quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A mulher que chorava de negro


havia uma mulher que chorava de negro

as lágrimas eram negras
os olhos eram negros
as rugas eram negras
as mãos eram negras
os pés eram negros
o coração era de ouro



a fome era negra
os caminhos eram negros
o saco do correio era negro
que levava às costas era negro

a mulher que chorava de negro



a casa era negra
o borralho apagado era negro
o estrado era negro
a cama era negra

a mulher que chorava de negro



o sono era negro
a madrugada era negra
o dia era negro
a esperança era negra

a mulher que chorava de negro




um dia pediram-lhe para chorar
porque estava vestida de negro
por fora e por dentro
e
a mulher que chorava de negro


pensou que talvez o choro 
se abrisse em bátega
e esta em rio 
e este em mar 

a mulher que chorava de negro


pensou, pensou 
e começou a chorar de negro
um choro baixinho e negro
que entrava em todas as frestas negras

a mulher que chorava de negro


quando uma mulher de negro
chora baixinho 
um choro mais negro que o negro
é um raio de sol
que se abre no coração 

a mulher que chorava de negro


e a mulher de negro 
começou a chorar baixinho
e quanto mais chorava
mais o sol lhe aquecia a alma

a mulher que chorava de negro


quanto mais chorava 
o negro fado negro
mais o sol lhe pintava a cara 
as lágrimas 
os olhos 
as rugas
as mãos 
os pés 
o coração

a mulher que chorava de negro



surpreendia-se a mulher de negro
porque a fome 
os caminhos 
o saco do correio 
que levava às costas 
deixavam de ser negros

a mulher que chorava de negro


enquanto chorava a mulher de negro
a casa clareava
o borralho acendia-se 
o estrado esbranquiçava
a cama ficava alba 

a mulher que chorava de negro


adormeceu a mulher de negro
em seu sono cândido
de madrugadas imaculadas 
e  dias inocentes
de pura esperança santa

a mulher que chorava de negro




e nessa madrugada inocente
a mulher deitada de negro
sorriu o riso mais imaculado e simples
de mãos sobre o peito 
partiu nas asas do vento e da harmonia

a mulher que chorava de negro





Manuel Rodas


Fotos Povo que canta, Giacometi, 1970

1 comentário:

  1. Anónimo2/10/2023

    Bela homenagem à Maria Touveda, mas o negro segui com ela, foi-se num grande sofrimento. Mas era uma alma pura

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