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O romanço da Faustina presente no livro Manual de Ramil.
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O romanço da Faustina presente no livro Manual de Ramil.
A Faustina. A minha mãe trazia a bacia com a roupa lavada, pró
sol, a cheirar a fresco e a sabão azul, sentava-se nos degraus de pedra, com
vista para Soajo e a serra do Gião e punha-se a coser. Eu entretinha-me a ver a
perícia com que enfiava a agulha, rematava a linha com o nó, enfiava o dedal no
dedo anelar e depois de virar a peça dum lado e do outro, a fazer os cálculos,
quanto tempo ia levar, se valia a pena o tempo que ia perder a recuperar a
peça. Dali a pouco:
- Vai buscar o meu banquinho
à cozinha.
Sempre achei graça àquele
banquinho de madeira com um coração recortado no assento, onde metia a mão,
suspendia-o e vinha atrás de mim, pendurado nas suas quatro patas. Parecia um
cãozinho que nunca dizia não.
-Mãe, cante aquela cantiga da
Faustina! – desafiava-a com ternura da minha pouca idade.
Ela sorria, abanava a
cabeça a convencer-se a si própria que tinha tempo e tranquilidade suficiente
para a cantar e dizia:
- Ora, ainda ontem ta
cantei!
- Só mais uma vez, mãe!
Ela hesitava, olhava os meus olhos
de súplica, dobrava mais um pano e entoava:
- O rei tinha três filhas e a
Faustina a mais bonita!
Depois desta toada, não era
preciso mais para me deixar levar na ondulação da sua voz e nas desventuras da
Faustina e do rei, seu pai.
- Passeava-se a Faustina pelo corredor acima, viola de oiro levava, Oh!
Que bem a tangia!
Era ali que começavam as
palavras e a música a ganhar forma na minha cabeça. As imagens da Faustina, de
cabelos soltos, ar airoso e sorridente, despreocupada com problemas de comida
ou de roupas, passavam em mim e eu recriava-as com as cores de Ramil. A
Faustina era uma princesa, com uma viola de ouro.
- E se ela bem a tangia, melhor romance fazia.
A cada passo que dava,
seu pai a acometia: Atreves-te
tu, Faustina,
uma noite a ser minha?
Na torre mais alta a prendeu que nem sol,
nem lua havia. Dão-lhe comida por uma malga e água por medida.
Via a Faustina a envelhecer,
sem poder ver o sol e a lua. Mas que castigo terrível. O pai devia ser muito
mau. Eu não compreendia porque o rei a castigava. Fazer isso a uma filha bonita
e princesa? E comia por uma malga? E água por medida, por ração? O rei era
muito mau. O meu pai nunca me faria isso. A voz da minha mãe não me deixava
muito tempo para mais considerações:
- Ao cabo de sete anos,
sete anos e um dia,
a torre se abriu.
Assomou-se
a uma janela, foi encontrar-se com a sua irmã. Deus te
salve, minha irmã, irmã da minha alma!
Por favor te peço,
que me dês um copo de
água. Água não te posso dar, sem o nosso pai me matar. Ó irmã amaldiçoada!
Esta irmã também devia ter
muito medo do pai. Nem um copo de água? E porquê irmã amaldiçoada? Eu tinha ali
tanta água para lhe dar, mas não lhe podia valer. Pobre Faustina!
Seguiu minha mãe com Faustina em frente, mais triste
do que vinha. Encontrou a outra irmã, a outra irmã que tinha. Deus te salve,
minha irmã, irmã da minha alma!
Por favor te peço, que me dês um copo de água. Água não te posso dar, sem o nosso pai me matar,
ó
irmã amaldiçoada!
Outra irmã aterrorizada pelo
pai. Mas que tristeza. Assim não valia a pena serem princesas. Uma presa numa
torre sete anos e as outras cheias de medo que o pai as matasse...
- Seguiu Faustina em frente, mais triste do que vinha.
Encontrou seu pai,
seu pai que entristecia: Deus o salve meu pai,
Senhor da
minha alma.
O favor que eu vos peço, que me dê um copo de água. Correi
vassalos, correi, buscar um copo de água fina, matar a sede da Faustina,
que
esta noite há de ser minha!
Afinal o pai parece que se
arrependia no final e mandava trazer água para a Faustina. Arrependeu-se? Só
podia ser e devia pedir desculpa à filha.
Há de ser minha? Mas então ela não
era filha dele? Mãe, porque o pai prendeu a Faustina? Era mau?
Ela sorria e dizia que sim.
Era um rei muito mau.
Mas no final ele arrependeu-se, mãe?
Ela calava-se e não dizia
nada. Ficávamos os dois em silêncio. Eu a ter pena da Faustina, mas ela pensava
noutras coisas, que eu não sabia. Mas sabia que ela pensava noutras coisas da
história, mas eu não sabia o quê.
- Em que estás a pensar,
mãe?
- Em nada.
Era o sinal que não queria
conversar mais sobre o assunto. Acabava o desenho que tinha iniciado, com um
pauzinho no chão e ia-me embora. Aquela história era triste, nem eu sabia
porque gostava tanto de a ouvir. Deixava-me triste encostado a um muro que não
sabia saltar, uma montanha que me desafiava a descobrir o que havia do outro
lado.
Se aquele avião, que vai tão
alto, tão alto e mal se vê, caísse aqui, já podia ver como era feito e o que
trazia lá dentro. Havia de cair aqui, para eu ver. Coitadas das pessoas que
morreriam. Não tinhas pena? Tinha. Não tinha era pensado nas pessoas. Só queria
ver o avião mais de perto.
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