http://romanceiro.pt/#/version/660
http://romanceiro.pt/#/version/659
O romanço da Faustina presente no livro Manual de Ramil.
A Faustina. A minha mãe trazia a bacia com a roupa lavada, pró
sol, a cheirar a fresco e a sabão azul, sentava-se nos degraus de pedra, com
vista para Soajo e a serra do Gião e punha-se a coser. Eu entretinha-me a ver a
perícia com que enfiava a agulha, rematava a linha com o nó, enfiava o dedal no
dedo anelar e depois de virar a peça dum lado e do outro, a fazer os cálculos,
quanto tempo ia levar, se valia a pena o tempo que ia perder a recuperar a
peça. Dali a pouco:
- Vai buscar o meu banquinho
à cozinha.
Sempre achei graça àquele
banquinho de madeira com um coração recortado no assento, onde metia a mão,
suspendia-o e vinha atrás e mim, pendurado nas suas quatro patas. Parecia um
cãozinho que nunca dizia não.
-Mãe, cante aquela cantiga da
Faustina! – desafiava-a com ternura da minha pouca idade.
Ela sorria, abanava a
cabeça a convencer-se a si própria que tinha tempo e tranquilidade suficiente
para a cantar e dizia:
- Ora, ainda ontem ta
cantei!
- Só mais uma vez, mãe!
Ela hesitava, olhava os meus olhos
de súplica, dobrava mais um pano e entoava:
- O rei tinha três filhas e a
Faustina a mais bonita!
Depois desta toada, não era
preciso mais para me deixar levar na ondulação da sua voz e nas desventuras da
Faustina e do rei, seu pai.
- Passeava-se a Faustina pelo corredor acima, viola de oiro levava, Oh!
Que bem a tangia!
Era ali que começavam as
palavras e a música a ganhar forma na minha cabeça. As imagens da Faustina, de
cabelos soltos, ar airoso e sorridente, despreocupada com problemas de comida
ou de roupas, passavam em mim e eu recriava-as com as cores de Ramil. A
Faustina era uma princesa, com uma viola de ouro.
- E se ela bem a tangia, melhor romance fazia.
A cada passo que dava,
seu pai a acometia: Atreves-te
tu, Faustina,
uma noite a ser minha?
Na torre mais alta a prendeu que nem sol,
nem lua havia. Dão-lhe comida por uma malga e água por medida.
Via a Faustina a envelhecer,
sem poder ver o sol e a lua. Mas que castigo terrível. O pai devia ser muito
mau. Eu não compreendia porque o rei a castigava. Fazer isso a uma filha bonita
e princesa? E comia por uma malga? E água por medida, por ração? O rei era
muito mau. O meu pai nunca me faria isso. A voz da minha mãe não me deixava
muito tempo para mais considerações:
- Ao cabo de sete anos,
sete anos e um dia,
a torre se abriu.
Assomou-se
a uma janela, foi encontrar-se com a sua irmã. Deus te
salve, minha irmã, irmã da minha alma!
Por favor te peço,
que me dês um copo de
água. Água não te posso dar, sem o nosso pai me matar. Ó irmã amaldiçoada!
Esta irmã também devia ter
muito medo do pai. Nem um copo de água? E porquê irmã amaldiçoada? Eu tinha ali
tanta água para lhe dar, mas não lhe podia valer. Pobre Faustina!
- Seguiu minha mãe com Faustina em frente, mais triste
do que vinha. Encontrou a outra irmã, a outra irmã que tinha. Deus te salve,
minha irmã, irmã da minha alma!
Por favor te peço, que me dês um copo de água. Água não te posso dar, sem o nosso pai me matar,
ó
irmã amaldiçoada!
Outra irmã aterrorizada pelo
pai. Mas que tristeza. Assim não valia a pena serem princesas. Uma presa numa
torre sete anos e as outras cheias de medo que o pai as matasse...
- Seguiu Faustina em frente, mais triste do que vinha.
Encontrou seu pai,
seu pai que entristecia: Deus o salve meu pai,
Senhor da
minha alma.
O favor que eu vos peço, que me dê um copo de água. Correi
vassalos, correi, buscar um copo de água fina, matar a sede da Faustina,
que
esta noite há de ser minha!
Afinal o pai parece que se
arrependia no final e mandava trazer água para a Faustina. Arrependeu-se? Só
podia ser e devia pedir desculpa à filha.
Há de ser minha? Mas então ela não
era filha dele? Mãe, porque o pai prendeu a Faustina? Era mau?
Ela sorria e dizia que sim.
Era um rei muito mau.
Mas no final ele arrependeu-se, mãe?
Ela calava-se e não dizia
nada. Ficávamos os dois em silêncio. Eu a ter pena da Faustina, mas ela pensava
noutras coisas, que eu não sabia. Mas sabia que ela pensava noutras coisas da
história, mas eu não sabia o quê.
- Em que estás a pensar,
mãe?
- Em nada.
Era o sinal que não queria
conversar mais sobre o assunto. Acabava o desenho que tinha iniciado, com um
pauzinho no chão e ia-me embora. Aquela história era triste, nem eu sabia
porque gostava tanto de a ouvir. Deixava-me triste encostado a um muro que não
sabia saltar, uma montanha que me desafiava a descobrir o que havia do outro
lado.
Se aquele avião, que vai tão
alto, tão alto e mal se vê, caísse aqui, já podia ver como era feito e o que
trazia lá dentro. Havia de cair aqui, para eu ver. Coitadas das pessoas que
morreriam. Não tinhas pena? Tinha. Não tinha era pensado nas pessoas. Só queria
ver o avião mais de perto.