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segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Manuel Pereira


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Manuel Pereira estava há 12 meses na Flandres. A vida na front, nas toupeiras ou nas trinchas,  era um imprevisto diário, ou bombas, tiros, frio e terra ou a mesma coisa mas por ordem inversa. Era de ir aos arames!
Feito prisioneiro numa emboscada pelos alemães, na Avenida Afonso Costa, tinha fugido e ao fim de vários dias a deambular pelas veredas e margens do Lys, foi parar ao Batalhão de Infantaria 23, onde aguardava ser recambiado para a 4ª Brigada, Batalhão Inf. n.º 8, a que pertencia.
Os boches não eram como os lãzudos, ou como os bifes, eram pontuais. Disparavam a mesma hora e paravam o ataque na hora certa. Intercalavam com  bombas de gás e tiros esporádicos.
Dormitava-se quando se podia e podia-se muito quando se dormia.
Ao seu lado esquerdo dormia João Augusto Ferreira de Almeida, solteiro, filho de João Ferreira de Almeida e de Angelina Augusta, natural da Foz do Douro. Para trás tinha deixado um emprego na casa de um cidadão alemão, que vivia na zona da Foz do Douro.
Ao seu lado direito dormitava António Rei. Ambos tinham  embarcado para a Flandres, a 16 de Março de 1917  e chegado a Brest, França, a 21 de Março de 1917.
Era nas poucas horas de pausa, cedidas pelo alferes e pelos alemães,  que cada um discorria sobre a vida e a saudade das suas terras.

 Na recoca, Ferreira de Almeida falava do pai e da mãe o suficiente para se perceber que o pai tinha uma ou duas faltas, isto é, dependia dos dias, mas na generalidade, era meio doido.
Naquela noite Manuel Pereira pensava no vale do Vez, enquanto observava no céu escuro uma salsicha. Fechou os olhos, uma mão pousada no cantil, a outra na Luísa e deixou a alma voar sobre os campos verdes da sua terra até mergulhar nas águas ternas e cintilantes do rio Vez e...nos olhos negros de Gracinda!
Tinha saudades de casa.
Uma sardinha assada e uma malguinha de tinto com uma fatia de pão era o que ele mais desejava e, só depois, ver a família e namorada. Era uma fraqueza que lhe subia do estômago ao coração, mas faltava-lhe a coragem para o reconhecer. Para isso teria de desertar e essa era uma fronteira ainda mais perigosa que a guerra!
Fechava os olhos e deixava-se estar á espera do próximo ataque. Eu vou-me safar, ai isso é que vou, rezava baixinho, invocava a Srªa da Peneda, S. Bentinho, de mistura com a imagem das festas e foguetes.
Ao seu lado, Ferreira de Almeida contava que estava cheio daquela maldita guerra e apetecia-lhe fugir. Fosse para onde fosse, mas tinha de fugir. Queria saber o caminho para os boches, até já tinha oferecido dinheiro a um camarada para que lhe fornecesse essa informação. Apontava para dois mapas, dobrados no bolso, e dizia que ia mostrar aos alemães as posições portuguesas. Deste modo, eles iriam tratá-lo bem. Acolhê-lo-iam e quem sabe lhe dessem emprego lá atrás das linhas. Já tinha trabalhado com um alemão no Porto e dava-se bem. Eram ambos exigentes: o alemão mandava e ele cumpria, sem precisar de pensar muito. Tudo normal. A pena de sessenta dias de prisão a que fora condenado é que ele não ia cumprir. Tivessem juízo. 60 dias a um soldado que sempre cumprira as ordens e apenas naquele dia tinha cometido um pequeno deslize? Nunca! O chauffeur 502 tinha-se ausentado  sem autorização, por 24 horas, quando estava colocado na secção automóvel, encarregue do transporte de água para as tropas do CEP.
A pena tinha sido a incorporação na 1.ª Companhia do Regimento de Infantaria 23, colocada na linha da frente e em risco de ataques do inimigo. Era igual a uma condenação à morte. Não, ele não queria morrer e muito menos ali, de barriga esventrada e as tripas cheias de moscas, morto por um boche qualquer! Ele tinha um plano diferente...

 Manuel Pereira nem queria acreditar. O homem estava a alucinar. Estava doido. Devia ser o efeito dos gases e daquela maldita guerra. Mas mesmo assim não se mexeu, deixou-se ficar a ouvir o companheiro ex-chaufer, no trilho entre a inquietação e o cansaço, o dever e a deserção.

Soube no dia seguinte, a 30 de Julho, que António Rei tinha denunciado o colega, ao capitão Mousinho de Albuquerque, mas manteve-se calado. Fingiu não saber de nada. Estava de passagem à espera do seu pelotão e de passagem haveria de continuar, até chegar às margens do seu querido Vez.
 O tempo passara mais lentamente que desejava. Foi com espanto que soube da sentença: o Ferreira de Almeida foi condenado à morte, por traição à pátria.
Não queria acreditar. Então não tinham visto que aquilo era um desabafo de quem se sente perdido e não sabe porque está ali, naquela guerra, maior que qualquer outra injustiça!
Ele também não sabia muito bem e nem por isso seria justo ser fuzilado.

O pelotão de fuzilamento, formado por quatro soldados, quatro cabos e quatro sargentos, fora incumbido, naquela madrugada de 16 de Setembro de 1917, de cumprir a sentença proferida dias antes pelo Tribunal de Guerra. Todos eram do Batalhão de Infantaria nº 14, ao qual João de Almeida pertencera antes de ir para a unidade de automóveis, e, convocados de véspera, tinham sido escolhidos entre os menos impressionáveis e recebido conselhos sobre a forma de proceder.
Às 6,30 horas da manhã o capitão vem ter com Manuel Pereira e diz-lhe, Prepara-te. Falta um soldado para o pelotão. Conto contigo. O que tens a fazer é seguir os outros e fazeres o que eles fazem. Estás pronto? Vamos embora!
Manuel Pereira sabia que se queria voltar a Pugido não podia contestar as ordens que lhe davam.
Faltavam cerca de 15 minutos para as oito da manhã. Por isso, os lábios mexeram-se num arraite imperceptível. 

Manuel Pereira reconhece Ferreira de Almeida. Este enverga o fardamento de chauffeur, dólman e calção à chantilly. Acompanha-o um capelão militar. Uma espécie de terror no seu olhar triste, espalha uma angústia pungente em seu redor.
As armas estão apontadas e Manuel Pereira treme pela primeira vez na sua vida. A vista fica-lhe turva e na cabeça tocam os sinos dobrados da torre de Gondoriz, de S. Tomé, da Lapa e do Espírito Santo. Todos duma vez só.
Que vais fazer, Manuel Pereira? Que vais fazer tu? Colaboras nesta desgraça ou manténs-te silencioso e ficas impune perante a tua alma? S. Bento e Nossa Senhora da Guia me ajudem, que isto não é guerra nenhuma, isto é mas é o inferno! Agora já é muito tarde para o cavanço!

Das doze armas que compunham o pelotão de execução, apenas onze dispararam. Apenas se ouviriam onze balázios, se alguém se desse ao trabalho de os contar. Se alguém o fez também o não contou a ninguém.
Na cabeça de Manuel Pereira ficou registado uma salva contínua sem parar, tempo infinito, num cemitério de guerra, próximo do lugar do suplício, do lado de lá da Estrada de Bacquerot, num campo de cultura, cercado de arame farpado, vendo descer à cova o cadáver sangrento daquele que a justiça condenara a morrer sob a infamante acusação de traição à Pátria.
Onze tiros num peito jovem e com desejo de fugir da insuportável realidade.
Ouvira comentar que fora o primeiro (e único, dizemos nós) fuzilamento consumado entre as tropas portuguesas, em França. Mesmo à noite, ainda os tiros ecoavam na sua cabeça, sem um grito de condenado. Apenas dizia baixinho para si próprio: o homem morre, para afirmar o poder absoluto de uns tantos, sobre a vida de cada um. Para servir de exemplo e vivermos assustados. Obedecer e morrer como carneiros! Maldita vida esta! O que acontece aos cachapins e aos palmípedes? E aos básicos? Nada. O que eles precisavam era dum bom porco!

Manuel Rodas

Vocabulário e termos utilizados pelos soldados portugueses, na Flandres na I Grande Guerra!

"Front" (linha da frente), 
"Ir aos arames" (ir de encontro ao arame farpado), 
"Arraite" (do inglês all rigth), 
"Avenida Afonso Costa" (terra de ninguém), 
"Balázio"(tiro de pistola ou metralhadora) 
"Bife" (soldado inglês), 
"Boche" (soldado alemão, derivante do francês caboche), 
"Cachapin" (oficial ou soldados que conseguiram ser transferidos para a retaguarda, ou que tendo ordem de ir para as trincheiras nunca lá chegaram), 
"Cavanço" (fuga para a retaguarda), 
"Lãzudo" (soldado português),  
"Recoca" (serviços de apoio na primeira linha, cozinheiros, tratadores de gado, condutores, etc. longe do parapeito), 
"Toupeira""Trincha" (soldado das trincheiras), 
"Porco" (projéctil de morteiro pesado), 
"Salchichas" (balões de observação ou drachens),
 "Luísa" (metralhadora inglesa Lewis), 
"Básicos" (oficiais da base), 
"Palmípedes" (oficiais do Estado – Maior que anda de carro e dorme debaixo de telha), entre muitos mais que ficaram. 


quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O medo

Eu era soldado e sentia-me só em Lisboa, se é possível estar sozinho em Lisboa.
Uma fantasia antiga aliciava-me para que fosse, agarrava-se a mim, dizia-me que não havia razão para tanto receio.
Iria ver como estava enganado.
Sorria descaradamente, deixando escorrer a magia da volúpia.
Ainda havia de agradecer.
Bajulava-me.
Um soldado devia ser generoso e audaz.
Para as grandes decisões bastava, a maioria das vezes, uma pequena anuência e outras coisas assim, para me convencer.
E despia-me de toda e qualquer compaixão. Verdadeiramente eu não queria ir, mas não tive coragem de reconhecer o meu medo. Também não queria desiludi-la.
Muito tenso e disfarçando o nervosismo, aceitei subir os três degraus da plataforma e sentar-me numa cadeira livre. Altifalantes difundiam uma explosão de ruídos e música que perturbavam e não me deixavam pensar serenamente.
O que se passou a seguir foram subidas, acompanhadas por descidas abruptas ao interior de mim mesmo, a esse espaço ascentral onde a civilização foi arrumando todos os horrores acumulados por séculos e séculos de pavor, sobrevivência e medo.
Vi os grande tigres, dentes de sabre, a devorarem a aldeia, vi as inundações, tempestades e relâmpagos a consumirem o universo, a fome, a peste e a guerra em danças macabras, a traição nos olhos dos filhos e pais a devorarem crianças com esgares de fome e loucura.
Vi o chão a levantar-se, emergindo dele cobras imensas e monstros mais horrendos e inimagináveis. Das nuvens caíam salpicos de sangue e corpos putrefactos, a desmembrarem-se. Era Babel que caía mil vezes, Sodoma e Gomorra que se destruíam outras mil, dentro de mim.
À minha volta, a carne e as almas atapetavam o pensamento, as bombas enlouqueciam de raiva, enquanto eu era atirado ao ar, folha de mortalha enrolando todo o sofrimento, angustia e desgraça projetadas pelos carris num movimento de eterna calamidade.
O cheiro a enxofre e ovos podres entupia as narinas e acidulava as meninges, provocando vómitos ininterruptos e a alma libertava-se do corpo, em convulsões de desânimo e dor.
O calor das labaredas e explosões encrespava a pele e encarapinhava os cabelos. Até as unhas gelatinavam e as botas fumegavam um ar tóxico e mordente.
Não sei calcular quanto tempo demorou esta viagem. Podiam ser séculos, anos ou apenas uns minutos.
Quando por fim acabou, olhei em volta à procura dela, mas tinha desaparecido nos corredores e subterfúgios mais densos da minha consciência. Atordoado, levantei-me, bati os pés no chão e senti-me vivo, de mãos dadas com o universo, sem fugir de mim, de regresso à origem, onde me tinha inventado.
Afinal, a viagem apenas começara.

Manuel Rodas

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Cristo Português



Cristo Português


Manuel da Silva estava há oito meses na trincheira da Flandres, que ficava entre as localidades de La Couture e Neuve-Chapelle. A vida nas trincheiras era dura e aguardava há muito a sua substituição, bem como a de todos os seus camaradas, que como ele ali tentavam enganar a sorte e permanecer vivos para regressarem a suas casas.
As escaramuças com a artilharia alemã eram frequentes e os bombardeamentos com gás, o pão nosso de cada dia. Nem sempre podiam ripostar por falta de munições e de entusiasmo. Deixá-los lá disparar. 
 Por falar em pão nosso de cada dia, este resumia-se a umas conservas inglesas, frias e mal sabidas e um pão escuro como terra. Que saudades da boroa dos Arcos, com côdeas castanhas, como os teus olhos Maria e branca, branca como as tuas coxas, meu amor.
Manuel da Silva era um soldado prático. Deixara a mulher em casa dos pais, não fosse o diabo tecê-las. Ali estaria mais segura para quando ele regressasse. Quanto ao resto, olho fino e pé ligeiro. Ainda pensara fugir à tropa, ir até Vigo e dali partir para Cuba, rumo aos Estados Unidos. Mas o amor atraiçoara-o. Acabou casado e a marchar para Braga, Tancos e finalmente Brest e Flandres, na guerra. 
Quando pensava nela respirava fundo, para que a saudade o não abafasse de vez. Acreditava no seu pelotão e no alferes. Dali para cima só em Deus  e naquele Cristo na planície. Todos os dias o olhava desde a sua trincheira cavada na terra e se interrogava quem teriam sido os franceses, que o teriam colocado lá, mesmo no meio, entre ingleses, portugueses e alemães.
Interrogava-se porque ainda ali permanecia, mesmo no cruzamento dos fogos de artilharia e infantaria. Apesar de alguns estragos ele lá continuava dia e noite, a clamar por paz, aos homens surdos e cegos à sua presença. Era apenas uma estátua ou teria vida e seria mesmo sagrada? Admirou-se consigo próprio porque nunca fora dado a essas meditações. Acreditava em Deus e no pároco da sua aldeia e...pronto. O resto do tempo era para cuidar da vida e sonhar com a sua Maria, que lá longe o aguardava e a quem tinha prometido voltar. Eu volto, meu amor, eu volto.
Trazia consigo esta dúvida que dia a dia mais o apoquentava, resistia o Cristo da planície às balas, ou tinha tido sorte, apenas? Ou era um exemplo de que ele também poderia resistir: tal como eu, também tu resistirás! 
Tudo isto lhe parecia um pouco confuso e resolveu não partilhar esta dúvida com ninguém. Manter-se-ia atento e logo veria o resto. Ilusão, sorte ou crença e fé?
 Na noite de 7 de Abril de 1918, o seu posto tinha cinco foguetes luminosos (very lights), o que lhe pareceu pouco para a eventualidade de serem atacados numa noite quase sem visibilidade. Pediram então mais very lights ao comando. O pedido foi negado. Que se remediassem como pudessem, responderam. Resignado, manteve-se em vigia. Até que chegaram as quatro horas da madrugada do dia 8 de abril.
Manuel da Silva, soldado crente em Deus e duvidoso daquele Cristo das Trincheiras, aproveitou a luz dum very light e disse para si próprio, É hoje! 
Fez pontaria com a espingarda, e a cruz aparecia mesmo no meio da mira. Disparou duas vezes sobre o Cristo inerte na sua sombra deserta e fria.  Tinha a certeza que lhe tinha acertado, mas a cruz lá permanecia, ensombrada pelo nevoeiro e a metralha, perante a incredibilidade e espanto do atirador, de mãos trémulas, saiam-lhe roncos e soluços do peito: Perdoai-me Senhor, perdoai-me! - E soluçava compulsivamente.
Não teve muito tempo para se arrepender, porque sobre aquela planície, caiu uma tempestade de fogo de artilharia, durante horas a fio, que a metralhou, a incendiou e a revolveu. Era a ofensiva da Primavera de 1918 do exército alemão. 
A povoação de Neuve-Chapelle quase desapareceu do mapa, de tão transformada em escombros. A área ficou juncada de cadáveres e entre estes jaziam 7.500 portugueses da 2ª Divisão do CEP, mortos ou agonizantes.
No final da luta apenas o Cristo se mantinha de pé, mas também mutilado. A batalha decepou-lhe as pernas, o braço direito e uma bala varou-lhe o peito. Mas, no meio do caos, e antes de recuarem, para se reagruparem e regressarem às linhas aliadas, Manuel da Silva e mais camaradas que a tudo tinham assistido, correram e trouxeram às costas aquele Cristo ferido e magoado e colocaram-no em local seguro onde pudesse ser novamente venerado.
Com olhar recriminatório pela ousadia e pesaroso pelo número de baixas, o alferes lançou um ultimo olhar aos quatro e sabe-se lá onde foi ele encontrar uma réstia de esperança que lhe abraçou o rosto num único sorriso breve e pesaroso.
Foi a olhar para aquele Cristo, e ao ver o sorriso do seu alferes, que Manuel da Silva ficou com a certeza que regressaria à sua terra, lá longe nas margens verdes e luminosas do rio Vez!

Em 1958 o Governo Português mostrou o desejo de possuir aquele Cristo mutilado ao Governo Francês. Tornara-se um símbolo da Fé e do Patriotismo nacional e passou a ser conhecido como o "Cristo das Trincheiras". A imagem chegou a Lisboa de avião, a 4 de Abril de 1958, uma Sexta-feira Santa. Ficou em exposição e veneração na capela do edifício da Escola do Exército até 8 de Abril, quando foi conduzida para o Mosteiro da Batalha e colocada, a 9 de Abril à cabeceira do túmulo do Soldado Desconhecido, na sala do Capítulo.


sexta-feira, 30 de março de 2018

MEDO






Eu era soldado e sentia-me só em Lisboa, se é possível estar sozinho em Lisboa. 
Uma fantasia antiga aliciava-me para que fosse, agarrava-se a mim, dizia-me que não havia razão para tanto receio. Iria ver como estava enganado. Sorria descaradamente, deixando escorrer a magia da volúpia. Ainda havia de agradecer. Bajulava-me. Um soldado devia ser generoso e audaz. Para as grandes decisões bastava, a maioria das vezes, uma pequena anuência e outras coisas assim, para me convencer. E despia-me de toda e qualquer compaixão. Verdadeiramente eu não queria ir, mas não tive coragem de reconhecer o meu medo. Também não queria desiludi-la.
Muito tenso e disfarçando o nervosismo aceitei subir os três degraus da plataforma e sentar-me numa cadeira livre. Altifalantes difundiam uma explosão de ruídos e música que não me deixavam pensar serenamente.
O que se passou a seguir foram subidas, acompanhadas por descidas abruptas ao interior de mim mesmo, a esse espaço ascentral onde a civilização foi arrumando todos os horrores acumulados por séculos e séculos de pavor, sobrevivência e medo.
Vi os grande tigres, dentes de sabre, a devorarem a aldeia, vi as inundações, tempestades e relâmpagos a consumirem o universo, a fome, a peste e a guerra em danças macabras, a traição nos olhos dos filhos e pais a devorarem crianças com esgares de fome e loucura. Vi o chão a levantar-se, emergindo dele as cobras imensas e monstros mais horrendos. Das nuvens caíam salpicos de sangue e corpos a desmembrarem-se. Era Babel que caía mil vezes, Sodoma e Gomorra que se destruíam outras mil, dentro de mim. 
À minha volta, os corpos atapetavam o pensamento, as bombas enlouqueciam de raiva, enquanto eu era atirado ao ar, folha de mortalha enrolando todo o sofrimento, angustia e desgraça projetadas pelos carris num movimento de eterna calamidade. O cheiro a enxofre e ovos podres entupia as narinas e acidulava as meninges, provocando vómitos ininterruptos e a alma libertava-se do corpo, em convulsões de desânimo e dor. 
O calor das labaredas e explosões encrespava a pele e encarapinhava os cabelos. Até as unhas gelatinavam e as botas fumegavam um ar tóxico e mordente.
Não sei calcular quanto tempo demorou esta viagem. Podiam ser séculos, anos ou apenas uns minutos. 
Quando por fim acabou, olhei em volta à procura dela, mas tinha desaparecido nos corredores e subterfúgios mais densos da minha consciência. Atordoado, levantei-me, bati os pés no chão e senti-me vivo, de mãos dadas com o universo, sem fugir de mim, de regresso à origem, onde me tinha inventado. 
Afinal, a viagem apenas começara. 
Manuel Rodas

sexta-feira, 9 de março de 2018

Ser cego


Foto Manuel Rodas

Ser cego tem as suas vantagens. 

Não posso ver as mentiras nas caras dos outros, mas pressinto-as através da entoação das vozes, da sequencialização e coerência das ideias, das suas insistentes repetições e dos seus silêncios, pensando que sou surdo.
Com ela era diferente. Desde o princípio que o seu perfume, e a sua voz entoava melodias nos meus sentidos e descia em espirais de frenesim amoroso, esbatendo-se algures numa penumbra fina e leve da minha alma. Algures entre mim e o meu desejo!
Ela tinha esse poder sobre mim que se manifestava através da sua voz. Arrepiava-me. O resto já sabem da história da Catedral e vou passar à frente pois não quero que sejam indulgentes comigo. *
Sim, eu tinha ficado viúvo, afastamo-nos e ela mandava-me as cassetes com a sua voz. Quando recebia as cassetes, ouvia-as longamente e no meu gravador tinha um botão que podia acelerar ou diminuir a velocidade da fita. Assim nos dias mais calmos procurava uma rotação na sua gravação e deixava-me ir pelos céus da fantasia e morbidez. Às vezes acelerava a sua voz confundido os agudos com os graves. Desencadeavam-se em mim as emoções mais dispares e contraditórias, era o apocalipse. Só despertava dele com um copo de whisky e silêncio!
Combinar o fim de semana em casa dela, era o cumprimento dum desejo antigo. Ia conhecer o duplo que tinha a sorte de ouvir essa voz todos os dias com entoações que eu não suspeitava, mas pressentia.
Ele sentiu a minha hostilidade durante o jantar, mas foi ficando amigável e a conversa parecia aproximar-nos. Pensei cegamente se lutava por ela ou me rendia aquela amizade para sempre. Ele era um tipo decente, inseguro, à procura de confiança. Ela seria mais feliz comigo do que com o marido? Depois ela adormeceu  e quando fiquei só com ele decidi ser francamente cego e disse-lhe: Amo a tua mulher!

Agora vivemos os três felizes. O médico tinha-me proposto uma operação com algumas garantias de recuperação da vista, mas pensando bem, prefiro continuar assim, felizmente cego ou cegamente feliz? 
Sonoramente arrebatado, com um lugar nesta orquestra!

MRodas


 *

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Uma história de guerra em 500 palavras



Maria do Carmo

A minha avó sabia como ninguém, como eu gostava das histórias trágicas.
- Conte aquela da guerra, avó!
Ela começava sempre assim:
Naquela aldeia havia dois rapazes que gostavam muito da Maria do Carmo, o Manuel e o José. Ela gostava dos dois e não se decidia a casar, até que uma noite, no regresso da romaria, quando os sonhos são mais bonitos e as estrelas se deixam tocar com os lábios, o Manuel, para a consolar disse-lhe: Não faz mal, eu caso contigo.
Quando se soube que eles iam casar, o José nunca mais foi o mesmo. Triste, magro e desinteressado da vida.
Uns dias antes do casamento, o Manuel foi convocado para o serviço militar. Ora, foi uma tristeza geral. Passado algum tempo, a Maria do Carmo recebeu uma carta dum colega a dizer que o marido tinha desaparecido na batalha de La Lys. Nunca mais recebeu carta nenhuma. À medida que o tempo ia passando sem notícias do Manuel, melhoravam os dois:  ela, porque julgando o marido morto, arregaçou as mangas e se fez à vida novamente, e o José, porque podia finalmente concretizar o seu amor. Toda aldeia concordava e incitava os dois a que se unissem e fossem felizes.  Assim fizeram.
Corria a vida muito bem aos dois até que passados três anos, uma carta anunciava o regresso do Manuel. Que o fosse esperar ao comboio a Braga.
Depois de aconselhada por toda a aldeia e pelo padre, a Maria do Carmo foi a Braga. Recebeu o marido com preocupação e, sentados no muro em volta da estação, contou-lhe tudo o que se tinha passado e agora não sabia como resolver  a situação. Choraram os dois abraçados. Caiu-lhe ele dos braços, escorregou para o chão, estava morto. Chamada a polícia e os bombeiros levaram o corpo para o Quartel de Braga, apurou-se que tinha sido do coração a causa da morte, e voltou ela para casa, muito desolada e triste, mas também esperançada que deste modo poderia continuar a sua vida com José. Parece que Deus tinha resolvido as coisas, com muita mágoa, mas enfim, poderia ainda acabar bem esta história.
Quando a Maria do Carmo chega a casa, julgando que o marido estava nos campos, mete  a chave na porta e vai ao seu quarto para mudar de roupa e o que vê ela deitado na sua cama? O José, a escorrer sangue ainda quente e com uma pistola na mão. 
Ela cheia de dor, em cima de dor, rasga a blusa, pega na pistola ainda fumegante e aponta-a ao peito.
-  Espere, avó, espere aí... só mais um bocadinho, que eu volto já!
Eu corria, corria pelos caminhos a combater inimigos imaginários e a adivinhar o que se passaria a seguir.
- Conte aquela da guerra, avó!
- Logo, agora não!
O tempo correu muito depressa, a avó partiu e ainda hoje não sei o que fez a Maria do Carmo com a pistola e com a sua vida!
Maldita guerra!


MRodas