segunda-feira, 23 de maio de 2022

a pera

 





Gosto de alguns objetos, pela sua funcionalidade, pela sua graça, por muitas razões, livros, computador,  impressora, máquina fotográfica, tesoura, alicate, faca, cana de pesca, lupa, sei lá... esquentador, máquina de café, telemóvel.... mas identificar-me com algum deles? Não. Algum deles pode devolver-me a imagem do que eu sou? Não! São estéticos, funcionais, utilizo-os, contam algumas histórias que vivenciei, mas pouco mais que isso.

Os objetos nunca fizeram parte da minha personalidade, nunca foram um objetivo ou um fim. 

Os objetos e o dinheiro foram sempre um meio...para fazer ou obter outras coisas, mais importantes e significativas.

Como sou de origem camponesa os objetos ou eram feitos por nós, ou comprados, mas todos tinham alguma utilidade, ou funcionalidade. 

Lembro-me dum relógio de sala dos meus pais, dum aparador na sala, um fogão de ferro na cozinha, um rádio, o telefone, que satisfaziam necessidades e eram significantes de progresso na vida, conforto e bem estar. 

Lembro-me também das toalhas de minha mãe, dos anéis e gargantilhas, travessões e brincos em ouro. Dos pratos, travessas e talheres que só eram usados em dia de festa! ( e como eram poucos os dias de festa!) Não eram a primeira prioridade, mas sugeriam um progresso na luta pela sobrevivência.

Algumas pessoas fazem coleção de canetas, isqueiros, pentes, canecas, relógios, etc... Eu nunca quis colecionar objetos; aliás, nunca quis colecionar nada!

Mas como tinha esta necessidade imediata de descrever um objeto significativo e com memória, fui procurar qual o objeto mais antigo que teimava em guardar e resistia a todos os embarques, mudanças e outras tragédias.

Em princípio, o tempo seria uma medida de importância... (pelo menos para quem mudou tantas vezes de casa). Qual seria? Procurei, (onde primeiro procurar, senão na memória?) procurei e ... voilá, encontrei uma “coisa” pequena, a caber na palma da mão, em tamanho e forma de pera, de madeira trabalhada, com um botão de marfim.

Onde me leva esta “pera”?

 

Tinha 14, 15 anos e corriam os últimos anos de 60. 

O colégio, em Ponte de Lima, estava instalado no palacete Villa Moraes, mandado construir no princípio do séc. XX por João Francisco Rodrigues de Morais (1851-1936) e constituía uma réplica do palácio do irmão Miguel Rodrigues de Morais, em Salvador da Baía.  Foi comprada pelo Cónego Manuel José Barbosa Correia, à filha e aos netos do fundador do Palacete (Noémia, e seus filhos Teresa Maria, Rosa Maria e Duarte Belfort Cerqueira Rodrigues de Morais, residentes em Lisboa, em 1960, por cerca de 1500 contos.  Foi integrado, mais tarde, na Misericórdia, em 1978 ( Limiana, Ano VI, nº 28, Junho 2012).

O exterior era composto por um grande jardim e uma quinta - à qual os alunos não tinham acesso. No jardim, existia, ainda, uma gruta artificial, com um lago também artificial. Havia mais dois lagos espalhados pelo jardim, resguardado da rua por grades de ferro e dois mirantes em cada esquina, com escadas e janelas em ferro forjado. As grades resguardavam o jardim do exteriro e impediam os alunos de fugirem.

O palacete tinha uma porta principal imponente e logo à esquerda um salão, ricamente decorado e com um piano, que ninguém tocava, o que acentuava a tristeza da sala e dos dias. À direita, era a secretaria e, em frente, um grande corredor. Do lado direito, a capela, e à esquerda, a sala de refeições. No interior havia mais salas e a cozinha, onde nunca fui. O corredor terminava numa porta, que dava acesso ao jardim, através dumas escadas. À direita, havia mais duas salas.

Para os andares superiores, uma longa escadaria com corrimão de madeira. No andar de cima eram as salas de aula e no último andar, as camaratas e os quartos de dormir.

As paredes e tetos das salas de aula e do refeitório eram ornamentadas com desenhos e pinturas (arte nova?), mas as carteiras e armários e a violência do diretor, Padre Lopes ( com o seu chicote de fios elétricos entrelaçados) contrastavam, impunemente, no meu dia a dia de adolescente.

A capela e a sala da música eram as salas de maior luxo e fausto, pois além das paredes ornamentadas possuíam ainda mobiliário condicente com a antiga função de palacete!

Algures no sótão, para onde gostava de ir (ocasionalmente), ainda se encontravam restos dessa antiga vida, de sabor a sertão brasileiro.  Foi aí que encontrei a minha “pera” e ... fiquei com ela até hoje!

Porquê?- interrogo-me agora ( e não sei a resposta).

Provavelmente pela beleza da peça, em madeira trabalhada, pela elegância das formas, pela evocação dum tempo em que os senhores chamavam os criados. Era um interruptor de madeira, eletrificado, com botão em marfim.

Aquela “pera” sugeria-me o tempo dos nobres e reis, e ... dos criados. Esse mundo que só conhecia dalgumas leituras e filmes. Ainda hoje gosto de filmes de cavaleiros  e espadachins!

A peça era um interruptor para chamar alguém (eu sabia que nunca me viriam salvar...) Eu queria chamar, pedir socorro, fugir dali, a minha grande experiência de tortura, horror e medo! 

 

O tempo passou, lá resisti - o melhor que pude e sabia - saí do colégio com 16 anos, com ideias erradas da amizade, do poder, submissão e violência, da educação, enfim, da vida! Em contrapartida, sabia a história dos romanos, dos gregos, do renascimento, das descobertas, das guerras mundiais, das superpotências, inglês e francês... e, sem saber que gostava de ler e escrever! Sabia ser esquivo, atento às mínimas alterações do clima social, aparentemente indolente, sem curiosidade, sem crença, nem fé! Mais tarde, graças aos camaradas da minha aldeia, recuperei a esperança num mundo melhor, na liberdade, verdade, justiça e solidariedade... Comecei a descobrir o mundo já tarde (o mundo também me tinha ignorado)!

Acabados os estudos básicos, fui para o Liceu de Braga e levei o interruptor comigo. Acompanhou-me este tempo todo... até hoje, tantos anos depois! 

A pera resistiu à implantação da república, ao fascismo, ao padre Lopes, à guerra colonial, ao 25 de abril, à UE, à NATO e vai resistir à guerra da Ucrânia. 

Como lâmpada de Ladino, eu sopro, esfrego, carrego no botão, mas ninguém responde, ninguém me vem dizer que a guerra acabou e a paz está iminente. Bem olho, rodo e rodopio, manuseio e sinto, mas...nada!

No verão passado, num almoço com antigos colegas, alguém informou que havia um projeto dum museu na Villa Moraes, em Ponte de Lima.

 

Pronto, pensei comigo, vai ser agora que vou restituir a minha “pera”! Talvez instalada no velho palacete, possa, finalmente reconstituída a unidade ancestral, desvendar o génio que transporta em si. E fico a imaginar a srª D. Noémia Morais, de vestido rendado até aos pés, de leque na mão esquerda, enquanto na direita, a “pera” reluz na incomodidade subserviente da criada, no seu quarto, onde estava já prestes a descansar!

 



Manuel Rodas

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