segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

MANUAL DE RAMIL

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O romanço da Faustina presente no livro Manual de Ramil.


A Faustina. A minha mãe trazia a bacia com a roupa lavada, pró sol, a cheirar a fresco e a sabão azul, sentava-se nos degraus de pedra, com vista para Soajo e a serra do Gião e punha-se a coser. Eu entretinha-me a ver a perícia com que enfiava a agulha, rematava a linha com o nó, enfiava o dedal no dedo anelar e depois de virar a peça dum lado e do outro, a fazer os cálculos, quanto tempo ia levar, se valia a pena o tempo que ia perder a recuperar a peça. Dali a pouco:
- Vai buscar o meu banquinho à cozinha.

Sempre achei graça àquele banquinho de madeira com um coração recortado no assento, onde metia a mão, suspendia-o e vinha atrás de mim, pendurado nas suas quatro patas. Parecia um cãozinho que nunca dizia não.
-Mãe, cante aquela cantiga da Faustina! – desafiava-a com ternura da minha pouca idade.
 Ela sorria, abanava a cabeça a convencer-se a si própria que tinha tempo e tranquilidade suficiente para a cantar e dizia:
- Ora, ainda ontem ta cantei!

- Só mais uma vez, mãe!

Ela hesitava, olhava os meus olhos de súplica, dobrava mais um pano e entoava:

- O rei tinha três filhas e a Faustina a mais bonita!

Depois desta toada, não era preciso mais para me deixar levar na ondulação da sua voz e nas desventuras da Faustina e do rei, seu pai.
- Passeava-se a Faustina pelo corredor acima, viola de oiro levava, Oh! Que bem a tangia!
Era ali que começavam as palavras e a música a ganhar forma na minha cabeça. As imagens da Faustina, de cabelos soltos, ar airoso e sorridente, despreocupada com problemas de comida ou de roupas, passavam em mim e eu recriava-as com as cores de Ramil. A Faustina era uma princesa, com uma viola de ouro.
- E se ela bem a tangia, melhor romance fazia.
A cada passo que dava,
seu pai a acometia: Atreves-te tu, Faustina,
 uma noite a ser minha?
Na torre mais alta a prendeu que nem sol, nem lua havia. Dão-lhe comida por uma malga e água por medida.
Via a Faustina a envelhecer, sem poder ver o sol e a lua. Mas que castigo terrível. O pai devia ser muito mau. Eu não compreendia porque o rei a castigava. Fazer isso a uma filha bonita e princesa? E comia por uma malga? E água por medida, por ração? O rei era muito mau. O meu pai nunca me faria isso. A voz da minha mãe não me deixava muito tempo para mais considerações:
- Ao cabo de sete anos, 
sete anos e um dia,
 a torre se abriu.
Assomou-se a uma janela, foi encontrar-se com a sua irmã. Deus te salve, minha irmã, irmã da minha alma!
Por favor te peço,
que me dês um copo de água. Água não te posso dar, sem o nosso pai me matar. Ó irmã amaldiçoada!
Esta irmã também devia ter muito medo do pai. Nem um copo de água? E porquê irmã amaldiçoada? Eu tinha ali tanta água para lhe dar, mas não lhe podia valer. Pobre Faustina!
Seguiu minha mãe com Faustina em frente, mais triste do que vinha. Encontrou a outra irmã, a outra irmã que tinha. Deus te salve, minha irmã, irmã da minha alma!
Por favor te peço, que me dês um copo de água. Água não te posso dar, sem o nosso pai me matar,
 ó irmã amaldiçoada!
Outra irmã aterrorizada pelo pai. Mas que tristeza. Assim não valia a pena serem princesas. Uma presa numa torre sete anos e as outras cheias de medo que o pai as matasse...
- Seguiu Faustina em frente, mais triste do que vinha. Encontrou seu pai,
seu pai que entristecia: Deus o salve meu pai,
Senhor da minha alma.
O favor que eu vos peço, que me dê um copo de água. Correi vassalos, correi, buscar um copo de água fina, matar a sede da Faustina,
que esta noite há de ser minha!
Afinal o pai parece que se arrependia no final e mandava trazer água para a Faustina. Arrependeu-se? Só podia ser e devia pedir desculpa à filha.
 Há de ser minha? Mas então ela não era filha dele? Mãe, porque o pai prendeu a Faustina? Era mau?
Ela sorria e dizia que sim. Era um rei muito mau.
 Mas no final ele arrependeu-se, mãe?

Ela calava-se e não dizia nada. Ficávamos os dois em silêncio. Eu a ter pena da Faustina, mas ela pensava noutras coisas, que eu não sabia. Mas sabia que ela pensava noutras coisas da história, mas eu não sabia o quê.

- Em que estás a pensar, mãe?

- Em nada.

Era o sinal que não queria conversar mais sobre o assunto. Acabava o desenho que tinha iniciado, com um pauzinho no chão e ia-me embora. Aquela história era triste, nem eu sabia porque gostava tanto de a ouvir. Deixava-me triste encostado a um muro que não sabia saltar, uma montanha que me desafiava a descobrir o que havia do outro lado.

Se aquele avião, que vai tão alto, tão alto e mal se vê, caísse aqui, já podia ver como era feito e o que trazia lá dentro. Havia de cair aqui, para eu ver. Coitadas das pessoas que morreriam. Não tinhas pena? Tinha. Não tinha era pensado nas pessoas. Só queria ver o avião mais de perto.



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