Olga
- Pai, porque escolheram o meu nome assim... Olga?
- Foi o teu bisavô que insistiu, e também era uma homenagem à tua avó!
- Porque seria assim tão importante para ele?
- Tinha a ver com a história
dele na Grande Guerra...
Quando António José Cerqueira,
1º cabo, foi alistado para o CEP, já pressupunha que, mais dia menos dia, iria
ser alistado para França, para a frente
da batalha. Tinha feito a preparação militar em Tancos, na famosa cidade de “paulona”,
por
causa das barracas de pau e de lona, alinhadas num gigantesco espaço de 68
hectares, onde só para os regimentos de infantaria existiam no acampamento 864
barracas.
Apertava a
placa pendurada no peito com a inscrição gravada 70292 A, enquanto dizia si
próprio, “seja o que Deus quiser”. Olhava o horizonte à procura dum ponto dentro
de si, que só ele sabia onde continuava.
Em março de
1917, as primeiras unidades do CEP chegaram à frente de combate, onde se encontrava
instalada uma Brigada da 1ª Divisão a ocupar o sector de Ferme du Bois, em
França.
António José integrava a
unidade que iria reforçar as tropas portuguesas e partiu numa terça feira, para Brest, em vinte
e cinco de julho de 1917.
O dia
anterior era uma segunda feira radiosa, boa demais para desperdiçar numa guerra
distante da terra portuguesa. Iniciaram
a marcha pelas 10 horas da manhã para a estação de caminho de ferro de Braga,
desde a Praça dos Voluntários da República, fronteira à sede do regimento,
seguindo pela rua do Anjo, largo dos Remédios, rua de S. Marcos, largo do Barão
de S. Martinho, rua do Souto, rua Nova de Sousa, praça do Conde de S. Joaquim,
rua do Corvo até ao largo da estação.
Abria esta
marcha a banda do regimento com pouco povo ao longo do trajeto. Doía tanta indiferença
para quem ia matar e ser morto.
Junto à
estação estavam as autoridades locais e muitos familiares, onde se fizeram as
últimas despedidas emocionadas, à mistura com o patriotismo republicano.
O comboio repleto
de militares deixou a estação de Braga às 11.37 horas, tendo chegado ao cais de
Alcântara, em Lisboa, na madrugada de dia 25 de julho, seguindo de imediato
para bordo do navio que os ia levar até Brest, no norte de França.
Enquanto
isso, ele repetia para si próprio, “seja
o que Deus quiser”.
Após uma
viagem turbulenta no mar, chegados a França, prosseguem de comboio a Calais,
seguindo-se a marcha até Wismes, ainda a mais de 50 km da frente. Nos dias seguintes
e após uma ligeira instrução ocupam as trincheiras, contando, de imediato, com o batismo
de fogo alemão, com granadas, bombardeamentos de morteiros e lançamento de
gases.
A
vida na “front” corria cheia de percalços. Os combates, a desorganização, a comida
de ração fria, com moral baixa, o frio e a chuva, o nevoeiro e a falta de
horizontes compunham a via sacra dos suplícios.
Os
oficias vinham de férias e não voltavam. Aos soldados não lhes era permitido
serem substituídos ou gozarem descanso. Quantas vezes teve de mandar calar
aquela gente cheia de razão. Apesar disso, sentiu orgulho pela nomeação:
2º sargento miliciano. Era uma quinta feira cheia de frio e humidade, 23
de março do ano de 1918. Seja o que Deus quiser.
O tempo corria mais devagar que o desejo e as movimentações no terreno, mas chegara abril e as papoilas começavam a romper a terra e as boas notícias a chegar,
iriam ser rendidos. Estava tudo preparado para cederem o lugar da frente a
outros. Iam ter umas merecidas férias. Mas a 9 de abril, não sei o que deu aos
alemães, irromperam com uma força desmedida e soube mais tarde, foram os
ingleses que cederam e os portugueses a serem apanhados pelas costas.
Feito
prisioneiro,
na companhia de milhares, foram encaminhados para a estação de Lille e daí só se
lembra que encontrou um catre seco no Campo de Prisioneiros de Friedrichsfeld,
junto da fronteira holandesa, numa aldeia chamada Wesel, a norte da cidade de Colónia.
Os homens não paravam de chegar. Pelos oficias portugueses feitos
prisioneiros, soube que em agosto de 1918, estavam internados neste Campo, mais
de 5 000 praças e oficiais. Só em outubro havia de ser feita a transferência
dos Oficiais portugueses para Breesen, um mês antes do fim da guerra.
Havia um hospital e uma capela, mas a vida no Campo era miserável. Além da
comida insuficiente, esta ainda era má: cascas de melão e melancia, cascas de
batata com terra e peixe tão malcheiroso de podre, que, mesmo famintos, os
prisioneiros não o conseguiam comer.
Viu os alemães a matarem ou ferirem prisioneiros mesmo depois de estes deporem
as armas e se renderem e o mesmo no campo de prisioneiros. Alguns queixavam-se
das roupas e pertences roubados, dos castigos, empregando os presos de guerra
em trabalhos excessivos ou em operações bélicas.
Viu serem recusados apoios médicos e sanitários aos doentes, sendo a
pneumonia, as amputações, a “gripe espanhola”, a sepsia, a pleurisia e a
tuberculose as principais causas de morte.
Era a este Campo, que o 2º sargento António José Cerqueira tinha chegado. Já há muito que tinha
desistido de dizer para si próprio, Seja o que Deus quiser. Essa voz interior
tinha-se calado, nem ele sabia bem como. Deus pode querer umas coisas, mas um
homem pode querer outras, pensava consigo. A ideia de fugir dali crescia como
as papoilas nos campos. Primeiro um botão, depois uma haste e um ponto verde, o
ponto a ganhar volume, a respirar condição e, por fim, abre as asas e emerge
uma esperança vestida de vermelho, uma bandeira cheia de força e alegria, a
tocar as nuvens e o sol.
A sensação de medo e de vergonha, comum a todos os soldados no momento da
captura, alastrava por entre os companheiros detidos. Alguns ofereciam objetos
pessoais - punhais, emblemas, relógios e carteiras - a fim de obterem a
benevolência do inimigo. Outros
eram vítimas deste, por interesse em
objetos de valor e até artigos de fardamento como botas e casacos em bom
estado.
À medida que iam tomando consciência de que já não eram apenas soldados – a
guerra para mim acabou - e passaram a ser prisioneiros de guerra, surgia a
desmoralização e a depressão para alguns.
Nos prisioneiros crescia a certeza que estavam entregues a si próprios. Os
seus pensamentos iam desde o sentimento de desgraça, abandono e raiva, à
sensação de alívio por saberem que sobreviveram ao conflito e que, para eles, a
guerra estava acabada, diria ele mais tarde aos oficiais portugueses.
Havia contudo outros que mantinham uma adaptação às novas circunstâncias,
sem contudo, desistirem dos desafios e obter a gratificação de os alcançar.
A fuga esteve sempre presente na alma de António José Cerqueira. Tudo que
observava em volta, a dimensão do campo, as rotinas, o carácter dos soldados
alemães que os vigiavam, os civis que entravam no Campo, o estado do tempo, a
viagem até ao caminho de ferro, tudo era observado minuciosamente e guardado na
memória ativa. Tudo podia ajudar à fuga. Podia ser o que Deus quisesse, mas
ele, António José, tinha uma palavra dizer. Mantinha-se aparentemente
desinteressado e alheado, mas nada do que ali se passava lhe era indiferente.
Tomando consciência desta resolução, endireitou o corpo e a sombra alongou-se
mais um palmo na terra batida.
Todos os dias uma menina, de olhos claros e cabelos louros, de vestido de
chita e botas sujas pela lama, vinha distribuir água aos prisioneiros. Talvez
fosse filha dalgum trabalhador do Campo ou dalgum soldado. Era difícil
comunicar com ela por palavras, apenas restavam os gestos, o sorriso das
papoilas e o olhar mais límpido que a água.
A ele agradava mais a feliz aparição do que a água, propriamente dita.
Aqueles olhos sorriam de humanidade jovial. Anunciavam um tempo de promessas de
paz, com as famílias reunidas, as crianças a brincar ao sol...
Olga, chama-se Olga a feliz aparição diária. Olga, nome de futuro.
Se um dia casar e tiver uma filha há de chamar-se Olga, prometia o 2º
sargento, a si próprio. É um nome que me enche a boca e empurra o amor pela
garganta abaixo direto ao coração, Olga. E sonhava com o dia do casamento, do
batizado, o dia em que a levaria à feira dos Arcos...Olga.
Era a senha e contrassenha para a sua fuga, o seu sonho.
Para isso, era preciso sair daquele inferno. Começara com mais prisioneiros
a trabalhar na reparação dos caminhos de ferro. Era assim que
os alemães cobravam o esforço de guerra, obrigando os prisioneiros a
trabalharem nos caminhos de ferro, nos campos, no enterro dos mortos, na
manutenção do Campo e em operações de guerra.
Rapidamente deitou mão ao mapa dos caminhos de ferro da região e ... com
sorte chegariam à frente portuguesa. Os outros dois soldados facilmente se
deixaram conduzir pela voz confiante do 2º sargento.
Vamos, meu sargento, vamos consigo! Seja o que Deus quiser.
Sorriu António José. Afinal, Deus também podia querer que eles fugissem. E
fugiram. Aproveitando a desatenção do oficial alemão já não regressaram ao Campo.
Traziam o mapa e pão escuro armazenado durante a semana. E levavam a certeza
que se safavam daquela aventura.
De comboio, a pé, acordados ou a dormir, guiados por um mapa e pelas
estrelas do firmamento, apresentaram-se ao comando militar português em 10 de
dezembro de 1918, uma terça feira, ao fim do dia.
Aclamados como bravos, contaram todas as peripécias da fuga. A importância
do mapa, o deslocarem-se de noite, ao frio, a fome e a vontade de nunca
desistirem. Após um período de descanso voltou António José ao desempenho das
suas funções de 2º sargento, tendo regressado a Lisboa, a 13 de Janeiro de 1919, uma segunda feira.
Boa para recomeçar a organizar a vida e cumprir a promessa feita nos campos da
Alemanha, Olga!
A vida é um
conjunto de possibilidades, não é uma fatalidade, dizia para si próprio! Era
isto que havia de ensinar a sua filha, Olga!
- Pai, depois dessa guerra nunca mais houve outra?
- Olga, trinta e seis anos depois os alemães começaram a II Grande
Guerra. Se na primeira morreram dez milhões de soldados, na segunda houve 75 milhões de
pessoas mortas, incluindo militares e civis, cerca de 3% da população
total do planeta.
- Já sei que
nome vou chamar a minha boneca…
- Qual?
- Maria da
Paz!
- Seja o que Deus quiser...
- Seja o que Deus quiser...
Manuel Rodas
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