Eu era um jovem professor primário, colocado numa aldeia do
Alto Minho, Grade, freguesia do concelho de Arcos de Valdevez.
Era o meu terceiro ano de trabalho e as minhas convicções políticas, sociais e pedagógicas davam-me a segurança possível, para
ultrapassar as dificuldades do dia-a-dia, com entusiasmo e alegria.
Eu sabia que era um
pouco estranho para aquela comunidade a vinda dum professor, homem, de barba
crescida, que se deslocava de mota. Mas aquela comunidade não era assim tão
diferente da minha aldeia. Eu conhecia os ritmos anuais do trabalho, o ciclo
das festas e os costumes básicos do nascer até à morte. Conhecia o espírito de
sobrevivência dos agricultores e assalariados de minifúndio, dos pequenos
comerciantes e emigrantes. Sabia qual a importância que davam à educação e ao
estatuto do professor. A vida não era fácil para ninguém.
Também sabia que tanto como as minhas aptidões técnicas e científicas,
também o saber estar e ser eram fundamentais para captar a confiança dos alunos,
pais e restante comunidade.
Tinha as quatro classes num total de 23 alunos, em número
semelhante de rapazes e raparigas.
A escola era pobre, sem material didático, nem aquecedores.
Os alunos pertenciam a famílias rurais, assalariados, pequenos agricultores e
vários emigrantes.
Ao fim de algum tempo, já se notavam mudanças na relação dos
alunos comigo e na afabilidade com que os pais e elementos da comunidade se me
dirigiam, sempre com consideração e de forma respeitosa, à qual nem precisava esforçar-me
muito para corresponder.
O problema foi quando, após frequentar um minicurso de râguebi,
quis introduzir esta atividade no currículo dos alunos. A Direção Geral dos
Desportos tinha custeado o curso e deu-me duas bolas. O resto seria comigo e
com os alunos.
Com o ímpeto da minha pouca experiência mas muito entusiasmo,
pedi autorização a um proprietário local se permitia o abate de três pinheiros
para fazer umas balizas no recreio da escola.
Com a ajuda dos alunos mais velhos lá cortamos, alisamos e
aprontamos os troncos que serviriam de balizas para a prática do futebol e de
postes (que sobressaíam das balizas) para o râguebi. Estava a aprender a
rentabilizar os parcos recursos!
Eu já tinha surpreendido alguns alunos a sorrirem à socapa.
Perguntei-lhes o que se passava, mas eles não adiantaram muito, pelo que pensei
que fosse o resultado duma atividade diferente que permitia mais informalidade
e à vontade.
O recreio ficou enfeitado com novas balizas e dois postes.
Passámos a aprendizagem das regras: Passe, bloqueios, faltas,
reposição da bola em jogo, pontuação, etc.
De início, as raparigas mostravam-se mais inibidas e
comedidas nas placagens, mas aos poucos ganharam o seu espaço e respeito. E se
corriam menos e placavam pior, tinham de longe mais visão de jogo e sentido de
equipa.
Um dia… o Artur *, repartido entre o apoio ao professor e a
aceitação da aldeia, levantou o dedo para pedir a palavra e disse:
- Na aldeia todos se
riem. Dizem que o professor não sabe fazer balizas!
Alguns riram e outros em minha defesa disseram que as pessoas
não sabiam para que serviam os postes. Percebi que eles tinham entendido a
inovação como um progresso de que os mais velhos estavam arredados.
Sorri. No lugar deles também me havia de rir. Mas não me
importei. Confiava que com o tempo, eles próprios diriam aos pais o que era o râguebi
e isto serviria de aprendizagem de como as pessoas reagem à inovação.
E o râguebi lá fazia o seu caminho alternado com o futebol e
ganhando mais popularidade entre as raparigas que entre os rapazes.
Noutro dia, o Custódio* apressou-se e ansiosamente colocou em
cima da secretária um rolo feito com papel castanho de embrulho e disse de
sorriso rasgado:
- Foi a minha mãe que mandou. É para si.
Surpreso, sorri. Abri o pequeno embrulho e um aroma a
chouriço caseiro saltou do tampo da secretária para as minhas narinas.
Condescendente, sorri e voltei a embrulhá-lo, enquanto silenciosamente
pensava que devia ser gostoso, e disse-lhe para o levar de volta e dissesse a
mãe que eu era funcionário público, recebia todos os meses o meu salário, pelo
que não precisava dessa oferta.
O Custódio mostrava algumas dificuldades na aprendizagem, mas
era pontual e assíduo. Vinha a pé duma aldeia distante, Carralcova, e pelo aspeto
descuidado podia perceber que os pais teriam algumas dificuldades económicas.
Sorri interiormente pela oportunidade de mandar recado a toda
a comunidade, através desta mãe, que eu professor, era diferente, não era
suscetível de qualquer tentativa de suborno.
Mas eu não ia esperar muito pela resposta e pagar caro este
sorriso de superioridade moral.
No dia seguinte, o mesmo Custódio abeira-se da secretária,
com o mesmo embrulho e perante a minha surpresa disse:
- A minha mãe pergunta se não aceita por ser pouco.
Percebi a força do argumento e do recado, engoli em seco, era
preciso alguma flexibilidade neste caso, tentei sorrir e disse-lhe:
- Diz a tua mãe que obrigado, mas que não mande mais nada
porque eu não aceito.
Quando mais tarde em minha casa, partia o chouriço e o comia
com broa e vinho, pus-me a imaginar que ela sorriu quando o filho lhe deu o
recado, que deve ter pensado, ou até comentado com alguma vizinha, “Não queria,
não queria, mas teve de aceitar”!
E voltei a sorrir! O chouriço era mesmo bom!
Miguel Taveira
ResponderEliminarOntem, às 22:02
Muito bom. Sempre um prazer ler estas coisas.
DE CARRALCOVA PARA GIELA??
ResponderEliminarNão imagino a Oceane a fazer esse percurso sozinha de verão, quanto mais de inverno.....outro tempo... será que a sociedade caminha para algo assim? é com prazer que leio e recordo o passado,a minha telescola, mas é com preocupação que medito no futuro dos meus filhos.
nao pare de escrever, é com orgulho que o leio.
manuelrodas, paredescoura
Maria Paula T Queiroz B Pinto
ResponderEliminarGostei muito!
Quanto a "Sorrisos" é uma narrativa na melhor tradição dos nossos contistas. A história do primeiro contacto do jovem professor primário com a população de Grade, na altura, há mais de trinta anos, certamente ainda muito agarrada às velhas tradições rurais, é muito interessante, até pelo simbolismo da introdução do râguebi, um elemento novo que vinha trazer uma mudança em relação aquilo que estavam habituados a ver. O professor nem sabia fazer balizas de futebol..
ResponderEliminarNão desista de escrever.
Luís Lucena