sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Os funileiros



Ao ver o amolador na minha rua não pude deixar de pensar nos funileiros, que chegavam sem serem convidados. Era assim:
Ao Eiró chegaram os funileiros. Uns saltimbancos andarilhos, uns burros sujos e de pelo comprido, num passo lastimoso de quem vem de longe, vai para outro sítio e volta aos sítios por ainda há-de passar, ou ainda ninguém esteve.
Os quatro homens e várias mulheres com roupas sujas, que lhes tapam o corpo e escondem a miséria. As faces são escuras de fumo e os cabelos sujos do pó do tempo. O Ti Diogo empresta o curral para as bestas e a arrecadações para os donos. A criançada deles não vai à escola, anda por ali a apanhar uns gravatos pró lume e a olhar com curiosidade tudo que mexe.
Os homens assentam arraial no Eiró. As mulheres trazem-lhes os pratos partidos, as asas deslocadas das panelas ou cântaros, os garfos tortos, as colheres rotas e as carteiras vazias. Eles concertam e consertam com “gatos”, dão um jeito no jeito das gentes. Assim pudessem eles apaziguar as almas e as vidas. Nunca dizem não ou é impossível. Só,
Vamos ver dona, vamos ver.
E com fogo, uns alicates, corta folhas, furador, esticador e o lábio inferior preso contra os dentes do maxilar superior, o olho direito mais cerrado, a força faz o engenho e o engenho faz a sorte de endireitar a peça. Com “gatos” nos pratos? Sim com gatos, admira-se ele, que pensava que gatos eram só aqueles que andavam pelos caminhos a miar, espiando os cães e os ratos.
Trocam-se as mãos nas moedas dadas e recebidas, mas não se cruzam os olhares. Eles não são daqui. Estão aqui e logo partem para outro sítios onde hão-de voltar e assim sempre, até os filhos e os netos continuarem a peregrinação ou maldição. Sabe-se lá até que geração!
Ele fica a olhar o tempo todo. Partiria com eles, de boa vontade, a ver o mundo. Aprenderia a concertar o partido e o rachado, daria brilho ao ofusco, e faria rir todos os tristes. Mas não pode. Ele agora tem um plano.
Queres um apito?
Faz que sim com os olhos. Um apito faz sempre falta a quem não tem nada e não sabe assobiar. O homem dobra um resto de lata, acrescenta-lhe o bocal e diz,
Põe os dedos de lado para tapar o ar. Sopra!
Soprou e nasceu o som. O som cresceu dentro dele, passou o Eiró, a Lage do Caminho, desceu ao Cruzeiro e ao Santo e foi preciso mandá-lo calar. Nunca mais o som se calou. Quando o som voltou ao Eiró, já os almocreves tinham partido. Não teve tempo de se despedir.
Foi à Laja da Coca e soprou, soprou na esperança de que o ouvissem na Portelinha. Ainda quis ir à Boucinha mas chamavam da escola e ia começar a fila interminável de letras e sons, em silêncio. Muito silêncio!
Precisava pensar no plano! Ele tinha um plano!
Oeiras, Jan 2012

3 comentários:

  1. Ola, gostei de ler as suas frases, só gostava que concertassem tambem esta Nação......

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    1. Salvador Mor3/07/2012

      boa noite:
      Entrei,entrei agora mesmo. Vi o teu email e percebi logo o que me querias dizer;foi um prazer,uma agradável surpresa. Passamos pelos anos, confesso-te que me custa muito.Mas, ouvi o "som".Por falar nisso, um dia destes, passei em Vila Verde de fugida e, numa esquina estava o funileiro. De relance, vi as candeias, as canequinhas, e o funil do vinho....não tinha mais tempo; vi pouco, mas vou lá voltar.
      Como aqui, voltarei, eu prometo. Gostei!

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  2. Anónimo6/20/2024

    Muito obrigado.

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