Até que ponto é que essa capacidade de acreditar que
tudo é possível, o livre pensamento, a criatividade, são transmitidas pelo
sistema de ensino que temos?
O nosso sistema de ensino tem uma matriz oposta a essa
e esse é um dos seus grandes problemas. É absolutamente anacrónico desse ponto
de vista. Falo do ensino básico e secundário, onde as coisas melhores acontecem
fora da sala de aula, como se não conseguíssemos mudar a sala de aula e fizéssemos
umas flores à volta dela, projectos com a comunidade, actividades
artísticas. Não inovamos no coração da pedagogia. A questão é como é que
construímos uma escola que não seja à volta das aulas, mas sim do estudo? E o
estudo implica uma dinâmica de autonomia, de liberdade, de cooperação, que é
uma coisa que falta imenso nas nossas escolas e na sociedade portuguesa. E nos
últimos anos, pior ainda.
Entrevista de António Nóvoa à revista do Pública,
26/05/2013
Alunos e professores, o saber e o poder
Em Portugal corria o ano de 1990.
Os fundos da CEE inundavam as oportunidades de
investimento fácil, desorientando todos, porque não sabiam onde investir, ou
porque sabendo, queriam aumentar de imediato a sua conta bancária. Para outros,
era a oportunidade definitiva de comprar frigorifico, televisão ou o modelo de
carro e Jeep tão desejados e tão anunciados em todo o lado, como se de uma
urgência inadiável se tratasse.
Muitos acreditavam que tínhamos chegado ao paraíso
prometido desde a revolução de Abril. Cavaco era primeiro ministro e o governo,
braço armado da União Europeia, inflamava-se a mandar abater os barcos de
pesca, arrancar as oliveiras, derreter dinheiro nos centros de formação
profissional, esbanjar apoio às grandes empresas.
As autarquias queriam resolver o problema do emprego
aos eleitores mais influentes, alguns caminhos e candeeiros e acabar com os
bairros de lata, obedecendo aos ditames dos empreiteiros, dos bancos e técnicos
do Instituto de Reabilitação Urbana! Foi preciso esperar muitos anos para
alguns estudiosos virem dizer já em 2013 que o realojamento foi injusto e
segregador.
Eu tinha passado os dois anos anteriores, 1987 e 1988,
a trabalhar num organismo regional (Lisboa) do Ministério da Educação. Tinha
como função coordenar as equipas de professores de educação especial das
cidades de Lisboa, Amadora e Sintra. Continuando os esforços de integração das
crianças e jovens com necessidades especiais de educação, iniciados com a
revolução de Abril, os professores de Educação Especial apoiavam estas crianças
e jovens, os professores das turmas, davam ainda apoio e aconselhamento aos
pais e encarregados de educação. Desenvolviam ainda esforços de colaboração e
inter ajuda com vários serviços locais de saúde, segurança social e autarquias.
Eram situações de grande necessidade, com poucos recursos mas, muita
sensibilidade social.
O trabalho de apoio educativo exigia uma grande
disponibilidade de vida dos professores de educação especial, para gerir
situações de tão grande stress e desgaste emocional.
A triangulação constituída por três vértices, (Pais,
Prof’s e alunos) com forças de atração e oposição, gerava muita tensão, alguns
conflitos e muito desconforto e ... alguns êxitos. Os pais queriam mais
aceitação e valorização para os filhos; os professores das turmas queixavam-se
de tudo, das dificuldades provocadas por estes alunos, da falta de colaboração
dos pais, do Ministério da educação, da falta de formação, da falta de
condições materiais e profissionais, do excesso de alunos por turma, dos inspetores,
dos programas, etc... ; os alunos queixavam-se da falta de atenção e cuidados
dos pais, violência dalguns colegas, e
ainda das suas dificuldades de integração na escola. As auxiliares de educação protestavam
contra o baixo salário, as prepotências
dos diretores e o aumento de trabalho com estes alunos. Até as autarquias se
queixavam do governo que não atribuía as devidas dotações orçamentais.
Apesar destes problemas, muitos professores de
educação especial eram verdadeiros missionários, intervenientes e criativos,
mobilizando recursos na comunidade, atores e arautos no apoio a estes
intervenientes no processo educativo.
Eu próprio tinha trabalhado como professor de educação
especial durante 9 anos, desde 1978 e
senti todas estas dificuldades, desde construir uma profissão diferente, dentro
do espaço pedagógico, que até aí não existia, como contribuir para a mudança da
escola e das suas práticas tradicionais. Quando aceitei a coordenação destas
equipas de professores pensava que poderia ajudar na mediação entre as suas
necessidades profissionais e as possibilidades de resposta do serviço
coordenador do Ministério da Educação.
Ao mesmo tempo trabalhei exaustivamente com a
coordenação do 1º ciclo na Direcção Regional de Lisboa, na preparação de ações
de formação e na sua execução em todo o distrito de Lisboa. Isso levou-me a
terras desconhecidas, aldeias remotas desde a Lezíria até Torres Vedras, a
norte e a sul. Conheci colegas desiludidos com a profissão e zangados com a
vida, conheci pessoas muito interessantes, verdadeiros profissionais para quem
a sua vida era o seu trabalho e outros que era fácil fazê-los re-acreditar e
arrancar um “brilhozinho no olhar”! Espero que lhes tenha servido de alguma
coisa para a sua atividade. Foi numa destas sessões que um dia em Vialonga, vi uns olhos, negros brilhando
a cada palavra que ouvia...
Eu pensava que era preciso tratar dos peixinhos
doentes, feridos, diferentes, mas também era necessário ir despoluindo as águas
onde viviam. Daí o ter contribuído no esforço conjunto da formação, a partir da
reflexão sobre a escola!
Estes dois anos passaram e recolhi material suficiente
para algumas reflexões:
· Os governados têm um uma grande capacidade de
fantasiar as potencialidades do poder e esperam tudo dele, mesmo o que não está
na natureza do poder fazer (pelo menos nestas circunstâncias).
· O poder está muito mais dependente dos governados do
que estes próprios imaginam. Qualquer abaixo assinado por dois ou três pais
duma escola deixavam a tremer vários serviços, com medo que este protesto
alastrasse na escola, e pior ainda, a outras escolas. Pior ainda se havia
eleições próximas...
· Na sala de aula, os professores têm mais poder que qualquer
ministro.
· A capacidade de intervenção do poder na mudança de
práticas e concepções tradicionais é
muito fraca e condenada ao fracasso, se este não for capaz de mobilizar os
intervenientes, partindo do principio que o poder quer alguma mudança!
· O poder tem uma dificuldade tradicional em mobilizar
forças da mudança. O poder não quer a mudança. O poder quer estabilidade,
continuação do ontem, manutenção da situação, quer seja justa ou injusta.
· O poder aparenta desenvolver áreas de liberdade e de
justiça, desde que daí decorram dividendos para a sua permanência, auto-justificando-se
e auto-legitimando-se.
· Quem detém o poder tenta a todo o custo mantê-lo, para
continuar a beneficiar dos seus privilégios, ou como meio para atingir os seus
fins.
· Quem não tem poder aspira tê-lo. Muitos, para
beneficiar dos seus privilégios, poucos para o utilizar para o bem de todos.
· A mudança só muito raramente resulta da ação
individual, mas um pequeno grupo coeso, com ideias, princípios e valores
comuns, pode aproveitar as fragilidades dos sistemas, para evoluir e fermentar
um conjunto de ações estruturadas, desafiantes e alternativas.
· O grupo funciona melhor, em torno duma liderança aceite
como vantajosa para todos e assente em princípios e valores consensuais.
A minha passagem pela direção regional do Ministério
da Educação, obrigou-me a refazer o meu percurso profissional e ... nada melhor
que voltar ao princípio. Eu também era professor primário! Desejei voltar a uma
turma e re-experimentar conduzir uma classe, ao longo dum ano lectivo, numa
escola primária. E depois logo faria o balanço, se queria regressar à educação
especial, ou manter-me numa turma.
Andava eu de volta destas reflexões quando dei comigo
a assinar os boletins de tomada de posse do lugar de professor na escola
primária nº 124 em Benfica.
A escola fazia-me lembrar o modelo do Plano dos
Centenários do Estado Novo. Mas vim a saber mais tarde que era um modelo do
Estado Novo para servir as habitações construídas e entregues aos funcionários
do Estado e classe média.
Encostada ao Jardim municipal Silva Porto, em Benfica,
era constituída por dois grandes blocos, com rés do chão e 1º andar, cozinha,
refeitório, ginásio e um espaço exterior muito agradável.
Na entrada de
cada bloco existiam grandes salas de entrada, com informação nos
placards aos pais e alunos.
O corpo docente era constituído por mulheres (23, ou
24...) sendo eu o único homem. As colegas já tinham bastante idade e tinham
sido colocadas nesta escola, antes da revolução, ainda por nomeação
ministerial, por pertencerem a famílias ou grupos sociais influentes.
A diretora da escola tinha-me entregue a turma dela
(4º ano) e assumira a direção da escola, pela primeira vez, a tempo inteiro.
Disse-me: Tem quatro alunos a mais, mas como são ciganos só vêm no principio do
ano e depois... nunca mais aparecem.
Mais um desafio! Fazer com que eles não faltassem! E
não faltavam!
A cultura da escola era não fazer ondas, nada de atividades
que mexessem muito com o que era tradicional fazer-se. No natal fazia-se o
presépio, na Páscoa, os coelhos punham ovos, e na Primavera os pássaros faziam
lindos desenhos. Os alunos, não.
O horário era em regime normal, das 9h às 15,15h, com
intervalo de 1,30h para almoço. Havia ainda um intervalo na parte da manhã.
Todos cumpriam este horário, saíam, voltavam para suas casas e no dia seguinte
lá estavam. Quase todos. Uns mais bem dispostos que outros.
As ordens que chegavam, eram predominantemente
administrativas e eram aceites como definitivas e inquestionáveis. Não havia
discussão, nem reflexão. Pedagógica. Era assim porque a administração dizia.
Ponto. Cavaco era primeiro ministro e havia como um consenso social que
proclamava: agora acabou-se a discussão!
Ficava a pensar como estas ilhas pedagógicas tinham
permanecido no seu isolamento, na sua solidão, silenciosas e no remanso da
quietude do conforto e do marasmo. O tempo não tinha passado. Ainda cheirava a
Estado Novo, desde o crucifixo por cima das ardósias, os estrados junto à
ardósia, até o ar bafiento dos corredores e dos mapas.
Contaram-me que algumas experiências de modernização e
atualização tinham sido condenadas ao fracasso. Ou por cansaço e desistência
dos atores, ou pela pressão inexorável dos que querem mudar... para que fique
tudo na mesma.
Eu acreditava nos direitos das crianças, na expressão
livre, no seu papel ativo e na sua participação nas aprendizagens na sala de
aula, na planificação e avaliação das atividades, no valor da cooperação e da
ajuda mútua.
Eu obrigava-me a organizar a minha turma, em
obediência a estes princípios morais e éticos duma moderna pedagogia, para uma
sociedade mais justa!
Sabia que estava sozinho naquela escola, mas confiava
que os meus alunos seriam tocados pelo meu querer e boa vontade. Eles seriam os
porta vozes deste vento novo, junto das famílias, e essa alegria interior e
entusiasmo juvenil, por mim esperado,
deveria chegar para convencer os pais.
Os colegas sabiam que eu tinha estado no
Ministério e isso era suficiente para
respeitarem as minhas opções pedagógicas. Eu vinha iluminado pela aura do
poder... Era assim que eu pensava e desejava que eles pensassem, para me deixarem
em paz, pois os instalados e desconfiados podem ser muito atrevidos.
A diretora tinha bom senso e era simpática comigo. Viemos
a ficar amigos. Viúva, mãe dum filho de 19 anos com problemas graves de saúde,
manifestei-lhe o meu reconhecimento pelo seu profissionalismo, e pela sua vida
cheia de tristeza, dor e sacrifício.
A minha turma de 4º ano era composta por um número
semelhante de rapazes e raparigas. Alguns repetentes, 3 ciganos e 3 negros.
Eram provenientes das camadas populares em volta da escola. Havia um aluno,
filho duma mãe solteira que vivia num autocaravana no Parque de campismo de
Monsanto. Diogo? Penso que sim. Havia outros filhos de retornados das ex
colónias, alguns filhos de alentejanos radicados na capital e os restantes ...
de Benfica!
Como em todos os grupos sociais, representados através
duma curva de distribuição normal, havia um pequeno número dos que tinham
progredido muito nas aprendizagens, um grande grupo, mais ou menos homogéneo e
uns pouco que estavam muito atrasados, havendo 2 ou 3 que soletravam e uma aluna,
cigana que não sabia ler.
Em assembleia, e como tinha lido nos pedagogos
modernos e aprendido na cooperativa de professores da escola moderna, (MEM) comecei
por planificar as atividades semanais na 2ª feira de manhã e fazer a sua
avaliação na 6ª feira de tarde. À medida que avaliamos o que tínhamos feito,
relançávamos a atividade para a semana seguinte, prevendo tempos para trabalho
em conjunto, trabalho de grupo, trabalho a pares e trabalho individual.
Distribuímos tarefas, de modo que o maior nº possível
participasse. Marcar presenças, distribuir cadernos e material, manter o quadro
e a sala limpos, instituindo como regra que quem sabe deve ajudar quem não
sabe.
Como foram surgindo alguns pequenos conflitos,
escrevemos num cartaz dividido por 3 colunas, o que gostamos, o que não
gostamos e sugestões, onde todos poderiam escrever, elogiar e criticar os
colegas e a escola. Na sexta feira, em assembleia, afastados da emoção do momento,
analisaríamos este material, já com a distância necessária para achar ridículo
o que era ridículo e valorizar o que deveria ser valorizado e assim regulando e
gerindo a nossa vida, construirmos um pensamento moral e ético a partir das
situações reais de vida.
Organizamos grupos de trabalho, de constituição
equilibrada e diversificada, de modo a se poderem ajudar uns aos outros,
desenvolvendo projetos de investigação em volta dos temas de Estudo do Meio e
da Língua portuguesa e agendamos a sua apresentação à turma, prevendo para isso
alguns tempo ao longo da semana, acrescidos do trabalho de pesquisa, sempre que
possível, em casa com os pais.
Eu andava radiante e fascinado! A atividade docente
era tão gratificante, mas tão exigente, que durante o horário lectivo, me
esquecia de tudo o resto, preocupações particulares, recados, etc. Os meus alunos
exigiam-me a tempo inteiro, para construírem a sua autonomia!
Poder organizar este grupo duma forma coerente com o
que eu acreditava, dava–me uma satisfação tão grande ... que contagiava os
alunos. E o entusiasmo deles retornava e contagiava-me a mim!
Contagiava? Não todos.
Um dia numa assembleia, o melhor aluno da sala pediu
para falar e disse que já tinha falado com alguns colegas e não queriam
continuar nesta escola nova. Tinham saudades da escola antiga, tal como fazia a
antiga professora. Não imagino como teria ficado a minha cara. Com certeza com
muito espanto. Não era evidente para todos as vantagens da escola nova? Como
era possível?
Nunca ninguém me tinha relatado, quer nos diversos
encontros de professores, quer na literatura da especialidade, uma situação
semelhante.
Perguntei se havia mais colegas a pensar assim e
constatei que um grupo constituído pelos melhores alunos, mais alguns, na sua
dependência, levantaram o braço, assumindo a sua discordância. Eram pelo menos
um terço do total da turma.
O espanto não foi só meu. Os restantes alunos também
manifestaram a sua admiração e declararam de imediato, que não estavam
dispostos a voltar atrás. Percebi que tinha uma turma dividida. Um pequeno
grupo reclamava os seus direitos e uma maioria não estava disposta a cedê-los.
Como era já no final do dia, tentando ganhar tempo,
disse que continuaríamos a reflexão no dia seguinte. Passei o resto do dia e da
noite, às voltas, a perguntar-me sobre onde tinha errado, que tinha feito de
mal? Aqueles anos afastado da turma tinham provocado falhas e corrompido as
minhas competências profissionais? Que alunos eram estes, que heroicamente
tinham desafiado a figura do professor... para voltar atrás? O que era para
eles voltar atrás? Quem eram os que queriam ir para a frente? O que era voltar
atrás e ir para a frente? Donde vinha essa força para uns quererem continuar e
outros desistirem? Quais eram as suas motivações?
Na verdade, depois de ter recuperado do embate inicial,
dei comigo a admirar e a respeitar este grupo. Tinha força, coesão, era
corajoso e ia à luta, afrontando mais de metade da turma e o próprio professor!
Durante algum tempo na sala de aula poder-se-ia ver dois
grupos. Um, mais pequeno, com as carteiras alinhadas, umas atrás das outras. Outro
grupo, com as carteiras distribuídas em U, permitindo deste modo a ajuda, a
interação, a colaboração e olhos nos olhos, a expressão livre.
Com este grupo continuamos a nossa organização
cooperativa. Plano de trabalho e avaliação semanal, distribuição de tarefas,
trabalho individual, em pares e de grupo. Começamos a planear o trabalho de
grupo, baseados no programa oficial do estudo do meio. Deste modo, cada grupo
iniciava a recolha de materiais, informação diversa e dispersa recorrendo aos
manuais escolares, da biblioteca da escola e recorrendo aos pais. O entusiasmo
era grande , mesmo entre os que não sabiam ler ou tinham muitas dificuldades.
Era com gosto redobrado que os via entusiasmados, os olhitos a brilhar,
fazendo-me acreditar que o caminho seria por ali.
Com o outro grupo, perguntava-lhes o que se fazia na
escola antiga. Mais como barómetro da sua obstinação, do que por
desconhecimento meu. Cópias, ditados e correspondentes erros, leitura em voz
alta e respectiva correção, redações com tema dado e fichas de resposta às
várias disciplinas. De vez em quando um desenho e respondiam às questões postas
pelo professor.
- Assim
faremos!
Mas sorrindo baixinho para mim, interrogava-me, quanto
tempo iriam resistir?
E tentava estar presente com eles quando o outro grupo
tinha atividades mais autónomas. E deixava-os mais sozinhos, quando estes
faziam cópias, ditados ou leitura silenciosa!
Só havia uma atividade que tinham de fazer em
conjunto: Educação Física. E nesse dia fazíamos o aquecimento a correr no
jardim da Mata e continuávamos com algum jogo coletivo:
Andebol, voleibol e futebol. Ainda pensei no râguebi, mas não houve
oportunidade, ou disponibilidade dos recursos ou minha!
A escola não se apercebia desta luta no interior da
minha turma e eu também não tinha interlocutor. Fui gerindo a situação na minha
solidão de professor, com a turma em ebulição contínua!
Os pais também não reagiam. Alguns achavam graça ao
entusiasmo dos filhos. O pai do Rúben tinha mandado dizer que este ano já tinha
assinado mais papéis do que nos outros 3 anos de escolaridade. E ainda não
tínhamos chegado ao Natal! Esperei que a situação se definisse, para depois
fazer a reunião com os pais.
Um dia recebi numa carta, uma declaração de amor da
mãe duma aluna! Recém chegada do Alentejo, divorciada com uma filha na turma, a
solidão da capital empurrou-a para mim, que era terno para a filha e simpático para ela. Conversamos e mostrei a minha indisponibilidade
para uma relação mais afetiva, um possível enamoramento, pois nesse tempo
estava numa relação muito envolvente! Ela iria com certeza encontrar alguém que
a amasse e iria sem dúvida relançar o seu projeto de vida. Entendeu o que lhe
disse e sempre nos tratamos cordialmente! No final do ano veio dizer-me que
estava enamorada e ia viver com um homem que tinha conhecido e agradecer-me ter
sido compreensivo com a filha e com ela. Fiquei contente por ela e pela filha!
Uma história de amor que ia começar bem!
A atividade do grande grupo democrático crescia a
olhos vistos. O seu entusiasmo não parava. Às vezes até me sentia arrastado por
eles e tinha de recomendar calma e paciência.
O pequeno grupo, dos pequenos iluminados, não cedia, o
que sinceramente fazia aumentar a minha admiração e alguma inquietação, pela
sua necessidade de marcar terreno e não sair das trincheiras.
Mas havia zonas de sobreposição. Nas Assembleias, onde
só participava o grupo da escola nova, rapidamente perceberam o seu funcionamento
e a sua natureza reguladora da atividade na turma. Mas muitas vezes havia
queixas de algum elemento da escola antiga. Nesse caso pedíamos autorização à
assembleia, através de votação, se admitia a participação do referido elemento,
tendo este o direito a esclarecer a situação e poder defender-se. Várias vozes
se levantaram contra a sua participação. Não querem ser da escola nova, não têm
que participar! Mas com algum tacto e bom senso as questões lá se iam
resolvendo!
Nas assembleias foi emergindo uma menina cigana,
tornando-se muito respeitada e temida por todos. Porquê?
Porque a Maria conhecia muito bem as cumplicidades
entre eles e desmascarava as jogadas e combinações deles. Por exemplo, se um
aluno defendia outro que não tinha razão, logo a Maria levantava o dedo,
fazia-se silêncio e dizia:
- O Ivo
está a defender o Miguel porque este lhe dá o lanche no intervalo.
Ou porque o deixa jogar à bola, ou ainda porque ele o
defende doutros alunos doutra turma.
A Maria conhecia os esquemas, argumentava com
seriedade, corajosa e denunciava todos as tramas, combinações, falcatruas e
demais nuvens negras das relações humanas!
A Maria copiava e não escrevia. Mas desenhava,
recortava, era responsável nas tarefas, fazia contas, sabia a tabuada, não
fosse ela cigana experimentada na ajuda aos pais nas feiras. Que pena a Maria
não saber ler!
Finalmente para mim era claro porque o pequeno grupo
resistia. Detentores do conhecimento escolar, e por isso mesmo, respeitados
pelos outros e pela forma como se vestiam e comportavam, não estavam dispostos
a ceder parte desse poder aos pobres coitados, sujos, despenteados, sem saber
ler, silabando, hesitando, gaguejando...
Qual era a piada de terem de se calar, para deixar o João
falar? Que poderia o Moisés, negro, dizer de interessante que eles não
soubessem explicar muito melhor? Quem dominava os instrumentos da cultura e do
saber? Eles sentiam-se até humilhados, não reconhecidos. Por isso, foi tão
difícil sermos uma só turma.
O Zé Luís, recém chegado de Angola ainda disse:
Obrigue-os a serem da escola nova!
“Não, Zé Luís. Não os posso obrigar. Quero que eles
percebam e sintam o que aqui se passa, e sejam eles a decidir da coerência das
coisas, da amizade e solidariedade, da ajuda mútua, da justiça, dos direitos e
deveres e da liberdade de viverem em sociedade. É uma oportunidade para todos
podermos refletir e vivenciar esta situação. Não só o que tenho de aprender,
mas também como estou a aprender, com quem aprendo e o meu contributo para o
crescimento dos outros.”
O podermos decidir sobre o que vamos fazer e como nos
organizamos tinha um impacto muito cativante e sedutor em toda a turma. Mas foi
preciso tempo, respeito pela posição do outro, muito bom senso, sentido de
justiça, muita coerência! Sentia que pisava um terreno escorregadio e a
qualquer altura podia descambar e fazer ruir o que acreditava!
Sobre mim pesavam a possível descrença dos alunos, as
criticas e desconfiança dos pais, e a mais que evidente ironia dos colegas:
“São muito espertos lá nas direções e coordenações, mas aqui no terreno é que
se vê como elas são...”
Com todos estes cuidados e precauções, com a ajuda da educação
física e a apresentação dos projetos de trabalho à turma, foram-se abrindo
brechas naquele muro humano e regressou alguma tranquilidade. Eles foram
cedendo, também porque se sentiram respeitados. Foram momentos de partilha e
grande emotividade e visibilidade social. Nós fizemos este trabalho que agora
vos apresentamos, para que aprendam connosco e possam ajudar a enriquecê-lo.
Só passados aí uns três meses, mais ou menos, é que
começaram a debandar. Primeiro um, depois o outro anunciavam que queriam
pertencer à escola nova e por fim foi a debandada geral. Foi um momento de
grande emotividade para todos. A família tinha-se reunido, eram agora um grupo,
um corpo, respeitando as diferenças, mas reunificado, e decididos a enfrentar o
futuro.... vamos lá ao trabalho! A
tensão foi ultrapassada e as forças da coesão tinham superado as da distensão!
Projeto a projeto, assembleia a assembleia, grupo a
grupo, par a par, tarefa a tarefa, dia após dia, êxito após erro, dei comigo no
final do ano tão surpreendido a ver alguns alunos a despedirem-se de mim,
sorrindo com o êxito da experiência escolar, mas de tristeza pela separação
definitiva, e alguns com lágrimas nos olhos. Aí percebi como o professor faz
tudo para deixar de ser preciso! Para que eles sejam autónomos, o professor tem
de desaparecer, auto-destruir-se!
Nunca os esqueci e por isso estou a recordá-los.
Estejam onde estiverem, Sara e Zé Luís, Zé Manel, Rosário, Camilo... todos, obrigado
por me ajudarem a gostar tanto de ser professor. Graças a vocês, eu tive a
melhor profissão do mundo!
Oeiras, Maio de 2013
Mina Bacelar
ResponderEliminarTexto lindo. Uma ode ode ao amor. A vida linda de um professor que somente queria ser professor Parabéns
Manuel, adoro o modo como descreves as tuas vivências …és tão real! Invejo o teu dom! Mas revejo-me em algumas situações…
ResponderEliminarO que nos torna diferentes é a diversidade de atividades ao longo da carreira profissional. Tal como tu, também experimentei a Telescola, Apoio Educativo, Delegação Escolar, Executivo e acabei como comecei, por opção própria, com o 1º ciclo. Para estes últimos 3 anos, trazia uma vasta experiência adicional e acolhi de braços abertos o projeto curricular de escola que, por acaso, era muito semelhante ao que adotaste e descreves. Foi uma experiência única!
Trabalhei numa forma mais direta de participação dos alunos na negociação, distribuição e controlo das atividades. Eles tinham acesso aos conteúdos programáticos, previamente “traduzidos” para uma linguagem acessível e geriam o tempo de aquisição.
Mensalmente, em reunião de turma, registavam-se os pontos trabalhados na aula, cada aluno assinalava os que sabia, aqueles em que tinha dúvidas e o que deveria fazer para superar as dificuldades experimentadas.
Acompanhava os alunos em todos os momentos de avaliação para verificação do ritmo de aprendizagem de modo a avaliar o que planearam realizar e o que conseguiram concretizar. Assim a informação aos encarregados de educação era feita de um modo mais eficaz.
Claro que trabalhar deste modo não é fácil, tens uma carga horária ilimitada e muita componente administrativa e lidar com a recusa e crítica negativa de alguns colegas também não é pêra doce mas a recompensa, essa vês nos olhos dos alunos, quando no último dia se despedem de nós.
Acabo citando uma frase tua “ dei comigo no final do ano tão surpreendido a ver alguns alunos a despedirem-se de mim, sorrindo com o êxito da experiência escolar, mas de tristeza pela separação definitiva, e alguns com lágrimas nos olhos."
Um abraço
Manuel, adoro o modo como descreves as tuas vivências …és tão real! Invejo o teu dom! Mas revejo-me em algumas situações…
ResponderEliminarO que nos torna diferentes é a diversidade de atividades ao longo da carreira profissional. Tal como tu, também experimentei a Telescola, Apoio Educativo, Delegação Escolar, Executivo e acabei como comecei, por opção própria, com o 1º ciclo. Para estes últimos 3 anos, trazia uma vasta experiência adicional e acolhi de braços abertos o projeto curricular de escola que, por acaso, era muito semelhante ao que adotaste e descreves. Foi uma experiência única!
Trabalhei numa forma mais direta de participação dos alunos na negociação, distribuição e controlo das atividades. Eles tinham acesso aos conteúdos programáticos, previamente “traduzidos” para uma linguagem acessível e geriam o tempo de aquisição.
Mensalmente, em reunião de turma, registavam-se os pontos trabalhados na aula, cada aluno assinalava os que sabia, aqueles em que tinha dúvidas e o que deveria fazer para superar as dificuldades experimentadas.
Acompanhava os alunos em todos os momentos de avaliação para verificação do ritmo de aprendizagem de modo a avaliar o que planearam realizar e o que conseguiram concretizar. Assim a informação aos encarregados de educação era feita de um modo mais eficaz.
Claro que trabalhar deste modo não é fácil, tens uma carga horária ilimitada e muita componente administrativa e lidar com a recusa e crítica negativa de alguns colegas também não é pêra doce mas a recompensa, essa vês nos olhos dos alunos, quando no último dia se despedem de nós.
Acabo citando uma frase tua “ dei comigo no final do ano tão surpreendido a ver alguns alunos a despedirem-se de mim, sorrindo com o êxito da experiência escolar, mas de tristeza pela separação definitiva, e alguns com lágrimas nos olhos."
Um abraço de parabéns, PROFESSOR
Gostei imenso do texto. A "escola velha" tem de ser substituída, sem dúvida. Lembro-me de andar no preparatório, onde tive professores que se mantiveram com a minha turma durante vários anos e ficar perplexo pelo facto de não terem mudado em nada, o que é um erro terrível quando se dá aulas a alunos de uma faixa etária que está em mudança permanente. As aulas eram simples: o professor dava trabalho, o aluno cumpria. Se engolisse e estudasse, tinha bons resultados. No entanto, o que aprendia na sala estava no papel e não saía do papel. O maior problema do sistema de ensino (visto pela perspectiva de um ex-aluno) é que não ensina a pensar nem a estabelecer uma relação entre o que se aprende na sala e o que se passa lá fora. O modelo que o Manuel aplicou na sua sala de aula, para além de estimular os alunos a pensar por eles (e a questionar a autoridade), ensina-os a aplicar o que aprendem na sala no mundo real. A distância que existe muitas vezes entre professores e alunos numa sala de aula faz-me pensar na escola como uma fábrica de autómatos que vao acumulando informaçao para aplicar no mundo do trabalho. E as consequências vêem-se bem na terceira idade: as pessoas deixam de trabalhar e não sabem o que fazer da vida, pq simplesmente nao aprenderam a viver. E o mais assustador é ver que o Governo, para além de fomentar este tipo de ensino mais "quadrado" parece achar prioritário fazer cortes no ensino e fazer os possíveis para se ver livre dos idosos. É de louvar que haja pessoas como o Manuel que tenham noção de que a escola não é só para aprender a ler e escrever. Bem-haja.
ResponderEliminar