quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O medo

Eu era soldado e sentia-me só em Lisboa, se é possível estar sozinho em Lisboa.
Uma fantasia antiga aliciava-me para que fosse, agarrava-se a mim, dizia-me que não havia razão para tanto receio.
Iria ver como estava enganado.
Sorria descaradamente, deixando escorrer a magia da volúpia.
Ainda havia de agradecer.
Bajulava-me.
Um soldado devia ser generoso e audaz.
Para as grandes decisões bastava, a maioria das vezes, uma pequena anuência e outras coisas assim, para me convencer.
E despia-me de toda e qualquer compaixão. Verdadeiramente eu não queria ir, mas não tive coragem de reconhecer o meu medo. Também não queria desiludi-la.
Muito tenso e disfarçando o nervosismo, aceitei subir os três degraus da plataforma e sentar-me numa cadeira livre. Altifalantes difundiam uma explosão de ruídos e música que perturbavam e não me deixavam pensar serenamente.
O que se passou a seguir foram subidas, acompanhadas por descidas abruptas ao interior de mim mesmo, a esse espaço ascentral onde a civilização foi arrumando todos os horrores acumulados por séculos e séculos de pavor, sobrevivência e medo.
Vi os grande tigres, dentes de sabre, a devorarem a aldeia, vi as inundações, tempestades e relâmpagos a consumirem o universo, a fome, a peste e a guerra em danças macabras, a traição nos olhos dos filhos e pais a devorarem crianças com esgares de fome e loucura.
Vi o chão a levantar-se, emergindo dele cobras imensas e monstros mais horrendos e inimagináveis. Das nuvens caíam salpicos de sangue e corpos putrefactos, a desmembrarem-se. Era Babel que caía mil vezes, Sodoma e Gomorra que se destruíam outras mil, dentro de mim.
À minha volta, a carne e as almas atapetavam o pensamento, as bombas enlouqueciam de raiva, enquanto eu era atirado ao ar, folha de mortalha enrolando todo o sofrimento, angustia e desgraça projetadas pelos carris num movimento de eterna calamidade.
O cheiro a enxofre e ovos podres entupia as narinas e acidulava as meninges, provocando vómitos ininterruptos e a alma libertava-se do corpo, em convulsões de desânimo e dor.
O calor das labaredas e explosões encrespava a pele e encarapinhava os cabelos. Até as unhas gelatinavam e as botas fumegavam um ar tóxico e mordente.
Não sei calcular quanto tempo demorou esta viagem. Podiam ser séculos, anos ou apenas uns minutos.
Quando por fim acabou, olhei em volta à procura dela, mas tinha desaparecido nos corredores e subterfúgios mais densos da minha consciência. Atordoado, levantei-me, bati os pés no chão e senti-me vivo, de mãos dadas com o universo, sem fugir de mim, de regresso à origem, onde me tinha inventado.
Afinal, a viagem apenas começara.

Manuel Rodas

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