quarta-feira, 4 de julho de 2012

ESFARRAPETA







Esfarrapeta
2ª edição de autor(revista) Junho de 2012








MANUEL RODAS




Palavras à Solta, editora

Esfarrapeta era cão de rua.
Manhoso, rufia, deixava-se adormecer em qualquer lado, sempre com um olho a fingir e outro a fazer de conta.
Às vezes levava uma pedrada, um pontapé de alguém e lá ia com o rabo a reluzir. Parava junto de um caixote ou saco de plástico, e de olho aqui e faro acolá, cheirava, trincava, roía e assim ia mastigando a fome.
Outras vezes tinha umas saudades danadas de companhia. Era capaz de seguir um transeunte muito tempo. Então uma criança é que era bom! Sabia ler nos olhos a ternura dos pequenos!
- Cão anda! Anda! Toma!
A mão fazia um aceno de cinco dedos, que os olhos levavam com como se fosse um telegrama de emergência.
ESFARRAPETA não queria ouvir outra coisa. De olhos brilhantes como estrelas, faro húmido de amizade e de rabo a dar-a-dar, lá ia o rafeiro na pegada da criança.
- Ah! Se ele me quisesse! Ao menos, umas festas e um pouco de brincadeira.
Mas logo a voz da mãe rugia, ameaçadora como um trovão:
- Deixa o cão! Todo sujo e tinhoso! É um vadio! Até pode estar doente ou ter a raiva, ou a sarna! Vai-te embora, cão! Passa fora!
Os olhos de fúria, a mão ameaçadora e o ESFARRAPETA abrandava o passo, parava nos calcanhares, baixava as orelhas e ficava-se a dizer adeus ao petiz.

Voltava a enrolar-se no pelo áspero, como uma cobra, sempre de olho alerta, não fosse acontecer alguma coisa sem ele dar por isso.
Mas um dia… aconteceu a melhor aventura da vida do ESFARRAPETA.
Dois miúdos, esfarrapados e sujos como ele, vinham pela rua abaixo, num carrinho de madeira, guiado por uma corda, atada às rodas de rolamentos.
Fazia cá uma barulheira, que o ESFRRAPETA levantou a orelha, sempre à espera de novidades, pestanejou e cheio de espanto, viu os dois a aproximarem-se a grande velocidade! Aquilo cheirava a esturro! Quem sabe?

Ganiu, como cão que era e o carro das aventuras, pintado às cores, fez uma curva aparatosa, chiou nos rostos esbaforidos e foi parar mais à frente!
- Eh! Vigarista! Anda cá!
- Ó Pá, deixa o cão!
- Não! Não! Eh! Vigarista! Toma, anda cá!
ESFARRAPETA não se fez de finório. Em quatro pedaladas estava junto deles. Sentiu-se agarrado com mãos de sonho, transportado pelos ares, para o carro.
Os miúdos ganharam balanço com a  perna de fora, e ala que se faz tarde!
Rua abaixo, guina aqui, curva acolá, salta além, a aventura prosseguia!
ESFARRAPETA, agora alcunhado de Vigarista, ladrava que se fartava!
Eh! Pá, agora já temos apito!
Assim estava bem. Um cão também tem direitos! Então, o que pensam? Um cão espera, espera, mas um dia apanha uma boleia e a esperança recomeça. As gargalhadas surgiam refletidas no asfalto como se fossem piscas-piscas em dia de chuva!
Bruscamente, o carro deu uma volta sobre si próprio, travado pela mão do condutor, que se agarrara energicamente a uma árvore do passeio. ESFARREAPETA-VIGARISTA viu-se e desejou-se para se equilibrar e não ir esfregar o chão. Aquilo era uma corrida a sério! Por pouco não tinha ido lamber o chão!

Uma criança ficou no carro e agarrou o cão. A outra saiu, entrou na loja e veio a correr com um saco de batatas fritas.
-Corre, corre!
O carro acelerou, deitou fumo na areia da rua e toca andar, que se faz tarde!  A corrida recomeçava.
- Então, só trouxeste um saco de batatas fritas?
Só! O que querias? Não podia trazer tudo!
Na corrida, quase atropelavam uma velha, que deitava milho às pombas. Estas, esbaforidas, levantaram-se no ar e desfizeram o susto às gargalhadas de asas. A velha maldizia, resmungava e protestava:
-Agora, até os cães vadios andam de carro!
ESFARREAPETA-VIGARISTA agradecia: Au, Au!
- A Bófia! Abranda!
- Onde?
- Acolá na esquina!
Uma perna fora do carro, sapato preso no alcatrão e uma guinada à direita!
ESFARREAPETA nunca percebera o que fazia a polícia. De qualquer maneira ele passava sempre uma fome dos diabos!
Debaixo duma árvore, sentados na relva abriram o saco de batatas fritas.
- Uma para mim, outra para ti, outra pró Vigarista!
- Até parecem hóstias da igreja!
- Qual quê! Estas são salgadas!
- Não faz mal. Eu sou o padre, tu o sacristão! E o cão?
- O cão é o S. José!
ESFARREAPETA-VIGARISTA-S. JOSÉ não se importava. Passar de cão a santo, não acontece a qualquer um.
Aquelas batatas eram do melhor que já tinha comido naquela manhã! São um bocadito salgaditas, o raio das batatas!
- Eh! Pá! Que sede!
-Pois é!..
-........
- Eu sei, tu sabes, ele sabe
Onde há uma cave.
Desce-se por uma escada
Tira-se uma laranjada!
- Vigarista! Anda cá!
Motores acelerados, sinal verde, arranca cavalinho!
-Fica no carro, que eu vou lá!
Olhos vigilantes e dentes duros para abrir a garrafa.
ESFARREAPETA-VIGARISTA-S. JOSÉ desta vez não ladrava.
- O cão não gosta de laranjada!
- Que beba água!
E bebeu. Num charco da rega automática. Mirou-se ao espelho. Estava feliz. Comer batatas fritas e andar de carro sem pagar bilhete, ser tratado como gente, e até como santo…. Aquilo sim, era outra gente! Gente pequena, mas com outros sentimentos….
Mas… como foi? Os olhos espantaram-se-lhe. Que casa seria aquela? Nunca lá tinha ido. E que iam lá fazer?
- Vamos prá escola?
- Vamos lá!
-Levamos o cão?
Um olhar resignado, encolher de ombros e… uma ideia!
- E se o deixássemos preso ao carro?
- Boa, até o pode guardar para quando sairmos.
Dito e feito. ESFARRAPETA já tinha visto um burro puxar uma carroça, mas agora um cão… era diferente! Mas que importava?
Enquanto ladrava de alegria sentiu-se preso ao carro, e os amigos olhavam-no preocupados, à medida que se afastavam.
Já tinha passado muito tempo e os amigos não voltavam. Que se passaria?
Quando viu a empregada da escola, abanou as orelhas. Seriam moscas?
“Olá, vai haver sarilho. Ai isso vai!”
E houve. De lá vinha a mulher de azul, de vassoura na mão.
-Passa fora, cão! Passa!
ESFARRAPETA estava disposto a resistir. Um cão não tem medo. Ora essa. Havia de ver.

Mas à primeira vassourada, deitou pés ao caminho e foi-se. A principio devagar, mas depois corria, corria. Mas custava-lhe correr. O carro pisava-lhe as patas de trás. E quanto mais o carro o pisava, mais ele era obrigado a correr. As pessoas riam-se, ao mesmo tempo que se desviavam.
- Olha, é um cão. Mais parece um burro!
As que figura um cão é obrigado a fazer!
Finalmente o cordel partira-se e o carro continuava andar rua abaixo, como se fosse barco ou navio sem destino.
Ficara-se a vê-lo. Ainda levantou a pata a dizer adeus. Mas para quê? Voltara passo a passo à escola. Era já tarde e não havia ninguém. Que pena! E sentiu-se sozinho outra vez. Já não era VIGARISTA, nem S. JOSÉ.
Voltara a ser outra vez só ESFARRAPETA! E desandou dali. Escola não é para cães vadios. Para cães vadios, a escola é deambular pela rua abaixo, a virar caixotes e ideias novas!
















1ª edição de autor  Maio de 1983




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