quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

História tradicional de Natal

História tradicional de Natal


O sr. Lobo estava decidido! Já esperara tempo demais, tinha reprimido o que de mais profundo lhe ia na alma, sem coragem para libertar de vez os seus sentimentos.
Em boa verdade, nunca recebera indícios claros de que era correspondido. Ele tinha ficado embevecido, aquando das festas da Nossa Senhora da Agrela. Ela rodopiava na quermesse, tentando dar atenção a tudo e todos, afogueada de vermelho vivo na cara e olhos brilhantes como nunca vira. E aquele cabelo preto, meu deus! Aquelas ancas simétricas, e os peitos no lugar, como santas no altar! Bem e o sorriso dela? Deixava qualquer ateu com vontade de se confessar, quanto mais ele que era cristão!
Mas, a ele faltara-lhe sempre a coragem. A morte da mulher tinha-o deixado meio apalermado, reconhecia. Uns tempos sem querer ver ninguém, depois a partida dos 2 filhos para Lisboa também não ajudou nada. Tinham insistido com ele para ir, havia de lhe fazer bem, ver novas pessoas, novas casas, em vez de ficar ali a lembrar-se dela o dia inteiro. Mas não, não quis ir. Ali era o canto dele. O canto onde tinha voltado das suas viagens, onde construíra o seu ninho com ela. Agora ela partira e ele ficou só.
Com o tempo foi aprendendo, não a esquecer, porque isso ele não queria, mas a guardar as imagens deles, nos melhores momentos lá num cantinho do coração onde voltava sempre que lhe apetecia, ou tinha saudades. Uma vez deu consigo a falar sozinho: que dirá ela lá em cima? Por isso, não o surpreendeu o sonho que teve. Estava ele e a mulher numa festa e dançavam e rodopiavam, numa rusga que teimava em não parar de tocar. Por fim, ela diz-lhe que se vai embora e ele ficará melhor acompanhado que sozinho.
Mas que raio de sonho. Até parecia que ela sabia.
O tempo foi passando, mas aquelas festas da Nossa Senhora da Agrela nunca mais lhe saíram da cabeça.
Primeiro tinha-se desculpado com a doença prolongada do marido, depois silenciara-se condoído com o luto e a viuvez dela e não arranjou coragem para enfrentar o que as pessoas diriam na aldeia “ Olha pra que deu agora ao velho! Deu-lhe pra boa… já não tem dentes prá quele pedaço!” e outras coisas ainda piores que diriam, se se soubesse.
Limitara-se inicialmente a olhar de longe, dirigir-lhe uns bons dias mais prolongados, a oferecer-se para qualquer coisa que fizesse falta. Mas o certo certo, é que nunca arranjara forças e coragem, e mais grave, não sabia se algum dia seria capaz de o fazer.
Andava o sr. Lobo ensimesmado nestes pensamentos, que de dia para dia mais lhe cavalgavam o pensamento e estreitavam o coração, sem a mente lhe encontrar um plano, uma ação capaz de lhe pôr fim, quando inesperadamente a neta vem falar com ele.
-Bom dia, sr. Lobo!
- Olá Capuchinho. Que andas a fazer?
Ia perguntar pela avó, mas susteve-se a tempo, não fosse ela desconfiar.
- Olhe sr. Lobo, desculpe eu falar-lhe assim, estou com pressa e vou direita ao assunto. Na aldeia não se comenta outra coisa e como sabe toda a gente gosta muito da minha avó e do sr. Lobo. Todos sabem do seu amor por ela. Por isso, a minha avó pede-lhe que a vá visitar no sábado, à tarde, lá por volta das quatro horas. Depois do almoço, sai mais cedo e assim como quem não quer a coisa, pega na espingarda e sai como se fosse à caça e passa lá por casa. Olhe, como é natal, colha uns raminhos de azevinhos silvestres, de que ela gosta muito! Adeus sr. Lobo! Adeus, que vou com pressa!
Sentou-se o sr. Lobo a pensar. Era milagre! O que lhe quereria ela? Só podia querer falar do seu amor, que outra coisa poderia ser? Mas como ela tinha percebido? E toda a aldeia sabia? Como podia ser? Estes e outros pensamentos que lhe torturavam a alma, fizeram-lhe perder a noção do tempo. Nem ele nem eu sabemos bem quando foi a última vez que falou com a neta. Foi há muito… algum tempo!
Mas um dia parecendo ter recuperado a memória e boa disposição, bateu com a mão na cabeça e resolveu-se, ele não era homem para dizer que não. Arranjou coragem, pediu a espingarda ao vizinho para matar um melro que lhe andava na horta, benzeu-se duas vezes em frente da fotografia da morta, rodou a chave na fechadura, saiu e disse baixinho: Seja o que deus quiser!
E agora leitor, levo o homem diretamente a casa da avó, ou passeio-o pela floresta escutando o que lhe vai na alma? Como este é só um exercício de escrita criativa,
atiro com o homem, sem mais delongas, pelo caminho fora, direito a casa da avó que fica pra norte, indo por um atalho e assim ninguém o vê. O que diria às pessoas se o vissem, por aqueles lados, com a espingarda às costas e de raminho de azevinho na mão?
Não foi preciso dizer nada, pois ninguém o viu.
Leitor, estou hesitante. Não tenho um plano estabelecido e assim é mais difícil escrever, ter que decidir todas as ações a todo o momento, entre um intervalo, uma palavra, uma ideia. Bom, a história tem de estar no final, senão passa a conto, ou romance. Das duas uma, ou o homem e a avó se apaixonam e casam ou, como passou tanto tempo, a avó está na cama com outro e o sr. Lobo, por despeito, dá-lhes um tiro e mata um, ou mesmo os dois. Então prossigamos e veja lá se é aceitável este desfecho.
O nosso falso caçador, à medida que vislumbra, primeiro o telhado e depois a casa toda, sente o sangue a subir-lhe às faces, as mãos e as pernas trémulas e a garganta a tossicar. Passa a mão na coronha da espingarda a recuperar a confiança que lhe falta, abre brevemente a cancela do quintal e dá uma volta à casa, que está sem movimento. A porta está entreaberta, mas ele chama em voz alta, uma, duas, três vezes, pela avó.
Entra energicamente em casa, não vá ter acontecido alguma desgraça, sempre a chamar, dirige-se à sala e entra no quarto, que tem a porta entreaberta. Nada! Empurra ao de leve a porta da cozinha, que está fechada. Encosta-lhe o ombro, faz força e….
lá dentro toda a aldeia apinhada, cantava a uma só voz:
- Parabéns a você, nesta data querida…

Oeiras, Dez. 2011

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Maria Leiria
    Gostava de outro final: o Senhor Lobo e a Avozinha a dançarem juntos um "slow" , mão na mão. Gostava de um final romântico. Mereciam ambos. Ora invente lá um final mais feliz!

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