sábado, 28 de maio de 2022

O livro

Desafiaram me a escrever sobre um livro de que tenha gostado muito. Escrevi este texto


 
O livro
 


Nunca soube porque ela me deixou o livro na mesinha de cabeceira, sem um recado, sem um adeus. Deixou-me, deitado na cama, foi-se embora e nunca mais voltou. Dela ficou apenas o livro, Não me mates porque não sou tua, de M.Wheels,Amazon.com,2000.
O livro ficou muito tempo arrumado na secretária, naquela prateleira dos livros a ler, mas que tardam em ser lidos.
Só anos mais tarde, quando soube do acidente de carro que a colocou numa cadeira de rodas me lembrei do livro...em cima da mesa de cabeceira. Fui à estante, sentei-me e nunca mais parei à procura do final, ou à procura do enigma que nós éramos.
A história podia resumir-se muito brevemente: numa cidade satélite duma grande capital europeia, vivia um casal, ele professor e ela médica. Faziam uma vida tranquila e reservada, sem muitos amigos, dedicados às suas exigentes profissões. Nos tempos livres faziam pequenas saídas e no verão visitavam outros países. 
Um dia acolheram, provisoriamente, uma colega de escola de Julian e rapidamente se percebeu que entre ela e Linda, se originou uma cumplicidade, que progressivamente se traduziu numa relação amorosa
A exigência profissional da vida na escola e algum arrefecimento da relação criaram uma névoa de distração a Julian, que quando se apercebeu do que se passava, mesmo à sua frente, já o incêndio transbordava o seu conteúdo num continente perdido.
Julian ainda tentou que com a saída da colega de sua casa, a relação pudesse voltar à tranquilidade anterior, mas o mal estava feito e os danos eram irreparáveis.
O autor alonga-se na descrição de diálogos surdos entre os dois, numa mistura de despeito e sombra, amor e luz, verdade e raiva, ou pela ordem inversa, despeito e amor, sombra e raiva, verdade e luz. 
Ao longo dos vários capítulos o leitor sente-se atraído pelo desenrolar dos acontecimentos, umas vezes deixa-nos soltos a divagar para, logo de seguida, nos agarrar pelo braço e levar-nos, à força, por novos caminhos e veredas insuspeitos.
 As descrições e analogias entre a sensualidade e os odores culinários são irresistíveis, a desenhar sorrisos cúmplices de água na boca e suores no corpo.
 
Quando acabei a sua leitura, revi toda a nossa relação e, finalmente, pude entender porque a amiga solteira de minha esposa nunca respondeu aos meus olhares e sorrisos, vendeu a casa por baixo preço e conduzia o automóvel no dia do trágico acidente em que morreu e condenou a uma cadeira de rodas aquela que durante tanto tempo foi minha companheira.
 
Manuel Rodas 
Oeiras, 26 maio 2022














  

  

2 comentários:

  1. Anónimo6/01/2022

    José Couto Nogueira, Manuel
    Formidável, o seu texto!
    É um conto trágico e divertido, uma combinação difícil de conseguir. E é mesmo um conto, com cabeça, tronco e membros.
    A curiosidade levou-me ao seu blogue, que confirmou o seu talento. Pode - e deve - começar já a escrever um livro de contos. O seu estilo dá mais para o conto, mas, se calhar e lhe apetecer, pode atirar-se a um romance.
    Prof José Couto Nogueira

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  2. Anónimo11/02/2022

    Muito obrigado, Professor!

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