havia uma mulher que chorava de negro
as lágrimas eram negras
os olhos eram negros
as rugas eram negras
as mãos eram negras
os pés eram negros
o coração era de ouro
a fome era negra
os caminhos eram negros
o saco do correio era negro
que levava às costas era negro
a mulher que chorava de negro
a casa era negra
o borralho apagado era negro
o estrado era negro
a cama era negra
a mulher que chorava de negro
o sono era negro
a madrugada era negra
o dia era negro
a esperança era negra
a mulher que chorava de negro
um dia pediram-lhe para chorar
porque estava vestida de negro
por fora e por dentro
e
a mulher que chorava de negro
pensou que talvez o choro
se abrisse em bátega
e esta em rio
e este em mar
a mulher que chorava de negro
pensou, pensou
e começou a chorar de negro
um choro baixinho e negro
que entrava em todas as frestas negras
a mulher que chorava de negro
quando uma mulher de negro
chora baixinho
um choro mais negro que o negro
é um raio de sol
que se abre no coração
a mulher que chorava de negro
e a mulher de negro
começou a chorar baixinho
e quanto mais chorava
mais o sol lhe aquecia a alma
a mulher que chorava de negro
quanto mais chorava
o negro fado negro
mais o sol lhe pintava a cara
as lágrimas
os olhos
as rugas
as mãos
os pés
o coração
a mulher que chorava de negro
surpreendia-se a mulher de negro
porque a fome
os caminhos
o saco do correio
que levava às costas
deixavam de ser negros
a mulher que chorava de negro
enquanto chorava a mulher de negro
a casa clareava
o borralho acendia-se
o estrado esbranquiçava
a cama ficava alba
a mulher que chorava de negro
adormeceu a mulher de negro
em seu sono cândido
de madrugadas imaculadas
e dias inocentes
de pura esperança santa
a mulher que chorava de negro
e nessa madrugada inocente
a mulher deitada de negro
sorriu o riso mais imaculado e simples
de mãos sobre o peito
partiu nas asas do vento e da harmonia
a mulher que chorava de negro
Manuel Rodas
Fotos Povo que canta, Giacometi, 1970
Bela homenagem à Maria Touveda, mas o negro segui com ela, foi-se num grande sofrimento. Mas era uma alma pura
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