sábado, 13 de junho de 2020

Pintar


Pintura, 2020,  Inês Rodas



Enquanto a minha filha fazia os seus trabalhos de pintura, sentei-me a seu lado e tentei acelerar a conversa. Peguei num papel e num pincel e fomos conversando. O que posso pintar eu, que nunca pintei nada?
- Ouve a música! -diz ela a meu lado.
Sorri, para mim próprio. Quantas vezes não disse isso aos meus pequenos alunos com medo das tintas  e do pincel.
- O que te diz a música?
- O que eu quiser ouvir, ou melhor, o que eu quiser pintar!
Silêncio. O que quero pintar? Ouço a música. Pink Floyd!
Enquanto a inspiração não vinha, comecei por uma clave de sol. Ela olhou de soslaio e sorriu. Percebi a sua condescendência. A parte óbvia da música, a sua representação gráfica da pauta, o símbolo anterior à música que ouvia.
Com pastel imaginei que a clave Sol emitia música e esta se refletia em ondas coloridas na minha mente, que as devolvia em círculos e reflexos coloridos, de volta, formando uma imagem do movimento que experimentava.
A música vinha de longe, sei lá, do final da minha adolescência, e apresentava-se agora, nas mãos da minha filha.
- As cores mais escuras primeiro - conduzia ela a preocupação comigo e com a minha obra.
Quando pensei terminada a tarefa, senti que algo despertava em mim, precisava acrescentar algo, fora daquelas tintas e cores.
- Sinto que preciso acrescentar algo....
- O quê?
-Não sei....
Fui buscar o ferro de engomar e com um papel grosso, torturei as cores no fogo.
-És mesmo experimentalista!
Sorri.
E lembrei-me do amigo João Claro, quando, nos anos 90, me dizia, tens mesmo jeito para a investigação!
Quando consciencializei esta minha “originalidade” descobri também o valor do Se! Quer dizer, eu sempre soube o valor do “Se. Não sabia é que o Se valia tanto!
A primeira e última vez que recorri ao Se foi para fazer a pergunta mais eloquente da minha vida, E SE O MUNDO FOSSE DIFERENTE, PARA MELHOR?
A essa pergunta inicial que resume todas as outras, sucederam-se milhares de perguntas, como é natural em qualquer pessoa.

Achei que o trabalho estava terminado, mas não a minha vontade de encontrar um mundo diferente.
Peguei noutra folha e tentei descobrir formas transitórias, entre este mundo e o outro, o diferente e desejável.
Entretanto, a Inês, enquanto pintava com cores arroxeadas o seu quadro/instrumento musical, introduzia a temática para subverter o mundo: os males do mundo seriam, o excessivo consumo de bens e carne, o machismo, o sexismo, a ostentação do dinheiro e do poder, a insensibilidade e falta de políticas para minorar o sofrimento dos marginalizados. Para alterar a situação era necessário uma consciencialização geral, traduzida numa ação prática e concertada com as diferentes nações e povos, assegurando o direito à diferença, o respeito pela natureza, pelos animais, acesso às artes e à cultura. Era todo um programa de ação política, que eu não me importaria de assinar por baixo.
Voltei a minha página ao contrário e os elementos ganhavam novas significações. Se um mictório  (Duchamp) (1) pode ser uma obra de arte, também o meu quadro poderiam ser duas obras, uma a direito e outra ao contrário. Sorri, a pensar que Se o pintasse nas costas, passariam a ser 3?
Se ela me tivesse ouvido, diria de seguida, excesso de zelo, ou preocupações de produção para alimentar o sistema? Felizmente não ouviu e a coisa ficou só para mim.
Fiz um intervalo, levantei- me e vim olhar a rua. Deserta!
Voltei a sentar- me, peguei em nova folha, mas desta vez, recusaria as tintas e os pincéis. Experimentaria outros materiais. Um mundo novo precisa de novas ideias,  novos materiais mais consentâneos com o equilíbrio natural.

Com os condimentos da culinária salpiquei a folha de odores frescos e longínquos. Se era preciso mobilizar os povos, a pimenta, o colorau e o caril seriam bons representantes dessas paragens. Com cola de madeira diluída em água, com os dedos fui espalhando sobre as cores e recriando novos reflexos dum tempo que se anuncia, mas ainda não chegou, vai chegando!
Ela, enquanto dava vida ao seu quadro, continuava na sua argumentação, criando um modelo de sociedade utópica, que no dizer de Agostinho da Silva (2), não quer dizer impossível, mas sim, que ainda não foi possível!
- Esse cheira bem! O que levou?
- Levou séculos até chegar a Portugal. Quantos homens morreram e quantas mulheres ficaram por casar, para que a pimenta e o caril pudessem entrar no nosso imaginário, na fruição e agora estar aqui nesta obra.
- Pessoa e Floyd?
- Quantos ainda precisarão de morrer para que o mundo mude.
- E Se ninguém morresse?
- e Se todos, em todo o mundo votassem em branco?
- Saramago?

Rimo-nos os três, porque a mãe, que entretanto chegara, ainda tinha assistido a este final glorioso!


https://pt.wikipedia.org/wiki/Marcel_Duchamp
https://pt.wikipedia.org/wiki/Agostinho_da_Silva

MRodas






MRodas, 2020



MRodas 2020


MRodas 2020



4 comentários:

Seja crítico, mas educado e construtivo nos seus comentários, pois poderão não ser publicados. Obrigado.