O homem andava descalço no verão e no inverno. Sabia de cor as nervuras das pedras do caminho, a profundidade das poças de água, enquanto as giestas do caminho lhe fustigavam as pernas, por baixo das calças rotas. Trazia às costas um saco de pano sujo, que segurava com uma mão fechada e a outra presa a um varapau, a prever as arestas das pedras. Já tinha pouco cabelo e o que permanecia era muito raro, por isso a testa brilhava até ao alto da cabeça. Ele quase não falava, só fazia um esgar, não sei se a rir para fora ou a chorar para dentro. Às vezes, incitado pelas gentes, de braços abertos e de olhos revirados ao céu gritava,
Meo deos, meo deos !...
Ninguém sabia se era um grito ou uma súplica. As mães sustinham o leite nos seios, enquanto se persignavam e as mulheres faziam uma cruz no pão que levedava na masseira, enquanto murmuravam,
Ai nossa senhora, valha-me deus.
Ele babava-se, uma baba que vinha de dentro e afastava a gente para trás. A aba do casaco ou da gabardine que lhe tinham dado estava escura da baba e sarro. Tudo o que tinha era lhe dado. As calças desfeitas a meio da canela, a camisola suja de todas as gorduras do mundo, só o cheiro tinha sido conquistadas pelo suor dos caminhos e a incompreensão das gentes.
Corria as aldeias todas em redor e pelas contas do Ti João Martins demorava seis meses a voltar. Quer dizer, só aparecia lá duas vezes por ano, uma no outono e outra no final da primavera, como se fosse um cometa, com a sua linda cauda, diria a Bela! Nas outras estações calcorreava outros caminhos, outras aldeias, recolhia o que lhe davam e as pessoas agradeciam não ser como ele e não ter ninguém na família como ele.
Nas outras estações aparecia a Maria Tola. Assim, a aldeia tinha todas as estações o seu espetáculo, o seu divertimento, as risotas e a lembrança dos temores e desgraças.
Ai Jesus, valha me Deus!
As mães benziam-se, mas se não eram mães riam-se e desafiavam a Maria Tola,
Dança Maria! Então canta!
A Maria animada por fios e vontades invisíveis dançava e fazia esvoaçar as saias rotas e os pés descalços. E cantava numa voz esganiçada, uma oitava acima e ria-se ria-se…
De que te ris, Maria?
Alguém havia de trazer um bocado de pão, oferecer um caldo de farinha, um chouriço ou uma malga de vinho para o caminho. A Maria Tola também tinha uma saca e muitos trapos escuros como a vida que levava, que esvoaçavam quando dançava ou quando corria atrás da criançada que lhe chamava Maria Tola Maria Tola! Tola, Tola!
Ele ficava a olhar quando ela abria as pernas, puxava a saia com a mão para a frente e uma fonte, cascata, rego de água precipitava-se num ruído e no chão claro e seco regurgitavam as bolhas amarelas cheias de ar.
Tola? Quem não ficaria tola depois de ficar sem filhos e ver o marido morrer-lhe nos braços? Tola era a possibilidade de continuar a respirar sem respirar, a andar parada e dormir acordada. Corre Maria, corre Maria, acode aos filhos e ao marido… acode Maria. Bebe Maria. Corre Maria!
Às vezes ensaia uma gritaria a ralhar com Deus e o destino, que lhos tinha tirado. Atira com palavrões e demais palavras ríspidas que só terminavam quando ouvia,
Pronto Maria, vá acalma-te, já passou, já passou.
Mas baixinho ele ouvia-a dizer,
nunca passa, por mais que ande e grite nunca passa. Eu vejo-os a morrer á minha frente e o homem no colo a esvair-se, a revirar os olhos a pedir ajuda e eles mortos com a face branca e uns bugalhos brancos nos olhos e uma pontinha de sangue no canto da boca. Mortos. Não passa. Nem os gritos, nem as lágrimas e o choro. Não passa, mas eu aguento, isto é, grito para dentro e rio para fora e outras vezes, quando ninguém vê, faço ao contrário, grito para fora e nunca rio. Choro sempre esta mágoa que não me sai do corpo e me arrasta de caminho em caminho, de aldeia em aldeia, de grito em grito.
Eles não eram de lado nenhum. Passavam pela aldeia e só se demoravam enquanto queriam. No resto do tempo apanhavam sol, esqueciam o passado e corriam os caminhos, fios da serra, à espera de alguém que os libertasse da maldição. Eles nada tinham, apenas eram. Eles já não queriam ser libertos, eles já eram a maldição. Eram livres.
Quando passavam por ele, sorriam, mas ele tinha um medo que só passava quando ouvia,
O Tone do Vale já não anda aí, não o tenho visto! Então já foi embora! Coitado!
Também não a tenho visto, a Maria Tola! Coitada!
Livres, andar pelos caminhos sem destino e todos os dias ver o sol a nascer e a água a correr nos rios e riachos que haveriam de ver… sempre de olhos nos olhos. Afinal era possível…
Ao ler o que escreveu, imediatamente me recordei destas duas personagens que tão profundamente marcaram a minha infancia e emocionei-me ao recordar as palavras da minha avò, que, quando eu chegava a casa da escola, aterrorizada pelas perseguições da Maria tola(hoje sei que quem a perseguia eramos nós) me dizia comovida, que podia ser ela a andar na rua de pau na mão. Anos mais tarde encontrei esta senhora numa cama de hospital, já no fim da vida e nunca hei-de esquecer as suas mãos, brancas e esguias , perfeitas que pareciam não pertencer aquele corpo. Aprendi com minha avó que na vida nada é inálteravel, basta um pequeno percalço para que a nossa existência perfeita e bonitinha se transforme dramaticamente. Muito obrigada por me ter feito recordar! Até as lagrimas me vieram aos olhos quando li! Tania H.
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