Esfarrapeta
2ª edição de
autor(revista) Junho de 2012
MANUEL RODAS
Palavras à Solta, editora
Esfarrapeta era
cão de rua.
Manhoso, rufia,
deixava-se adormecer em qualquer lado, sempre com um olho a fingir e outro a
fazer de conta.
Às vezes levava
uma pedrada, um pontapé de alguém e lá ia com o rabo a reluzir. Parava junto de
um caixote ou saco de plástico, e de olho aqui e faro acolá, cheirava,
trincava, roía e assim ia mastigando a fome.
Outras vezes
tinha umas saudades danadas de companhia. Era capaz de seguir um transeunte
muito tempo. Então uma criança é que era bom! Sabia ler nos olhos a ternura dos
pequenos!
- Cão anda!
Anda! Toma!
A mão fazia um
aceno de cinco dedos, que os olhos levavam com como se fosse um telegrama de
emergência.
ESFARRAPETA não
queria ouvir outra coisa. De olhos brilhantes como estrelas, faro húmido de
amizade e de rabo a dar-a-dar, lá ia o rafeiro na pegada da criança.
- Ah! Se ele me
quisesse! Ao menos, umas festas e um pouco de brincadeira.
Mas logo a voz
da mãe rugia, ameaçadora como um trovão:
- Deixa o cão!
Todo sujo e tinhoso! É um vadio! Até pode estar doente ou ter a raiva, ou a
sarna! Vai-te embora, cão! Passa fora!
Os olhos de
fúria, a mão ameaçadora e o ESFARRAPETA abrandava o passo, parava nos calcanhares,
baixava as orelhas e ficava-se a dizer adeus ao petiz.
Voltava a enrolar-se
no pelo áspero, como uma cobra, sempre de olho alerta, não fosse acontecer
alguma coisa sem ele dar por isso.
Mas um dia…
aconteceu a melhor aventura da vida do ESFARRAPETA.
Dois miúdos,
esfarrapados e sujos como ele, vinham pela rua abaixo, num carrinho de madeira,
guiado por uma corda, atada às rodas de rolamentos.
Fazia cá uma
barulheira, que o ESFRRAPETA levantou a orelha, sempre à espera de novidades,
pestanejou e cheio de espanto, viu os dois a aproximarem-se a grande
velocidade! Aquilo cheirava a esturro! Quem sabe?
Ganiu, como cão
que era e o carro das aventuras, pintado às cores, fez uma curva aparatosa,
chiou nos rostos esbaforidos e foi parar mais à frente!
- Eh! Vigarista!
Anda cá!
- Ó Pá, deixa o
cão!
- Não! Não! Eh!
Vigarista! Toma, anda cá!
ESFARRAPETA não
se fez de finório. Em quatro pedaladas estava junto deles. Sentiu-se agarrado
com mãos de sonho, transportado pelos ares, para o carro.
Os miúdos
ganharam balanço com a perna de fora, e
ala que se faz tarde!
Rua abaixo,
guina aqui, curva acolá, salta além, a aventura prosseguia!
ESFARRAPETA,
agora alcunhado de Vigarista, ladrava que se fartava!
Eh! Pá, agora já
temos apito!
Assim estava
bem. Um cão também tem direitos! Então, o que pensam? Um cão espera, espera,
mas um dia apanha uma boleia e a esperança recomeça. As gargalhadas surgiam
refletidas no asfalto como se fossem piscas-piscas em dia de chuva!
Bruscamente, o
carro deu uma volta sobre si próprio, travado pela mão do condutor, que se agarrara
energicamente a uma árvore do passeio. ESFARREAPETA-VIGARISTA viu-se e
desejou-se para se equilibrar e não ir esfregar o chão. Aquilo era uma corrida
a sério! Por pouco não tinha ido lamber o chão!
Uma criança
ficou no carro e agarrou o cão. A outra saiu, entrou na loja e veio a correr
com um saco de batatas fritas.
-Corre, corre!
O carro
acelerou, deitou fumo na areia da rua e toca andar, que se faz tarde! A corrida recomeçava.
- Então, só trouxeste
um saco de batatas fritas?
Só! O que
querias? Não podia trazer tudo!
Na corrida,
quase atropelavam uma velha, que deitava milho às pombas. Estas, esbaforidas,
levantaram-se no ar e desfizeram o susto às gargalhadas de asas. A velha
maldizia, resmungava e protestava:
-Agora, até os
cães vadios andam de carro!
ESFARREAPETA-VIGARISTA
agradecia: Au, Au!
- A Bófia!
Abranda!
- Onde?
- Acolá na
esquina!
Uma perna fora
do carro, sapato preso no alcatrão e uma guinada à direita!
ESFARREAPETA
nunca percebera o que fazia a polícia. De qualquer maneira ele passava sempre uma
fome dos diabos!
Debaixo duma
árvore, sentados na relva abriram o saco de batatas fritas.
- Uma para mim,
outra para ti, outra pró Vigarista!
- Até parecem
hóstias da igreja!
- Qual quê!
Estas são salgadas!
- Não faz mal.
Eu sou o padre, tu o sacristão! E o cão?
- O cão é o S.
José!
ESFARREAPETA-VIGARISTA-S.
JOSÉ não se importava. Passar de cão a santo, não acontece a qualquer um.
Aquelas batatas
eram do melhor que já tinha comido naquela manhã! São um bocadito salgaditas, o
raio das batatas!
- Eh! Pá! Que
sede!
-Pois é!..
-........
- Eu sei, tu
sabes, ele sabe
Onde há uma
cave.
Desce-se por uma
escada
Tira-se uma laranjada!
- Vigarista!
Anda cá!
Motores
acelerados, sinal verde, arranca cavalinho!
-Fica no carro,
que eu vou lá!
Olhos vigilantes
e dentes duros para abrir a garrafa.
ESFARREAPETA-VIGARISTA-S.
JOSÉ desta vez não ladrava.
- O cão não
gosta de laranjada!
- Que beba água!
E bebeu. Num
charco da rega automática. Mirou-se ao espelho. Estava feliz. Comer batatas
fritas e andar de carro sem pagar bilhete, ser tratado como gente, e até como
santo…. Aquilo sim, era outra gente! Gente pequena, mas com outros
sentimentos….
Mas… como foi?
Os olhos espantaram-se-lhe. Que casa seria aquela? Nunca lá tinha ido. E que
iam lá fazer?
- Vamos prá
escola?
- Vamos lá!
-Levamos o cão?
Um olhar
resignado, encolher de ombros e… uma ideia!
- E se o deixássemos
preso ao carro?
- Boa, até o
pode guardar para quando sairmos.
Dito e feito.
ESFARRAPETA já tinha visto um burro puxar uma carroça, mas agora um cão… era
diferente! Mas que importava?
Enquanto ladrava
de alegria sentiu-se preso ao carro, e os amigos olhavam-no preocupados, à
medida que se afastavam.
Já tinha passado
muito tempo e os amigos não voltavam. Que se passaria?
Quando viu a
empregada da escola, abanou as orelhas. Seriam moscas?
“Olá, vai haver
sarilho. Ai isso vai!”
E houve. De lá
vinha a mulher de azul, de vassoura na mão.
-Passa fora,
cão! Passa!
ESFARRAPETA estava
disposto a resistir. Um cão não tem medo. Ora essa. Havia de ver.
Mas à primeira
vassourada, deitou pés ao caminho e foi-se. A principio devagar, mas depois
corria, corria. Mas custava-lhe correr. O carro pisava-lhe as patas de trás. E quanto
mais o carro o pisava, mais ele era obrigado a correr. As pessoas riam-se, ao
mesmo tempo que se desviavam.
- Olha, é um
cão. Mais parece um burro!
As que figura um
cão é obrigado a fazer!
Finalmente o
cordel partira-se e o carro continuava andar rua abaixo, como se fosse barco ou
navio sem destino.
Ficara-se a
vê-lo. Ainda levantou a pata a dizer adeus. Mas para quê? Voltara passo a passo
à escola. Era já tarde e não havia ninguém. Que pena! E sentiu-se sozinho outra
vez. Já não era VIGARISTA, nem S. JOSÉ.
Voltara a ser
outra vez só ESFARRAPETA! E desandou dali. Escola não é para cães vadios. Para
cães vadios, a escola é deambular pela rua abaixo, a virar caixotes e ideias
novas!
1ª edição de
autor Maio de 1983
Sem comentários:
Enviar um comentário
Seja crítico, mas educado e construtivo nos seus comentários, pois poderão não ser publicados. Obrigado.