quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A construção da personagem


A esposa do Dr. Renato, cada vez que precisava de roupa para o marido, procurava nos números XXL. Nas meias comprava os números 43 ou 44. Recusava-se contudo a comprar roupa interior e sapatos.
Ao telefone com a prima no Canadá, ela descrevia-o como tendo um rosto magro, mas fino, testa alta, olhos pretos, pelos brancos na barba e alto. As pessoas tendiam a vê-lo como frágil, mas com o tempo verificavam que se tinham enganado. Era voluntarioso, carinhoso e às vezes até um pouco ingénuo e infantil. Mas era dessa faceta, que os filhos adoravam, ela mais gostava, e que a tinham cativado.
Ele tinha uma memória de elefante, adorava desportos, gostava de ler e ver tv. Era estimado e apreciado na companhia de seguros onde trabalhava, sendo muitas vezes convidado para seminários, formações e festas da empresa.
Ela estava preocupada porque ultimamente ele tinha um olhar perdido, quase assustado. Algo o preocupava, mas não tinha maneira de saber. Sim, já lho tinha perguntado, mas ele dizia que ela andava a ver coisas. Sim, ia estar mais atenta, mas também sabia que, se ele se sentisse observado, iria redobrar esforços para se ocultar. Ela já tinha procurado nos bolsos do fato, nas gavetas dele. Até no telemóvel e computador, mas não encontrava nada de estranho.
Quando ela desligou o telefone lembrou-se que até tinha cheirado as camisas à procura de algum indício, algum cabelo ou perfume, mas nada.
Já tinha falado com a Esmeralda, que também já tinha reparado na alteração do comportamento do colega, mas sempre pensou que era algo passageiro e acabou por não falar disso a ninguém.
Os filhos ainda não tinham dito nada. Ainda não se tinham apercebido com certeza.
Ela estava preocupada com o marido e no cabeleireiro, enquanto lhe massajavam o couro cabeludo, deixou as ideias vogarem livremente. Podia ele traí-la? E se sim com quem? Que género de mulher o poderia seduzir? O que lhe prometia ele a ela? Ou ela a ele? O que diriam dela? O que fariam juntos?
Ela era uma loira luzidia e de curvas fartas. Olhos inquietos à procura de qualquer coisa, que nunca mais chegava. Ainda pensava que se acalmaria depois de ter os dois filhos, mas antes pelo contrário. Suspirava baixinho de modo a confundir-se com a respiração.
De repente, deu um salto na cadeira, o que obrigou a cabeleireira a pedir-lhe que se mantivesse quieta.
Ah! Ele tinha descoberto o segredo dela! Só podia ser! Como não tinha pensado nisso antes?
E uma aragem de suor estendeu-se-lhe pelo corpo todo. Podia ser orvalho, mas não era. Era um fogo frio, ou um gelo a arder, enquanto os músculos se retesavam na barriga das pernas e a falta de ar lhe comprimia o estômago. Ele tinha descoberto e ela burra.... não suspeitara de nada…
- Sente-se bem?- perguntou a cabeleireira.
- Sim, obrigada.
Saiu e nunca mais voltou.

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