quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O engenheiro

O engenheiro José Carlos Santana, do alto dos seus 48 anos, entrou de rompante, atirou com o dossier de projetos para cima da mesa, puxou a cadeira com estrondo e sentou-se, enquanto arregaçava as mangas da camisa e esticava as pernas por baixo da secretária.
-Bolas, bolas… o raio que a parta. Estou cheio! Cheio! Depois de tantos projetos, tanto trabalho, obra e ideias inovadoras, vem aquela cabra com a conversa da treta, falinhas mansas… a dizer que a obra foi suspensa, porque os outros burros me acham incompetente… Pró raio que os partam. Aquela gaja não foi capaz de perceber que eles querem é luvas…doces, doces é o que eles querem… mas eu não vou na fita…
Abriu a 1ª gaveta, à procura não sei de quê, fechou a gaveta, abriu a 2ª gaveta, voltou a fechá-la e atirou-se à terceira gaveta que estava fechada. Deu um pontapé no caixote do lixo, que se espalhou pelo chão.
- AH! As chaves. Estão aqui. Como caíram no caixote sem eu as ver? Estranho… Mas mais estranho foi o sorriso da gaja. Ela pensa o quê? Não, não vou na conversa dela. Eu vou falar com os gajos e perceber o que eles querem. Afinal, quem quer as luvas?
Afastou os papéis com a mão esquerda, enquanto com a outra ia esmagando os maxilares e os lábios se alongavam num pedido de socorro. Pegou numa capa com folhas impressas de produtos electrónicos, esfolheou e atirou com ela para o caixote do lixo.
-Ah! Sim, sim, a gaja quer-me tramar. Ainda outro dia toda sorrisinhos, salamaleques, ó engenheiro isto, ó engenheiro aquilo, a debruçar-se sobre o meu pescoço, a mão poisada no meu ombro, o perfume a entrar-me nas narinas, a blusa toda aberta, eu com uma vontade de a agarrar e sufocar… mesmo ali em cima da secretária… e agora a cabra… zás. Vou deslocado para o sul! Um importante projeto electrotécnico no sul…Eu não vou para o sul… não vou não. Isso é que era bom. O que vou fazer agora? Incompetente… ao fim destes anos todos a trabalhar na mesma empresa e chega esta cabra e …
Desapertava o colarinho, alisava os cabelos, metia a mão no bolso das calças… à procura não se sabe de quê, soprava primeiro e suspirava depois …
-Bom, ou a gaja, ou os gajos… um deles quer-me tramar. José Carlos Santana abre os olhos! O projeto é exemplar e até inovador…tive em conta a relação qualidade/preço, a eficácia dos materiais … cambada de imbecis… querem luvas? Têm frio? Pois comigo não vão aquecer as mãos… nem os pés. Não vou na conversa dela… A gaja não desiste? Eu vou-lhe dizer como é… Ela não se vai ficar a rir… Não vai não! Ai quer música? Pois veremos como dança…
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Já todos tinham saído de casa quando se levantou. Com a boca ainda seca, passou a língua pelos lábios e olhou-se ao espelho. Afinal uma boa conversa poderia resolver tudo… ou pelo menos parte. Não ia para o sul e ponto final. Se quisesse ir para o sul já tinha pedido para ir. Na vida dele ninguém mandava.
Ninguém mandava, não era bem assim.
A mulher possuía uma cadeia de lojas e nunca estava em casa. E se estava, era a tratar dos seus assuntos particulares e das suas lojas. Reuniões, contratação e despedimentos de funcionários, gestão de stocks, abastecimentos, feiras e exposições, contabilista, bancos e mais bancos, era uma roda-viva, com pouco tempo para si e para a família e muito menos para a casa, para os filhos e para ele.
Mesmo que o temperamento inicial da esposa não fosse muito autoritário, habituara-se cedo a organizar e mandar em pessoas, tinha experimentado o gosto da adrenalina no comando e este, aos poucos, tinha invadido a sua personalidade e influenciado todos os que, com ela viviam e conviviam.
Longe iam os tempos do namoro, em que com os negros cabelos soltos, blusa aberta sobre o peito, as calças jeans e uma bolsa ao ombro, lhe davam toda a disponibilidade, para quando o namorado dissesse “vamos!” ela responder, “ já lá devíamos estar”!
Os 2 filhos foram surgindo inesperadamente, mas lá estavam os pais para assegurar o sono, os banhos, a creche, as febres, as vacinas e as demais dores.
O tempo fora passando e hoje os filhos, já na faculdade, ignoravam-na e para ele, pouco mais era que uma estranha a habitar o mesmo espaço.
-Por isso meu caro, urge fazer algo, enquanto há tempo e energia!- sussurrava ele ao espelho, ao mesmo tempo que se banhava em creme de barbear. Os filhos já não precisam de mim. Sem pais, nem sogros, menos responsabilidades…
Chegado a este ponto, o leitor perceberá que se mantêm todas as hipóteses em aberto: a chefe pretende algo mais intimo dele, ou pelo contrário quer afastá-lo para longe, deixando-a livre para aumentar as vantagens na negociação com os donos da obra?
Se optamos pela primeira hipótese, estamos perante uma vulgar história de assédio sexual, com a variante de a chefe ser uma mulher e segundo o senso comum ser, um caso cada vez mais frequente.
Se, pelo contrário, for a chefe a querê-lo afastar, de modo a recolher para si as vantagens duma negociação pouco transparente, também nos dias que correm é vulgar e seria mais uma história pouco interessante, se comparadas com as que a vida real nos mostra.
Posto isto, ou a mulher morre ou ele tem um acidente. Ou o contrário. Morre ele e a mulher tem um acidente no carro com o marido da chefe.
Acaba aqui esta história. No jornal do dia seguinte podia ler-se:
À saída da autoestrada em Faro, deu-se um espetacular acidente, entre um carro ligeiro e um camião, donde resultou a morte dos ocupantes do carro, um homem e uma mulher, e ligeiras escoriações no condutor do camião.
A surpresa foi geral, quando na aproximação da ambulância e perante a estupefação de todos os transeuntes, começou a sair da viatura sinistrada uma nuvem de notas de 500 euros. Perante a estranheza inicial, todos os presentes deram início a um bailado confuso e nervoso, na recuperação das notas, enquanto os mortos jaziam no chão, enfrentando a indiferença geral.
As autoridades já iniciaram a investigação sobre este caso, mas sobre o assunto não há, até ao momento, mais informações disponíveis.

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