quarta-feira, 26 de maio de 2021

A última viagem

 Depois que a Mini  morreu fui invadido por uma vontade enorme de a não deixar morrer. 
Sentei-me à secretária e durante longos dias escrevi 10 capítulos e 40 páginas. Depois escolhi as fotografias, imprimir-as e com lápis de pastel de óleo retoquei, acrescentei e inventei. Deste modo, nasceu o livro A ULTIMA VIAGEM que, depois do seu estágio em processo de fermentação, sofrerá uma revisão final e será publicado na Amazon. 
Eis algumas ilustrações e o primeiro e último capítulo.

1 Últimos dias
 
É na viagem que te encontras
 
Já há algum tempo que não me sentia bem. A visão ia faltando e as sombras habitavam os meus olhos, tendo dificuldade em perceber os contornos dos objetos e das pessoas. As imagens não apareciam definidas e até a luz do sol me deixava cega. 
O mesmo se passava com a audição. Sentia que perdia a intensidade e a orientação. 
Dele, apenas a voz e a silhueta permaneciam definidas e claras. Desde sempre que estavam gravadas em mim e as distinguiria em qualquer lugar. Era grande e tinha uma voz sibilante, às vezes cortante e outras uma ternura desconcertante.
Foi com ele que aprendi a encontrar um espaço para mim, na família e em casa. Um lugar no coração desses desconhecidos que, sem eu saber porquê, me adotaram. Vim a saber mais tarde que era um presente para a filha, a Inês, com 7 anos de idade.
Eu tinha nascido em Soajo, filha duma cadela preta, Chihuahua, e dum cão rafeiro que por ela se apaixonou.
Fui adotada aos 3 meses e bem me custou separar-me da minha mãe e da minha irmã. Depois de entregue à Patrícia, que me escolheu, por lhe parecer que melhor me adaptaria a um apartamento que o meu irmão, e ao fim de  4 h de viagem, cheguei finalmente a casa deles mas, como tinham uma viagem planeada, deixaram-me com a Maria Teresa, que passou o fim de semana todo a retirar-me as pulgas. Fiquei-lhe grata para toda a vida, embora viesse a saber que entre os cães e lobos as pulgas constituem uma defesa contra os predadores.
Não era apenas a visão e audição que, para os animais como eu, são órgãos determinantes para assegurar a sobrevivência. Não, não eram apenas esses sentidos que aos poucos estavam a desaparecer. Também os rins cediam e pediam descanso, aumentando as toxinas em circulação no sangue, fazendo com o que o cérebro retomasse as memórias ancestrais da minha espécie, a liberdade. 
Eu sei que estava tudo programado para quando chegasse essa altura eu pudesse partir. Assistia tristemente ao ar desolado da família, com lamentos, queixas, incompreensões, afagos, mimos e idas ao veterinário. Queria poupá-los a esse desgosto, mas não sabia como lhes dizer que tinha de partir. 
Os sinos apenas tocaram a rebate quando resolvi saltar da varanda abaixo. Eu queria partir e não calculei bem a distância até ao chão. Saltei dum primeiro andar. Embora não tivesse partido nenhum dos membros, sentia dores no corpo e o veterinário olhou para mim com consternação, mas não teve coragem de lhes dizer, que eu estava de partida.
Algo dentro de mim me levava a encontrar uma saída, onde pudesse passar para outro lado, ou como a Inês dizia, para outra dimensão. 
Procurava desesperadamente os buracos que encontrava, debaixo das cadeiras, no armário da fruta, entre o vasos do terraço, mas este desespero apenas terminou quando ele disse ao médico:
- O que podemos fazer ainda por ela?
- Muito pouco, ou nada!- disse o doutor.
- Não gostava de a ver a degradar-se desta forma, tanto mais que não tem recuperação. Podemos adormecê-la para sempre?
E foi assim, que ele me pegou ao colo, me afagou com ternura, pensando que se despedia de mim. 
Foram os momentos mais difíceis. Sentimos o meu corpo quente a esvair-se e o coração a parar. Para iniciar a minha viagem de regresso, esperei, esperei, mas no momento certo, saltei para dentro dele e deixei-me ficar a recuperar desta difícil, mas calculada mutação.
Vi-o chorar e despedir-se de mim e do doutor. Ouvi-o dizer, 
Não quero mais animais na minha vida.
Claro que não sorri. O tempo passado juntos, as várias peripécias da nossa vida em conjunto serão para sempre inesquecíveis e este momento era de transformação, não de separação. Ele pensava que era uma despedida definitiva, mas só mais tarde viria a descobrir o quanto se enganara.
Foi bastante depois de ele contar à esposa e à Cristina, o que sucedera e enquanto ele dormia, que recuperei o meu estado atual e descobri que a minha cara estava sobreposta na cara dele, de modo que pudéssemos ver e ouvir  as mesmas coisas e eu fosse os olhos dele e ele a minha visão e audição. Estava preocupada como iria reagir quando acordasse. Ele sentiu-me com estranheza e viu no nariz dele o meu focinho agudo e os olhos penetrantes a perscrutar o horizonte. Sorriu com surpresa e, como ele gostava de fazer, a explicar para si próprio o ser que ele era, disse para consigo,
É uma recusa em deixá-la partir?
Não, não era. Eu ainda precisava dele para completar a minha viagem e ele ainda precisava de mim para ter acesso a outro mundo que permanecia obscuro na sua mente, para descobrir o seu próprio percurso. Mas ele ainda não sabia isso e eu não sabia o caminho para essa viagem. Tínhamos muito para descobrir.


...








10 Fim

 

Os viajantes podem acabar, mas a viagem não

 
Os contornos da Mini no meu nariz eram cada vez menos percetíveis. A sua presença tinha-se diluído
 em todo o meu ser, de tal forma, que sem me aperceber, a unidade tinha-se restabelecido. As histórias
 das nossas viagens permaneciam na minha memória.
- Vou partir para sempre. Vou em busca do meu clã, da minha alcateia, algures num espaço branco e frio, onde o sol nunca se põe. Vou em busca do espaço, onde a luz, o calor e frio não façam diferença. Onde a paz e a tranquilidade sejam permanentes. Deixo-te aqui. Obrigado pela viagem. 
- Se tens de ir, vai. Eu fico bem. 
Ainda a vi aos saltos, a correr sobre a neve  no alto do monte. A ela juntaram-se mais dois cães muito parecidos no tamanho e cor do pelo. Ficaram os três a olhar para mim, durante um longo tempo. Por fim, ela voltou a cabeça para trás, os outros seguiram-na e foi a última vez que a vi. 
Há lágrimas que escorrem para dentro de nós com o calor do fogo. São rios de lava quente a fundir os sulcos por onde hão de passar estas e as outras que virão, regando a existência com flores e orvalho.
Voltei a casa. Pelo caminho pensei escrever esta história que terminará um dia. Por agora, vou descansar. Até breve!

 

Manuel Rodas


 

1 comentário:

  1. Cada dia que passa a viagem torna-se mais longa,a saudade aumenta,as pequenas coisas ganham naior dimensão mmas tu continuas junto ao nosso coração.
    PARABÉNS a ti Manuel Rodas por teres um coração tão grande .

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