quinta-feira, 12 de abril de 2018

Cristo Português



Cristo Português


Manuel da Silva estava há oito meses na trincheira da Flandres, que ficava entre as localidades de La Couture e Neuve-Chapelle. A vida nas trincheiras era dura e aguardava há muito a sua substituição, bem como a de todos os seus camaradas, que como ele ali tentavam enganar a sorte e permanecer vivos para regressarem a suas casas.
As escaramuças com a artilharia alemã eram frequentes e os bombardeamentos com gás, o pão nosso de cada dia. Nem sempre podiam ripostar por falta de munições e de entusiasmo. Deixá-los lá disparar. 
 Por falar em pão nosso de cada dia, este resumia-se a umas conservas inglesas, frias e mal sabidas e um pão escuro como terra. Que saudades da boroa dos Arcos, com côdeas castanhas, como os teus olhos Maria e branca, branca como as tuas coxas, meu amor.
Manuel da Silva era um soldado prático. Deixara a mulher em casa dos pais, não fosse o diabo tecê-las. Ali estaria mais segura para quando ele regressasse. Quanto ao resto, olho fino e pé ligeiro. Ainda pensara fugir à tropa, ir até Vigo e dali partir para Cuba, rumo aos Estados Unidos. Mas o amor atraiçoara-o. Acabou casado e a marchar para Braga, Tancos e finalmente Brest e Flandres, na guerra. 
Quando pensava nela respirava fundo, para que a saudade o não abafasse de vez. Acreditava no seu pelotão e no alferes. Dali para cima só em Deus  e naquele Cristo na planície. Todos os dias o olhava desde a sua trincheira cavada na terra e se interrogava quem teriam sido os franceses, que o teriam colocado lá, mesmo no meio, entre ingleses, portugueses e alemães.
Interrogava-se porque ainda ali permanecia, mesmo no cruzamento dos fogos de artilharia e infantaria. Apesar de alguns estragos ele lá continuava dia e noite, a clamar por paz, aos homens surdos e cegos à sua presença. Era apenas uma estátua ou teria vida e seria mesmo sagrada? Admirou-se consigo próprio porque nunca fora dado a essas meditações. Acreditava em Deus e no pároco da sua aldeia e...pronto. O resto do tempo era para cuidar da vida e sonhar com a sua Maria, que lá longe o aguardava e a quem tinha prometido voltar. Eu volto, meu amor, eu volto.
Trazia consigo esta dúvida que dia a dia mais o apoquentava, resistia o Cristo da planície às balas, ou tinha tido sorte, apenas? Ou era um exemplo de que ele também poderia resistir: tal como eu, também tu resistirás! 
Tudo isto lhe parecia um pouco confuso e resolveu não partilhar esta dúvida com ninguém. Manter-se-ia atento e logo veria o resto. Ilusão, sorte ou crença e fé?
 Na noite de 7 de Abril de 1918, o seu posto tinha cinco foguetes luminosos (very lights), o que lhe pareceu pouco para a eventualidade de serem atacados numa noite quase sem visibilidade. Pediram então mais very lights ao comando. O pedido foi negado. Que se remediassem como pudessem, responderam. Resignado, manteve-se em vigia. Até que chegaram as quatro horas da madrugada do dia 8 de abril.
Manuel da Silva, soldado crente em Deus e duvidoso daquele Cristo das Trincheiras, aproveitou a luz dum very light e disse para si próprio, É hoje! 
Fez pontaria com a espingarda, e a cruz aparecia mesmo no meio da mira. Disparou duas vezes sobre o Cristo inerte na sua sombra deserta e fria.  Tinha a certeza que lhe tinha acertado, mas a cruz lá permanecia, ensombrada pelo nevoeiro e a metralha, perante a incredibilidade e espanto do atirador, de mãos trémulas, saiam-lhe roncos e soluços do peito: Perdoai-me Senhor, perdoai-me! - E soluçava compulsivamente.
Não teve muito tempo para se arrepender, porque sobre aquela planície, caiu uma tempestade de fogo de artilharia, durante horas a fio, que a metralhou, a incendiou e a revolveu. Era a ofensiva da Primavera de 1918 do exército alemão. 
A povoação de Neuve-Chapelle quase desapareceu do mapa, de tão transformada em escombros. A área ficou juncada de cadáveres e entre estes jaziam 7.500 portugueses da 2ª Divisão do CEP, mortos ou agonizantes.
No final da luta apenas o Cristo se mantinha de pé, mas também mutilado. A batalha decepou-lhe as pernas, o braço direito e uma bala varou-lhe o peito. Mas, no meio do caos, e antes de recuarem, para se reagruparem e regressarem às linhas aliadas, Manuel da Silva e mais camaradas que a tudo tinham assistido, correram e trouxeram às costas aquele Cristo ferido e magoado e colocaram-no em local seguro onde pudesse ser novamente venerado.
Com olhar recriminatório pela ousadia e pesaroso pelo número de baixas, o alferes lançou um ultimo olhar aos quatro e sabe-se lá onde foi ele encontrar uma réstia de esperança que lhe abraçou o rosto num único sorriso breve e pesaroso.
Foi a olhar para aquele Cristo, e ao ver o sorriso do seu alferes, que Manuel da Silva ficou com a certeza que regressaria à sua terra, lá longe nas margens verdes e luminosas do rio Vez!

Em 1958 o Governo Português mostrou o desejo de possuir aquele Cristo mutilado ao Governo Francês. Tornara-se um símbolo da Fé e do Patriotismo nacional e passou a ser conhecido como o "Cristo das Trincheiras". A imagem chegou a Lisboa de avião, a 4 de Abril de 1958, uma Sexta-feira Santa. Ficou em exposição e veneração na capela do edifício da Escola do Exército até 8 de Abril, quando foi conduzida para o Mosteiro da Batalha e colocada, a 9 de Abril à cabeceira do túmulo do Soldado Desconhecido, na sala do Capítulo.


1 comentário:

  1. Susana Rodas11/12/2020

    Magnifico ! muito obrigado ! "Foi a olhar para aquele Cristo, e ao ver o sorriso do seu alferes, que Manuel da Silva ficou com a certeza que regressaria à sua terra, lá longe nas margens verdes e luminosas do rio Vez!" ;)

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