terça-feira, 23 de junho de 2020

Diretor executivo



Farol da Guia, Macau


O diretor executivo


Teresa TsingTao de braço esticado, desviou o olhar do Farol da Guia, puxou para si um apontamento da última reunião do Conselho Administrativo e leu:
- a entrada em funcionamento das duas delegações; 
- o financiamento a 10 anos, para regularizar o crédito anteriormente concedido;
- a reorganização dos serviços da empresa com a criação da direção comercial e loja online;
- a apresentação, pela primeira vez, de saldo positivo. 
Recordou o que o diretor executivo dissera na reunião: a empresa tinha de se libertar do ambiente demasiado influenciado pelo passado. A empresa, se queria ter uma dimensão global, teria de pensar globalmente. Tinha de introduzir os mais modernos métodos de gestão e planeamento estratégico. Não podíamos ir para o mundo global, com um caderno de apontamentos e um gravador na mão. A empresa não poderia estar condicionada por imprevistos. Todos eram responsáveis pelo sucesso e êxito e, portanto, todos tinham de “vestir a camisola” da empresa, tinham de ser uma equipa e cada um orgulhar-se dos sucessos de todos. O destino não podia ser uma fatalidade, mas sim uma possibilidade, contrariada ou confirmada pelas nossa vontade e consciência de existir. Estes eram os novos desafios num mundo global, altamente competitivo.
Apesar de ela não concordar totalmente, pois desconfiava dos resultados e pressupostos do novo liberalismo, bem conhecia o que significavam os “colaboradores”, não se via a comer hamburgers, ou beber cerveja todos os dias, mas apesar disso, sorriu a imaginar-se a passear em Nova Iorque ou em Londres.
Sem se ter apercebido, a mão esquerda descaiu ligeiramente e pousou no colo. Só depois de ter mentalmente recordado a reunião, tomou consciência que a mão se fixava no ventre e teimava em não sair de lá. Foi nessa altura que teve um pressentimento. Seria possível? Não podia ser...
Apenas horas mais tarde, já deitada na sua cama, quando fechou os olhos, pode retomar as preocupações que tivera no escritório. Estaria grávida? Fez e refez cálculos, mas não chegou a nenhuma conclusão. 
Se estivesse, como lidar com a situação? Iria fazer o teste de gravidez e logo se veria. Nunca tivera a oportunidade de pensar ou desejar ser mãe. O estilo de vida, as exigências do trabalho e a história pessoal nunca lhe deixaram nem tempo, nem vontade de pensar nisso.
Nos dias posteriores o volume de trabalho aumentara na empresa e só na semana seguinte soubera o resultado, grávida de dois meses. 
Todos os dias revia as suas decisões. Seria rapaz ou menina? Iria informar o pai da criança? Poderia contar com o seu apoio? Como reagiria ele? 
Ela bem sabia que ele não poderia fazer grande coisa, a não ser, dar-lhe uma pequena parte da sua vida, alimentar-lhe alguns sonhos, algumas prendas e quem sabe, talvez um pouco de amor. Era, provisoriamente, diretor da empresa, casado, pai de um rapaz, uma família estável e socialmente valorizada na comunidade. O que acontecera durava já há dois anos. Ela nunca pedira nada e ele nada prometera. Aquela relação preenchia o vazio que sentia desde que os pais tinham falecido, prematuramente. Ficara só, mas a força de vontade de prosseguir a vida, o trabalho e um pequeno grupo de amigos era tudo que lhe restava. 
Nem se lembrava muito bem como acontecera. Ela demorava-se no trabalho, tentando responder às exigências do diretor, com docilidade, sempre disponível para a empresa, a salvaguarda do seu posto de trabalho, as reuniões até tarde, as deslocações no território, mas o que precipitou tudo foi aquela viagem, dois anos antes, a Cantão.
Foi um olhar de fim de tarde, um sorriso convidativo, uma mão que descaiu no intervalo dum chá, muita solidão e o desejo de serem amados e... pronto. Que mais é preciso para o amor acontecer?
Os encontros foram fluindo, quer no escritório, quer em casa dela. 
Ele entrava, olhava-a a sorrir, afagava os cabelos, puxava-a para si, os corpos quentes e húmidos gritavam a comemoração do amor desde o princípio da humanidade, desprendiam-se, voltava a olhá-la a sorrir, afagava-lhe os cabelos, afastava-a de si, levantava-se, vestia-se, despedia-se com um beijo nos lábios ainda húmidos e quentes e ... saía. Raramente havia confidências sobre a sua vida particular e muito menos sobre o trabalho. Também não era preciso, pois ela sabia tudo, ou quase tudo, sobre a empresa.
Sempre lhe dera prendas, mas ultimamente, ele trazia-lhe prendas caras, adornos, colares, anéis, medalhões, alfinetes, brincos, onde predominavam as joias, o ouro e, raramente, a prata. Ela podia ver nos embrulhos a origem da aquisição da maior parte das prendas, Hotel Lisboa. Seria ele jogador? Teria sorte no jogo e azar no amor? Ou o contrário? 
Ela sorria, beijava-o agradecida, mais pela atenção e o amor que lhe dedicava, do que pelas joias, exceto aquele anel com o nome dela gravado, Teresa, o qual usava frequentemente.
Sorria a imaginá-lo a entrar na ourivesaria, a escolher as peças, a pensar nela, pagar e sair, comprometido com a prova da sua traição. Sorriam ambos, quando ela punha ao pescoço os colares, ou nos dedos os anéis. 
Ele tinha um jeito especial para a convencer que eram prendas, provas de amor e não recompensas, aliás, ele tinha um jeito especial para atingir o que pretendia. Não lhe dizia que a amava, mas fazia-lho sentir. Ela retribuía com um sorriso de fino recorte, sugestivo, agradecida, mas não convencida. Havia algo dentro dela que não se desprendia e não a deixava ir a correr, de braços abertos, para ele. Não poder imaginar uma família com ele e ser alternativa à esposa não a deixava confortável. Ela receava que um dia, ele a abandonaria, mas não sabia que era precisamente isso que o desafiava, redobrando de cuidados e presentes, numa afirmação do desejo de permanecer. As hesitações e dúvidas dela mais reforçavam o desejo de conquista, de posse e permanência. Ao contrário da esposa, sentia que não era um território definitivamente conquistado. Era necessário revalidar esse compromisso e esse desejo frequentemente. E ela permitia-lhe essa excitante cumplicidade perversa duma relação extraconjugal.
E quanto mais a tinha, mais ele sentia que não a podia ter. Ou porque ela lhe fugia, escorregadia e esquiva, ou porque a sua situação familiar e profissional não lho permitiam.
No escritório, a relação entre ambos era a que vai do presidente executivo, embora provisório, para a secretária, diálogos restritos, orientações precisas e nada de galanteios ou exageros que os pudessem denunciar.
Quando o queria abraçar, ela dizia, amanhã vou ficar em casa. 
Ele sorria. 
Quando ele a queria beijar, dizia, amanhã vou ao jardim, Teresa! 
Ela sorria sempre!
Assim se passaram dois anos. Mas agora estava grávida. 
Ainda por cima ele iria mudar a residência para San Wui, uma pequena cidade entre Macau e Cantão, para a inauguração duma sucursal da empresa. Ela estranhou não ser convidada para o acompanhar nas novas funções. Também não sabia muito bem se queria ir e por isso, não lhe disse nada. Ficaria na empresa e guardaria o segredo para si. O que sempre imaginara, veio a confirmar-se.
Teresa TsingTao tinha anos e anos de prática de decisões difíceis. Foi no regresso duma viagem a Hong Kong e na solidão de sua casa, que tomou a mais difícil decisão da sua vida, seria mãe solteira! Sim, se não o podia ter a ele, havia de ser mãe dum filho dele, que lhe lembrasse todos os dias quão intenso e efémero tinha sido aquele encontro entre duas pessoas que tudo faziam para esconder o seu amor.
Assim que ele souber, não vai querer assumir a sua responsabilidade, vai afastar-se, ou afastar-me a mim, que dá na mesma coisa - assim pensava ela na solidão acompanhada agora pelo fruto da sua aventura.
......
Não eram muito conhecidos os motivos por que Susana Pardal entregou o ofício de despedimento do Jardim de Infância onde trabalhava, em Portugal. As colegas especulavam, as funcionárias olhavam de lado, tentando compreender a razão desta decisão. A direção da Santa Casa da Misericórdia ainda fez algumas perguntas, tentando apurar se havia algum mal-entendido que pudesse ser remediado, ofereceu-lhe a deslocação para outro Jardim de Infância, mas nada a fazia demover. Iria trabalhar num jardim de Infância, em Macau e era para lá que queria ir. O pai tinha falecido no ano anterior e a mãe aceitava as decisões da filha, tentando compreender, mas sem a questionar demasiado, evitando-lhe o embaraço de respostas difíceis ou impossíveis. 
A sua integração em Macau não foi difícil, embora ela considerasse que era um processo na sua vida e como tal...evolutivo.
O Jardim de Infância distribuía a sua intervenção entre os cuidados e assistência e a ação pedagógica e nesse aspeto Susana Pardal sentia-se à vontade. O trabalho com os pais era uma das prioridades na Escola e desde cedo começou a reparar no ar dum pai que, apesar de ausente, transmitia força e energia e que, regularmente, ia entregar o filho na escola. Tinha um olhar que convidava a entrar ...
Mas Susana Pardal não estava tranquila nessa matéria. Não era para isso que tinha ido para Macau. Queria iniciar uma nova etapa na sua vida, viajar e conhecer outras terras distantes exóticas e sedutoras. Macau era um bom lugar, como ponto de partida para novas viagens! Essa convicção era ainda mais reforçada cada vez que vinha a Portugal, de férias.
O tempo foi passando e já no seu 3º ano foi com surpresa que um dia disse a si própria, e se eu adotasse uma criança, aqui nesta terra de que tanto gosto?
Balanceou os prós e os contras, viu os inconvenientes e as vantagens e não chegou a conclusão nenhuma racional. Independentemente doutras razões, sentia um apelo para se dedicar a uma criança e cada dia mais a emoção dessa decisão aumentava na sua alma. Ser mãe! Ser educadora e ser mãe! Porque não? Tinha tanto para dar e ajudar a felicidade dum filho.
Depois dum ano de espera, foi com enorme surpresa que recebeu um telefonema, com carácter de urgência do Serviço Social. No dia seguinte, teria de tomar uma decisão rápida. Não dormiu nessa noite. Foi passar em revista o quarto do bebé!
Ainda bem que já tinha adquirido o essencial para os cuidados prioritários. A roupinha interior e as fraldas, as meias e os casaquinhos, a banheira, as toalhas, a cama e o colchão, as cortinas azuis e o quarto pintado de branco por onde andavam à solta as estrelas e borboletas, em raios de luar, no rio das Pérolas.
- É uma menina. Tem 8 meses. Está um pouco tensa, mas com massagens diárias, muito amor e cuidados vai recuperar bem. - dizia a assistente do infantário.
Depois das assinaturas, de responsabilidades várias que complementavam outras formalidades anteriores e após visitas demoradas ao infantário, recebeu Susana Pardal a bebé em seu corpo e em seus braços. Estremeceu por dentro na convicção reforçada que iria ser uma boa mãe, prometendo-lhe mentalmente que tudo faria para isso. A bebé era uma promessa de vida a palpitar dentro dum carmesim transparente...
No dia seguinte, novo telefonema e um pedido de desculpas, pois tinha havido um engano, bem, não era bem um engano, era mais uma omissão. Se poderia passar pelo Serviço Social no dia seguinte. Estremecera, receosa, Susana Pardal. Não lhe podiam retirar a bebé! Isso nunca!
Afinal o engano tinha a ver com uma herança que faltava referir e tomar as devidas providências. A bebé Lúcia herdara também um cofre com alguns bens pertencentes a sua mãe. A advogada do Serviço Social abriu-o na sua frente, onde, além de duas cartas, havia uma escritura dum prédio alugado, cujo rendimento revertia para uma conta bancária, em nome de Lúcia. Havia, ainda, um camafeu de jade com adornos, colares, anéis, brincos, de várias cores e materiais, onde predominava o ouro e raramente a prata. Era a herança que a mãe tinha deixado à sua filha, antes de morrer, mas a lei exigia que apenas poderia tomar posse, quando atingisse a maioridade, aos dezoito anos. O Serviço Social facultou-lhe as fotografias do conteúdo do cofre, para o mostrar à sua herdeira, quando a mãe adotiva achasse conveniente. 
Surpreendera-se Susana Pardal. Não era pelo ouro que iria amar mais a sua filha, mas se a sua bebé tinha já à nascença um pecúlio considerável, tanto melhor para ela. O que importava é que era linda, como não tinha imaginado antes. Linda! 
Tão pequenina e já com tantas surpresas, pensava para si! Como seria no futuro?
.....

O tempo passa depressa e mais depressa quando se chega a certa altura da vida, onde paramos para pensar o que fazer com o que nos resta. Foi nessa circunstância que o diretor executivo tomou consciência que era preciso continuar a vida, antes que fosse demasiado tarde. Retomar o fluxo das águas do rio, na sua caminhada eterna para a foz. E nesse percurso, quantas margens ainda havia para beijar, campos para alagar e vida para alimentar!
O diretor executivo tinha deixado a mulher e o filho em San Wui, a separação era de comum acordo e efetiva.  Decidira regressar a Macau, ocupando as antigas funções de diretor executivo. A empresa renovava-se todos os dias e todos os dias enfrentava novos desafios e para isso exigia um pulso determinado e uma visão alargada da situação.
Num dia de maior solidão, guiado por mão invisível, a recordar o que tinha sido a sua vida familiar, deu consigo a ver os pais saírem, com os filhos pela mão, no Jardim de Infância, onde tantas vezes tinha ido levar o filho. E lá estava Susana Pardal sorridente, como sempre, a despedir-se das crianças com um abracinho, cabelo atado atrás e bata cor de mar. Foi uma viagem a bordar a memória, do passado até agora, recordar daqueles anos todos e os seus olhos, cor de mar, a florescer no horizonte. 
 O tempo, esse vento criado pelo movimento da vida, empurra-nos para a frente. Não nos deixa adormecer e se por acaso paramos, é apenas para ganhar balanço para prosseguir com mais determinação. Há tarefas a realizar e ele lá está a lembrar-nos constantemente, sem cheiro, nem ruído, como as flores morrem e voltam a nascer no ano seguinte. 
O diretor executivo adorava brincar com a Lúcia. Esta retribuía-lhe atenções que, não fora Susana Pardal educadora, seriam interpretadas por ela, como uma ligeira ponta de ciúme. 
Foram partilhando o tempo, as confidências, o espaço, os passeios de fim de semana. 
Naquele outubro ele não se esqueceu dos bolos lunares para as duas. 
Um dia, Susana pardal disse:
- Porque não ficas comigo?
- Era o que eu te ia perguntar, porque não fico contigo?
Sorriram e num abraço prometeram ser água do rio, chuva e mar, gotas de orvalho nas pétalas do desejo, semente e fruto dum amor prometido e tanto tempo adiado. E Lúcia WengXi sorria ao vê-los assim abraçados:
- Mamã! Papá!
- Adoro esta menina. És um tesouro, Lucieee! - dizia o diretor executivo, abraçando a criança, com uma ternura nunca antes vista.
- É linda, não é? Um amor da sua mamã! Queres ver as fotos dela? Ah! E as fotos do seu tesouro?
Foi com ar progressivamente pálido que o diretor executivo segurou o álbum nas suas mãos e fixou o olhar numa foto, onde um anel revelava a inscrição, Teresa. 
Volveu o olhar para Lúcia e retornou para as fotos.
- E os pais? Sabe-se quem foram? – perguntou ele, tentando controlar-se o mais possível.
- O pai é desconhecido e a mãe faleceu dias depois de a entregar para adoção - disse Susana Pardal, enquanto, desviava o olhar sorridente para Lúcia, e pegando-a ao colo, a estreitava nos braços e a beijava com frenesim maternal, às cinco da tarde, num domingo qualquer de maio, com vista para o farol da Guia, em Macau!

( o leitor, se bem o entender, encontrará o final que mais lhe convier, a si, e ao superior interesse da história, porque os altos interesses da criança deverão estar salvaguardados pelos pais!)

2019, Manuel Rodas

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Calamity Jane

22-6-20


Hoje vi a Calamity Jane
estava sentada no mesmo bar que eu
os mesmos cabelos louros, os mesmos olhos fulminantes
o mesmo sorriso condescendente
mas mais desgastada e curva
sob o peso dos holofotes e das palmas. 

Lembro me bem quando corria o palco dum lado ao outro de chicote na mão a proclamar-se contra o oportunismo e a injustiça.
As botas brilhavam da lama e o ar rendia-se aos gritos de Basta!

Saudades Calamity Jane
estamos velhos e gastos das palmas e agruras do palco do mundo
mas
brilhas em meu coração como a flor de nenúfar entre as águas paradas de melgas e sapos! 

Grita Calamity Jane
grita por todos a quem roubaram o ar e apenas lhes restam as sombras
Grita por todos que ousaram gritar
Grita pelos naufragos do silêncio
caídos de borco nas vielas do fado
Grita Calamity Jane grita
grita sempre.


MRodas

sábado, 13 de junho de 2020

Pintar


Pintura, 2020,  Inês Rodas



Enquanto a minha filha fazia os seus trabalhos de pintura, sentei-me a seu lado e tentei acelerar a conversa. Peguei num papel e num pincel e fomos conversando. O que posso pintar eu, que nunca pintei nada?
- Ouve a música! -diz ela a meu lado.
Sorri, para mim próprio. Quantas vezes não disse isso aos meus pequenos alunos com medo das tintas  e do pincel.
- O que te diz a música?
- O que eu quiser ouvir, ou melhor, o que eu quiser pintar!
Silêncio. O que quero pintar? Ouço a música. Pink Floyd!
Enquanto a inspiração não vinha, comecei por uma clave de sol. Ela olhou de soslaio e sorriu. Percebi a sua condescendência. A parte óbvia da música, a sua representação gráfica da pauta, o símbolo anterior à música que ouvia.
Com pastel imaginei que a clave Sol emitia música e esta se refletia em ondas coloridas na minha mente, que as devolvia em círculos e reflexos coloridos, de volta, formando uma imagem do movimento que experimentava.
A música vinha de longe, sei lá, do final da minha adolescência, e apresentava-se agora, nas mãos da minha filha.
- As cores mais escuras primeiro - conduzia ela a preocupação comigo e com a minha obra.
Quando pensei terminada a tarefa, senti que algo despertava em mim, precisava acrescentar algo, fora daquelas tintas e cores.
- Sinto que preciso acrescentar algo....
- O quê?
-Não sei....
Fui buscar o ferro de engomar e com um papel grosso, torturei as cores no fogo.
-És mesmo experimentalista!
Sorri.
E lembrei-me do amigo João Claro, quando, nos anos 90, me dizia, tens mesmo jeito para a investigação!
Quando consciencializei esta minha “originalidade” descobri também o valor do Se! Quer dizer, eu sempre soube o valor do “Se. Não sabia é que o Se valia tanto!
A primeira e última vez que recorri ao Se foi para fazer a pergunta mais eloquente da minha vida, E SE O MUNDO FOSSE DIFERENTE, PARA MELHOR?
A essa pergunta inicial que resume todas as outras, sucederam-se milhares de perguntas, como é natural em qualquer pessoa.

Achei que o trabalho estava terminado, mas não a minha vontade de encontrar um mundo diferente.
Peguei noutra folha e tentei descobrir formas transitórias, entre este mundo e o outro, o diferente e desejável.
Entretanto, a Inês, enquanto pintava com cores arroxeadas o seu quadro/instrumento musical, introduzia a temática para subverter o mundo: os males do mundo seriam, o excessivo consumo de bens e carne, o machismo, o sexismo, a ostentação do dinheiro e do poder, a insensibilidade e falta de políticas para minorar o sofrimento dos marginalizados. Para alterar a situação era necessário uma consciencialização geral, traduzida numa ação prática e concertada com as diferentes nações e povos, assegurando o direito à diferença, o respeito pela natureza, pelos animais, acesso às artes e à cultura. Era todo um programa de ação política, que eu não me importaria de assinar por baixo.
Voltei a minha página ao contrário e os elementos ganhavam novas significações. Se um mictório  (Duchamp) (1) pode ser uma obra de arte, também o meu quadro poderiam ser duas obras, uma a direito e outra ao contrário. Sorri, a pensar que Se o pintasse nas costas, passariam a ser 3?
Se ela me tivesse ouvido, diria de seguida, excesso de zelo, ou preocupações de produção para alimentar o sistema? Felizmente não ouviu e a coisa ficou só para mim.
Fiz um intervalo, levantei- me e vim olhar a rua. Deserta!
Voltei a sentar- me, peguei em nova folha, mas desta vez, recusaria as tintas e os pincéis. Experimentaria outros materiais. Um mundo novo precisa de novas ideias,  novos materiais mais consentâneos com o equilíbrio natural.

Com os condimentos da culinária salpiquei a folha de odores frescos e longínquos. Se era preciso mobilizar os povos, a pimenta, o colorau e o caril seriam bons representantes dessas paragens. Com cola de madeira diluída em água, com os dedos fui espalhando sobre as cores e recriando novos reflexos dum tempo que se anuncia, mas ainda não chegou, vai chegando!
Ela, enquanto dava vida ao seu quadro, continuava na sua argumentação, criando um modelo de sociedade utópica, que no dizer de Agostinho da Silva (2), não quer dizer impossível, mas sim, que ainda não foi possível!
- Esse cheira bem! O que levou?
- Levou séculos até chegar a Portugal. Quantos homens morreram e quantas mulheres ficaram por casar, para que a pimenta e o caril pudessem entrar no nosso imaginário, na fruição e agora estar aqui nesta obra.
- Pessoa e Floyd?
- Quantos ainda precisarão de morrer para que o mundo mude.
- E Se ninguém morresse?
- e Se todos, em todo o mundo votassem em branco?
- Saramago?

Rimo-nos os três, porque a mãe, que entretanto chegara, ainda tinha assistido a este final glorioso!


https://pt.wikipedia.org/wiki/Marcel_Duchamp
https://pt.wikipedia.org/wiki/Agostinho_da_Silva

MRodas






MRodas, 2020



MRodas 2020


MRodas 2020



segunda-feira, 8 de junho de 2020

Ver gente

Fui ver gente
gente com máscaras, sem máscaras
gente que ri, trabalha, fica em casa
como eu...

Mas tinha de sair e ir ver gente
ver como andam, abraçam
como se sentam e correm
como beijam e sorriem

Olha aquele a tirar a máscara para comer o gelado
E o outro a desviar-se para beber a cerveja no quiosque
Aquela a olhar para trás
E o doutor com ar de cansado
A criança que não quer ir à escola
A educadora a dizer que a criança não sabe o que é o metro, nem metro e meio

A televisão mostra o primeiro ministro a correr o país
Sempre a dizer, é preciso trabalhar, é preciso trabalhar
E o líder sindical a exigir mais testes
E o patrão impaciente a repetir é preciso trabalhar...
E o desempregado a gritar quero trabalhar

O barbeiro de porta aberta
O sapateiro está fechado
Os seguros entreabertos
Outros escrevem, um de cada vez...

Toda esta gente que ainda há pouco
maldizia a chatice da vida
Ei-los agora
cheios de medo a gritar
Quero viver, quero viver
Abraço-vos e grito
Também quero viver, porra!

MRodas

Nesta semana

Bansky



As mais lidas esta semana!
Os EUA em 1. lugar! Vale a pena!


sábado, 16 de maio de 2020

O poeta


O poeta

Cheguei da caçada exausto da dificuldade de
ver e sentir. Deitei-me na caverna a sonhar com
antílopes, cavalos e bisontes

Foi com o sangue deles e com
o meu que pintei as paredes

A natureza trouxe a fome e a fartura, a vida e a morte
Fiz dos passos em terra molhada
a cadência do teu pulsar
e com o dedo molhado de sangue menstrual
desenhei os sulcos do teu rosto
nas paredes frias da caverna que eu sou

O poeta nasceu aí
algures entre as noites estreladas e os gritos de guerra e caça
sombras do tempo desenhadas na pele de todas as mulheres
a memória da nossa tribo
no leite de filhos amamentados
e nos beijos de homens sôfregos de carne e flores

O poeta começou por desenhar todas as promessas realizadas
e na falta de pedra e abundância de sangue
desenhou palavras e...sorriu com sede de maçãs

Tinha inventado aos olhos da tribo
o maior paraíso do mundo, desde as cavernas até o pós atómico
desde as cavernas da alma, ao fogo das estrelas

O poeta esmagou as pedras na mão
e com sangue e pó reinventou o poema!


MRodas

terça-feira, 12 de maio de 2020

Passear a lagosta



https://vivreparis.fr/le-jour-ou-un-celebre-poete-a-promene-son-homard-de-compagnie-dans-les-rues-de-paris/
Para o Jorge 

Queria ir passear a lagosta
Daqui até Cabo Verde
À Boavista e a Rabil.

Inventar a trela que nos solta
Depois de um abraço de despedida
Ó lindas praias do Tarrafal
S. Tiago, Cidade Velha!

Passear a lagosta na Praia
Enquanto olho os teus olhos vermelhos
Tu que sabes os segredos do mar
Os recantos secretos das ondas e dos corais...

Pego em ti ao colo
Como no telefone sem fios
Bastam me as tuas antenas
Para te saber longe sem mim

Vamos expulsar o virús covid
Soprando com força 
Ou matá-lo com a indiferença?

Prefiro o presunto de Soajo
Mesmo sem palhinha....

MRodas

sábado, 9 de maio de 2020

O medo

Escrever sobre o medo é acrescentar sentido à esperança!

O Poema Pouco Original do Medo

O medo vai ter tudo 
pernas 
ambulâncias 
e o luxo blindado 
de alguns automóveis 

Vai ter olhos onde ninguém os veja 
mãozinhas cautelosas 
enredos quase inocentes 
ouvidos não só nas paredes 
mas também no chão 
no tecto 
no murmúrio dos esgotos 
e talvez até (cautela!) 
ouvidos nos teus ouvidos 

O medo vai ter tudo 
fantasmas na ópera 
sessões contínuas de espiritismo 
milagres 
cortejos 
frases corajosas 
meninas exemplares 
seguras casas de penhor 
maliciosas casas de passe 
conferências várias 
congressos muitos 
óptimos empregos 
poemas originais 
e poemas como este 
projectos altamente porcos 
heróis 
(o medo vai ter heróis!) 
costureiras reais e irreais 
operários 
       (assim assim) 
escriturários 
       (muitos) 
intelectuais 
       (o que se sabe) 
a tua voz talvez 
talvez a minha 
com certeza a deles 

Vai ter capitais 
países 
suspeitas como toda a gente 
muitíssimos amigos 
beijos 
namorados esverdeados 
amantes silenciosos 
ardentes 
e angustiados 

Ah o medo vai ter tudo 
tudo 

(Penso no que o medo vai ter 
e tenho medo 
que é justamente 
o que o medo quer) 



O medo vai ter tudo 
quase tudo 
e cada um por seu caminho 
havemos todos de chegar 
quase todos 
a ratos 

Sim 
a ratos 

Alexandre O'Neill, in 'Abandono Viciado' 

terça-feira, 5 de maio de 2020

A Língua Portuguesa


Hoje, cinco de maio o mundo reconhece o  português  como língua  global”.
Celebra-se o primeiro  Dia Mundial da  Língua Portuguesa, proclamado pela Unesco em novembro  do ano passado
A Língua Portuguesa como língua de Educação e Ensino, Cultura e Conhecimento! EECC!

Hoje apetece homenagear o Professor Rómulo de Carvalho!

Impressão Digital


Os meus olhos são uns olhos,
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem lutos e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

António Gedeão


A cultura


Os governos do mundo anunciam cortes na cultura em nome da economia. 
O paradoxo é que as pessoas sobrevivem ao confinamento graças à cultura.
 Há muitos séculos, o esforço do trabalho supera-se cantando.

Obrigado a todos os que dedicaram parte das suas vidas à criação, ao sonho dum mundo melhor!

sábado, 2 de maio de 2020

Os penteados e o covid

Agora que os barbeiros e os cabeleireiros estão fechados, lembro-me do grande Nicolau Tolentino, quando nos meus 17 anos ouvi pela primeira vez este poema, que nunca mais esqueci.

Sátira aos Penteados Altos

Chaves na mão, melena desgrenhada, 
Batendo o pé na casa, a mãe ordena 
Que o furtado colchão, fofo e de pena, 
A filha o ponha ali ou a criada. 

A filha, moça esbelta e aperaltada, 
Lhe diz coa doce voz que o ar serena: 
- «Sumiu-se-lhe um colchão? É forte pena; 
Olhe não fique a casa arruinada...» 

- «Tu respondes assim? Tu zombas disto? 
Tu cuidas que, por ter pai embarcado, 
Já a mãe não tem mãos?» E, dizendo isto, 

Arremete-lhe à cara e ao penteado. 
Eis senão quando (caso nunca visto!) 
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado!... 

Nicolau Tolentino, in 'Antologia Poética' 

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Outra vez a Telescola?


Não, não é a mesma coisa
o tempo é diferente
e as pessoas são outras

Naquele tempo a Telescola era uma promoção
do conhecimento e da escolaridade
a vitória do  espírito sobre a exclusão e a iliteracia

Hoje
é a compensação possível
para quem está em casa
amedrontado pelo vírus

O vírus veio lembrar que a tv
pode ser um meio de promoção 
da literacia dos pais e da família

Porque não houve escola na tv
nos anos anteriores?
Não interessa que os escravos sejam escribas
Para o poder
o que importa é manter-nos 
com telenovelas e programas da treta!

Não, não é a mesma coisa
o tempo é diferente

e as pessoas são outras
mas a natureza do poder é a mesma

E nós prontos a digerir tudo!

Manuel Rodas
20 de 4 de 2020



sábado, 18 de abril de 2020

Bem dito, vírus!

Aproxima
Afasta
Limpa
Protege
Oculta
Tira
Despe
Esfrega
Mete
Lava
Seca
Salva
De costas
De frente
Tira
Introduz
Puxa
Cuidado
Por baixo
Por cima
Devagar
Escuda
Por dentro
Por fora
Enfia
Tira
Saca
Atenção
Nas extremidades
Mantém 
Lava
Protege
Preserva
Escuda
Mete
Tira
Arranca
Cuidado
Nas bordas
Pela frente
Por trás
Abre
Fecha
Lava
Mete 
Arranca
Fecha a boca
Com o dedo não
Cuida
Agasalha
Sustenta
Nas margens
Retira
Mete
Esfrega
Lava
As extremidades
Descalça
Sustenta
Estimula
Em cima
Em baixo
Abre
Fecha
Lava
Esfrega
....bem dito, vírus!

Manuel Rodas




quinta-feira, 16 de abril de 2020

A carne é fraca!


Olá. 
Já és a segunda pessoa próxima que opta por ser vegetariana. 
A 1ª foi a minha filha. 
Nós não lhe criamos muitos problemas, pretendemos ouvir os pontos de vista dela, que até nos pareceram muito bem elaborados e razoáveis, mas o que mais me impressionou foi quando ela me disse, à hora de jantar: Sentes-te bem, a comer cadáveres?
Aquilo bateu-me fundo porque de repente comecei a ver um vitelo a correr numa grande pradaria, com a mãe acorrer atrás dela, olhando de esguelha para mim, que a perseguia, de faca na mão... Sorri.
Não desisti da carne, nem do peixe, mas integrei na minha dieta muitos mais vegetais, algum peixe e muita pouca carne. Mas confesso, ando com saudades duma boa posta da Miranda, ou de Mirandela!
Lembro-me do que o Agostinho da Silva dizia: Dizem os meus amigos que devo colocar uma prótese para mastigar melhor... Engano. Devo mudar a minha alimentação, adequá-la às transformações do meu corpo.
Concordo com ele e várias vezes o corpo me pede coisas. Sim, várias coisas. Uma delas é música. Outra é caminhar. Outras vezes fruta. Às vezes carne!
Abraço

Manuel Rodas

Porque será?



sábado, 11 de abril de 2020

Eu, em cinco quadras



Nasci num lugar precário
Numa casa florestal
Paradela, um lugar solitário
Soajo, vila fraternal

Sou neto de Manuel, o Marujo
e de Ana de Sousa, pais do meu pai
Também sou neto de Firmino Barbosa
e de Maria Preto, pais da minha mãe.

Sou filho de José Rodas 
E de Maria Preto Barbosa
Irmão de Firmino, Rosa e José
Meus irmãos, ah, pois é!

Sou pai de Inês Rodas
filha de Carmo Alves
Com quem celebrei bodas
Muitos anos antes.

Talvez venha a ser avô
e avó a minha mulher.
Acompanhado ou só
Morrerei num dia qualquer!

Manuel Rodas

A esfinge






Diálogos com a esfinge




Tu não és humana
 e a ti nenhum vírus te pode fazer mal
Que segredos escondes e que sabes tu de nós
nesta ilha onde atracamos
e que Ulisses ignorava
mesmo sabendo que Penélope o esperava?

Mas quem nos espera a nós
um vírus
saliva dum deus imaturo
ou lágrima duma deusa possuída por um humano?

Nada sabes sobre o amor
muito menos sobre a maternidade
a inquietação de estar vivo e não querer morrer ainda

Tu foste  inventada por uma mulher 
que esperou pelo seu companheiro
e não quis reproduzir em ti as dores sentidas
apenas as carícias
que a memória conservou do amante

A mulher mesmo de noite 
quando pousava a mão em ti
era nele que sentia a volúpia dos seus gestos

Agora inventaste um silêncio
como o vírus
todos falam dele
mas és tu que morres
com o arco do desejo nas mãos.



Manuel Rodas



segunda-feira, 6 de abril de 2020

A Bíblia





A Bíblia foi o primeiro livro impresso com os caracteres Gutenberg, 500 anos antes de eu nascer!

sábado, 21 de março de 2020

Maratona de poesia, Oeiras 2020

Para celebrar a Primavera e participar na Maratona de Poesia de Oeiras 2020, aqui partilhamos 3 videos, contendo, o primeiro, Maratona de Oeiras, 2020, fotos do Núcleo de Fotografia de Oeiras, com página no Facebook e alguns poemas meus. 
O segundo video, viagem é um poema meu, A viagem.
O terceiro video é uma performance feita com vento e imaginação.

Viva a Primavera! Viva a Poesia, Vivam os amigos!


1. Maratona de Poesia de Oeiras, 2020
https://youtu.be/mGkshS5t4u0

2. Viagem
https://www.youtube.com/watch?v=gdHUJkwG_do

3. Amo-te
https://youtu.be/nkMSSxItTy8

sexta-feira, 20 de março de 2020

Começou a primavera! Viva!

Viva! Viva! Começou a primavera
A mais bela das estações
não a mais quente
nem a mais fria

É aquela que sente
o frio e o calor
que vai nos corações
de noite ou de dia

Depois de ti
não haverá beleza
nem pão nem vinho
para por na mesa

Vens de braço dado
com o medo e a tristeza
andas por todo o lado
com a mesma ligeireza
apontado o dedo a qualquer um
Estás infetado?

MRodas