaço para mim, na família e em casa. Um lugar no coração desses desconhecidos que, sem eu saber porquê, me adotaram. Vim a saber mais tarde que era um presente para a filha, a Inês, com 7 anos de idade.
Eu tinha nascido em Soajo, filha duma cadela preta, Chihuahua, e dum cão rafeiro que por ela se apaixonou.
Fui adotada aos 3 meses e bem me custou separar-me da minha mãe e da minha irmã. Depois de entregue à Patrícia, que me escolheu, por lhe parecer que melhor me adaptaria a um apartamento que o meu irmão, e ao fim de  4 h de viagem, cheguei finalmente a casa deles mas, como tinham uma viagem planeada, deixaram-me com a Maria Teresa, que passou o fim de semana todo a retirar-me as pulgas. Fiquei-lhe grata para toda a vida, embora viesse a saber que entre os cães e lobos as pulgas constituem uma defesa contra os predadores.
Não era apenas a visão e audição que, para os animais como eu, são órgãos determinantes para assegurar a sobrevivência. Não, não eram apenas esses sentidos que aos poucos estavam a desaparecer. Também os rins cediam e pediam descanso, aumentando as toxinas em circulação no sangue, fazendo com o que o cérebro retomasse as memórias ancestrais da minha espécie, a liberdade. 
Eu sei que estava tudo programado para quando chegasse essa altura eu pudesse partir. Assistia tristemente ao ar desolado da família, com lamentos, queixas, incompreensões, afagos, mimos e idas ao veterinário. Queria poupá-los a esse desgosto, mas não sabia como lhes dizer que tinha de partir. 
Os sinos apenas tocaram a rebate quando resolvi saltar da varanda abaixo. Eu queria partir e não calculei bem a distância até ao chão. Saltei dum primeiro andar. Embora não tivesse partido nenhum dos membros, sentia dores no corpo e o veterinário olhou para mim com consternação, mas não teve coragem de lhes dizer, que eu estava de partida.
Algo dentro de mim me levava a encontrar uma saída, onde pudesse passar para outro lado, ou como a Inês dizia, para outra dimensão. 
Procurava desesperadamente os buracos que encontrava, debaixo das cadeiras, no armário da fruta, entre o vasos do terraço, mas este desespero apenas terminou quando ele disse ao médico:
- O que podemos fazer ainda por ela?
- Muito pouco, ou nada!- disse o doutor.
- Não gostava de a ver a degradar-se desta forma, tanto mais que não tem recuperação. Podemos adormecê-la para sempre?
E foi assim, que ele me pegou ao colo, me afagou com ternura, pensando que se despedia de mim. 
Foram os momentos mais difíceis. Sentimos o meu corpo quente a esvair-se e o coração a parar. Para iniciar a minha viagem de regresso, esperei, esperei, mas no momento certo, saltei para dentro dele e deixei-me ficar a recuperar desta difícil, mas calculada mutação.
Vi-o chorar e despedir-se de mim e do doutor. Ouvi-o dizer, 
Não quero mais animais na minha vida.
Claro que não sorri. O tempo passado juntos, as várias peripécias da nossa vida em conjunto serão para sempre inesquecíveis e este momento era de transformação, não de separação. Ele pensava que era uma despedida definitiva, mas só mais tarde viria a descobrir o quanto se enganara.
Foi bastante depois de ele contar à esposa e à Cristina, o que sucedera e enquanto ele dormia, que recuperei o meu estado atual e descobri que a minha cara estava sobreposta na cara dele, de modo que pudéssemos ver e ouvir  as mesmas coisas e eu fosse os olhos dele e ele a minha visão e audição. Estava preocupada como iria reagir quando acordasse. Ele sentiu-me com estranheza e viu no nariz dele o meu focinho agudo e os olhos penetrantes a perscrutar o horizonte. Sorriu com surpresa e, como ele gostava de fazer, a explicar para si próprio o ser que ele era, disse para consigo,
É uma recusa em deixá-la partir?
Não, não era. Eu ainda precisava dele para completar a minha viagem e ele ainda precisava de mim para ter acesso a outro mundo que permanecia obscuro na sua mente, para descobrir o seu próprio percurso. Mas ele ainda não sabia isso e eu não sabia o caminho para essa viagem. Tínhamos muito para descobrir.


...








10 Fim

 

Os viajantes podem acabar, mas a viagem não

 
Os contornos da Mini no meu nariz eram cada vez menos percetíveis. A sua presença tinha-se diluído
 em todo o meu ser, de tal forma, que sem me aperceber, a unidade tinha-se restabelecido. As histórias
 das nossas viagens permaneciam na minha memória.
- Vou partir para sempre. Vou em busca do meu clã, da minha alcateia, algures num espaço branco e frio, onde o sol nunca se põe. Vou em busca do espaço, onde a luz, o calor e frio não façam diferença. Onde a paz e a tranquilidade sejam permanentes. Deixo-te aqui. Obrigado pela viagem. 
- Se tens de ir, vai. Eu fico bem. 
Ainda a vi aos saltos, a correr sobre a neve  no alto do monte. A ela juntaram-se mais dois cães muito parecidos no tamanho e cor do pelo. Ficaram os três a olhar para mim, durante um longo tempo. Por fim, ela voltou a cabeça para trás, os outros seguiram-na e foi a última vez que a vi. 
Há lágrimas que escorrem para dentro de nós com o calor do fogo. São rios de lava quente a fundir os sulcos por onde hão de passar estas e as outras que virão, regando a existência com flores e orvalho.
Voltei a casa. Pelo caminho pensei escrever esta história que terminará um dia. Por agora, vou descansar. Até breve!

 

Manuel Rodas


 

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Guilhermino



A aldeia e arredores dormem tranquilamente. 
Hão de acordar cedo. Mas, mais cedo que as aldeias, acordam os animais dos montes e os galos e só depois, o Guilhermino. 
Desde cedo os pais lhe notaram uma estranheza. Tinha dificuldade em sorrir e não dirigia o coração no olhar para os olhos da mãe e do pai, nem para ninguém.
Crescera a evitar o contacto com os outros e baixar a cabeça para o chão, quando alguém o chamava. E julgando desviar os olhos, julgava esconder-se do olhar dos outros, evitando que os outros o vissem. E de tanto porfiar, foi-se tornando invisível.
 Sempre escolheu estar só, com as suas pedras, os seus bugalhos, a descobrir os segredos que estes refletiam da sua alma, num percurso de silêncios e invisibilidade das emoções e dos sorrisos ausentes. 
Para Guilhermino tudo era difícil.
Apesar de todas as maleitas tinha-se feito um rapagão. O pior era quando os outros o chamavam para o trabalho, para as danças, para a conversa ou divertimento, isto é, para a vida em comum.
Guilhermino olhava-os aborrecido, reagia com manifesto desagrado e corria a meter-se no seu buraco. Um lugar escuro, sombrio e longínquo.
O moço é chocho! - diziam a rir, enquanto abanavam a cabeça a reconhecer a impossibilidade de o compreender.

Após a morte dos pais, vive sozinho num casinhoto encostado aos outros, mas só nas pedras da parede, porque a alma vagueia pelas sombras e inquietações de quem não pode estar com os outros.

É invisível quando amanha a horta, planta as couves e as nabiças, as cebolas e as alfaces, as batatas e os feijões. Pode ser invisível, mas a vida tem premências e exigências que é preciso satisfazer!
É invisível quando pastoreia as ovelhas, pelo Bucanal adiante até avistar a veiga da Várzea.
Regressa a casa, tarde, pelos caminhos que descobre solitários, às escondidas, como se a vida pudesse ser contornada nas suas esquinas, menos duras e inflexíveis que os vizinhos!
Não chega a sentir humilhação na sua condição de solitário, porque para isso é preciso estar dentro dum conjunto de referências e abraços da comunidade. Vive numa fronteira entre o possível e o desejável, onde a luz ofusca e a sombra engrandece, mas já dentro da sua humanidade.
Mesmo quando os rapazes mais audazes vão sorrateiramente empurrar o bolo da pedra, junto ao borralho, por uma fenda na parede, ele não lhes reconhece a existência e diz para si próprio, 
o raio do bolo tem sono.
 Não acredita noutra possibilidade para o bolo cair. Ele não tem vontade própria, porque cai? Guilhermino está fora, apesar de viver dentro. Vagueia pelos ares, observa a terra e o pó, mas não se lhes mistura.
Não sabe explicar como lhe aparecem batatas à porta, às vezes couves, ou um bocado de pão, embrulhado em folhas de couve. 
Para ele é um mistério. Há vontades que a vontade desconhece.
A aldeia divide-se entre a aceitação e a exclusão. Também eles preferem ficar cegos e não o ver, ou pelo menos só ocasionalmente. Cada um faz a sua vida, ajudam-se mutuamente, quando necessário, são solidários, mas aquele é diferente... e recusam-se a vê-lo, vivente subalterno, porque não o reconhecem como um igual. É diferente! Não é mensageiro do diabo, se deus o marcou, algum erro lhe topou, mas também não é a imagem e obra de Deus. 
Vagueia por ali, no espaço intermédio.
A consciência dessa diferença manifesta-se no agradecimento a Deus por não ter castigado nenhum dos seus filhos e por não existir ninguém na família com aquelas características, enfim, chocho!
Não se sabia porque Deus tinha castigado aqueles pais, que mal teriam feito, mas Quem tudo sabia e tudo podia, lá teria as suas razões.
Não havia conversa, não ouvia, nem era ouvido, não era reconhecido, nem visto, não existia na zona clara da consciência, apenas na penumbra esfumeada da memória.
Havia muita coisa que ninguém sabia explicar, e ainda menos ele próprio. Coisas da vida, da morte, do dia e da noite!
Também ele não sabe explicar porque vem de noite aquela criatura meter-se com ele na cama, afagar-lhe o corpo com as mãos até os membros endurecerem, possuí-lo e ir embora na calada da noite, sem um ai, ou um beijo.
Ele pensa que é um sonho, mesmo quando olha para a cama manchada, e a porta entreaberta, o cheiro acre-doce do sexo.
Na primeira noite, ainda estremunhado, sentira uma mão quente no meio das suas pernas nuas. E gostou. Pensou em gritar e fugir, mas aquele calor quente no meio do sonho, tanto podia ser realidade como invenção sua. Deixou-se ficar quieto a saborear a doce surpresa. Quando por fim descobriu que o seu corpo se desflorava em gritos e estertores e a carne humedecida esquentava, disse, obrigado.
Não sabe quem é, se nova ou velha, mulher ou bruxa. Nem sequer sabe se é homem ou mulher. Alguém que lhe entrava na cama e não na vida. Seria incapaz de o reconhecer de dia, mas já lhe conhecia o corpo e as mãos. E durante muito tempo deixou-se ficar preso naquelas mãos que o afagavam com ternura. E nos braços fortes que o apertavam.
Depois, à medida que o tempo ia passando, começou a fixar-se nas pernas longas e quentes que o abraçavam e tremiam, a fervilhar de gozo. Aquele corpo quente e suave que se lhe oferecia, em convulsões de prazer e gemidos de luxúria. 
A porta fica sempre na taramela. 
As noites vão correndo a intervalos de gozo e prazer.
Mas como não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe, as visitas começaram a ser espaçadas até que foram interrompidas, sem se saber porquê!
Essas noites tinham sido os momentos mais importantes da sua vida e inexplicavelmente deixaram de existir, foram riscadas, apagadas. Talvez nunca tenham existido, pensava Guilhermino. 
Há o prazer da carne, há o antes e o depois, que é nada. Talvez seja a minha cabeça doida - filosofava ele, abraçado na insónia.
Teve um pressentimento indizível, quando ouviu o sino a tocar a defuntos. Era uma compressão no peito até lhe chegar à garganta que não deixava passar, nem a sopa, nem o presigo.
Ele deixou-se ficar todo o dia com as ovelhas, longe da confusão e das pessoas. Nunca tanto olhara para o Castelo de Lindoso e a serra Amarela, bem lá mais longe do que a sua vista alcança.
Foram várias as noites em que ficou acordado. Ouvir os ruídos e silêncios da aldeia. Deitar, acordar, trabalhar e comer. Pessoas e animais, ventos e chuvas. E outras coisas invisíveis, que vagueavam pelos caminhos da noite, nas veredas do pensamento solitário, entravam pelas frinchas e se ululavam nas mantas da cama.
Nunca mais a taramela se mexeu durante a noite. Nunca mais.
Quando um rapaz deu a notícia no Eiró, 
o ti Guilhermino está a chorar, 
ninguém queria acreditar que ele tivesse retornado ao mundo conhecido das emoções e sentimentos. 
Quem? O Guilhermino?
Algumas mulheres curiosas que se alimentam das desgraças alheias vão a correr ver o sucedido. Sentado, em frente a sua porta, Guilhermino chora copiosamente, esconde a cara debaixo do braço e aponta para a taramela, silenciosa 
Entreolhadas, as mulheres olham-se entre o riso e a inquietação. 
Que quer ele? Porque chora e aponta para a porta?
Sem respostas e condoídas da tristeza alheia, uma a uma desandam dali, 
Coitado,
deixá-lo, ele é chocho!
Guilhermino só voltou a ser visível quando morreu. É muito melhor evitar diversos predadores imaginários do que ser comido por um real.
Partiu à descoberta de todos os invisíveis que vagueiam por este mundo e o outro. E por ação da morte, a parte tornou-se o todo, o escuro ficou claro, a inquietação tranquilidade e a tempestade dissolveu-se num bafo sem fim. Eterno.
É preciso fazer-lhe o funeral e apesar de se saber que nunca se tinha confessado, não se sabe se tinha sido batizado. Quem o vai vestir e aprontar? Quem fará a vigília noturna? Quem lhe vai abrir a cova? Quem o levará em ombros até à entrada no paraíso? Chamar o padre será o mais fácil!

2020
Manuel Rodas