quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A minha família e a globalização

A minha família e a globalização
Um dia destes tenho de falar mais demoradamente à minha filha sobre a minha família. Poderia começar assim:
A nossa família e a globalização.
A nossa família não é melhor, nem pior do que qualquer outra. É o que é. Como todas, tem aspectos e características melhores e outras não tão boas…Mas não é meu propósito exaltar ou denegrir qualquer dos seus elementos. Vou antes descrever as deambulações de alguns dos seus elementos e mostrar (como tantas outras) como foram precursores da globalização ou se quiserem continuadores da globalização iniciada pelos portugueses, a partir do sec. XIV.
1- O meu avô materno, tal como contava minha mãe, nasceu e casou em Paradela. Depois de trabalhar em Lisboa na Industria Panificadora, resolveu, como alguns soajeiros o faziam, emigrar para os Estados Unidos. Um dia pegou num saco com alguns haveres e atravessando a Serra de Soajo, pela Seida, chegou a Vigo, apanhou um barco, que transportava cortiça para Cuba. Tinha combinado com um marinheiro, a troco de certa quantia, a sua entrada clandestina e o apoio em mantimentos ao longo da viagem. Assim se fez. Mas algures, no alto mar, sem água e com o sol a apertar, o meu avô, Firmino da Piedade Barbosa, viu-se rodeado de água salgada e com uma sede de morrer. E fez o que muitos marinheiros e viajantes, em situações semelhantes, devem ter feito: urinou numa bota e bebeu!
Chegado a Cuba, aguardou ainda algum tempo até embarcar novamente para os EUA. Aí trabalhou como padeiro, durante alguns anos, o tempo suficiente para amealhar a quantia que necessitava. Um dia, atirou com a pá do forno e disse ao patrão: -“ Vai-te f… Barreto, fica com a pá que eu vou-me embora!” Teve 4 filhos, dois rapazes (António e João) e duas raparigas, (Adelina e Maria, minha mãe). A minha avó ficou em Paradela, à espera dele e aguentar o barco, isto é, trabalhar e criar os filhos.
Eu ainda o conheci, quando frequentava a escola primária, em Paradela, sentado à porta de casa, a ler a sina às moças que vinham do trabalho e a pedir-me para ir à “estoa” comprar qualquer coisa. A minha mãe, sempre que falava dele, dizia que era muito farto… e depois chorava!
2- O meu tio António faleceu com 99 anos, em Lisboa em casa da filha Rosa. Teve mais dois filhos, Jaime e João, ambos falecidos nos EU América. Um dia fui visitá-lo e ele disse-me: Estava à tua espera! Outra noite sonhei com Deus! E que lhe disse Deus? - interroguei eu.
Deus olhou para mim e disse: Como não sabes ler, nem escrever, vou-te deixar viver mais tempo!
Só encontrei dois homens que quando nos saudávamos, me beijavam: era o meu tio António e o meu pai!
3- A minha tia Adelina, irmã de minha mãe, a quem me habituei a chamar mãe, foi na verdade a minha segunda ou terceira mãe. Quando era criança dava-me conselhos e depois perguntava-me porque o diabo sabia muito. Eu respondia, porque era mau. Não senhor! O diabo sabia muito, porque era velho!
Perante a insistência dela em me dar conselhos, eu ia fazendo ouvidos de mercador (como ela dizia) e às tantas desistia e num encolher de ombros dizia: “ O livro grande que te ensine!” Eu ficava a pensar que livro seria esse, a que teria de recorrer… mas os maiores livros por mim conhecidos eram o dicionário e a Bíblia. Não, nem pensar… quem ia agora ler o dicionário ou a Bíblia? Não devia estar boa da cabeça…
Só mais tarde descobri que o livro grande, era o livro da vida! Ah! Como tinha razão! O maior livro…Terei aprendido eu?
Conhecia as ervas e fazia infusões para curar os males: malvas, hipericão, barbas de milho, cascas de cebolas, erva cidreira… punha um ar sério e acho que rezava qualquer coisa, mas nunca consegui ouvir o que dizia.
Como me sabiam bem, no regresso da escola, a lareira acesa, com a panela de ferro a derreter a manteiga, ou as sopas de vinho na caçola!
Quando queria água e estava muito fria no cântaro, pegava num tição do lume e metia-o dentro do copo, tirava os carvões e dizia: Toma! Aquilo já não era só água, era uma mistura única de água e fogo!
Uma vez tive e eripsela… Levou-me a uma vizinha Maria do Cachez . Despiram-me e com raminhos de alecrim, aspergindo azeite com centeio e mais não sei o quê diziam uma reza em coro, mais alto a outra, depois limparam-me e curei-me! Também sabia cortar a dada! Claro que também me falava dos lobisomens, da raposa do murraço, da procissão da meia-noite, das bruxas que vinham de noite e tiravam os homens da cama e os levavam pelos ares… mais depressa me tiravam a mim…
Ah! Mas com ela podia contar para ir à romaria da Peneda! E por sorte ela tinha feito uma promessa e ia todos os anos! Era a única manifestação católica que lhe conhecia! Depois de 4 horas a pé, de Paradela até à Peneda, como sabiam bem os chouriços, o presunto, a galinha estufada, os ovos cozidos, as fatias douradas, saídos dum enorme cabaz de vime, com uma toalha aos quadrados…
No inverno, acabada a ceia e o arrumo da cozinha, dizia-me: “Traz o livro!” Eu pegava no livro e lá ia atrás dela, acampar num borralho dalgum vizinho, onde já estava uma roda de gente em volta da fogueira. Falavam da vida, o que tinha acontecido e se esperava viesse a acontecer, enquanto elas coziam ou fiavam e eles descascavam uma vara, um canzil, ou arranjavam uns tamancos. O entusiasmo da fala ia-se quebrando até que ela me dizia: “Lê!” E eu sentia que era o meu momento: Abria o livro de leitura da 3ª ou 4ª classe e numa voz pausada (como ensinara a professora e o meu pai lia o jornal) discorria palavra a palavra, linha a linha, parágrafo a parágrafo! O que me impressionava era aquela gente, que sabia tudo (até o livro grande) calava-se respeitosamente e em silêncio continuava a fiar ou raspar e ouvia religiosamente como se estivesse na missa. Dali, pela minha voz, partiam ao encontro doutros mundos, outras paragens, outras ideias e novidades…
Chegado ao fim da lição, eu queria prolongar o momento de glória, mas ela dizia : “Agora já chega!”
Quando acabei a escola primária só a voltava a ver nas férias. Mas estabelecemos sempre uma grande cumplicidade, que a distância do colégio não separou! Ela tinha uma fórmula encantada para me tirar os segredos… Nunca fui capaz de lhe deixar uma pergunta sem uma resposta séria e honesta!
Um dia, quando tinha 17, 18 anos pediu-me para a ajudar a lavrar uma terra no Regueiro! Não pude deixar de ir. O regresso à terra lembrava-me de onde tinha saído e com isso fazia as pazes comigo por ter ido embora e os ter deixado…
Era Abril, o sol aquecia os corpos, as flores, as ervas e a terra. Andava no ar um perfume envolvente, ao som das raízes e a terra quente a rasgar-se perante a pressão do arado… Chegado ao fim do rego, ela dava a volta às vacas, eu agarrado ao timão, lá ia sentindo cada vez com mais esta excitação, este frenesim erótico da natureza… mas como lhe dizer? Era minha tia, a quem tratava como mãe! Mais uma volta e esta ideia a bailar dentro de mim. Até que num momento de inspiração atirei-lhe “Esta coisa da terra … é estranha… mexe com a gente!” Sorriu, como a dizer-me: “que novidade!” e disse:
- Mexe, mexe! Olha que se conta que certa vez um homem e a mulher sentiram o mesmo numa lavrada e … teve que ser mesmo ali!
Agora sorrio eu, pela história, mas por ter descoberto como comunicar tudo com a minha tia!
Convidada pelo meu irmão mais velho, ainda esteve em França 4 ou 5 anos, donde regressou deslumbrada! “Aquilo sim, era um país. Nós, à beira deles não prestamos para nada!”
Dela guardo ainda o olhar reprovador, quando já velha, eu me demorava a visitá-la! Apetecia-me dizer-lhe: Desculpe tia, demorei-me mais a ler um capítulo do livro grande, aquele que falava das raposas do murraço deste mundo…
4- O meu avô paterno, tal como contava meu pai, ficou viúvo da primeira mulher e casou segunda vez. Da primeira, teve um rapaz e uma rapariga, Francisco e Ana. Da segunda vez teve dois rapazes: António e José, meu pai.
Ainda trabalhou como padeiro em Lisboa e Setúbal, mas cedo regressou à terra onde nascera, Várzea.
Era republicano e vinha votar a Cabana Maior. Como na Várzea não havia escola, ensinava as crianças e adultos que lhe pediam, a ler e escrever, ao fim do dia. Mas cedo se convenceu que não era a solução, pois conjuntamente com outros, começou a construir uma escola. E foi um drama até conseguirem que a Câmara de Arcos de Valdevez e o Estado assumissem as responsabilidades de conservação e colocação de um professor.
O meu pai contava que um dia ele foi pedir ao Prof. Lage para ver como se havia de fazer para tornar a escola oficial. O Prof. Lage perguntou quantos alunos tinha a escola.
- 20!- respondeu meu avô, Manuel Preto Rodas.
-Se tivesse 24 arranjava-se, Sr. Marujo! - disse o Prof. Lage.
- Ora, Sr. Prof. Se tivesse 24 também eu não lhe vinha pedir. Já era oficial por direito! - respondeu meu avô.
Conseguiu que colocassem uma Regente Escolar, que por lá ficou muitos anos.
Ainda conheci pessoas que aprenderam a ler e escrever ensinadas por ele.
Nas férias, dava-nos uma manta, e dizia: - Quero essa manta toda brincada! E nós bricavamo-la!
Guardava sempre as última uvas para os netos pisarem e sentirem o cheiro e sabor do vinho doce e todos tínhamos de soprar na perna da cabra para aprender como se esfola.
Lembro-me de já muito velho, andar encavalitado numa burra branca e tremer tanto com a mão, que deixava a sopa cair da colher, antes de chegar à boca. Eu e os meus irmãos riamos à socapa. Parecia que fazia de propósito, como quem não quer a sopa… Ele fazia o que nós desejávamos, mas não tínhamos coragem!
A minha avó precisou de ter muita paciência com ele, contava meu pai.
5– O meu pai tentou duas vezes fugir da Várzea para Lisboa. Estudou no Seminário da Régua e no decurso do 2º ano (actual 6º) fugiu para Sintra. Fez serviço militar nos Açores e regressou a Várzea, tendo depois casado com a minha mãe, que o acompanhou na sua vida profissional, como Guarda-florestal. Dirigiu e coordenou os trabalhos das casas dos Serviços Florestais da Gavieira, Paradela e Ramil, bem como das estradas da Travanca até Lombadinha e de Adrão até Cunhas e Várzea. Foi correspondente do jornal «A Vanguarda», durante vinte e tal anos, textos que depois de compilados vão ser editados com o título, José de Sousa Rodas, POR SOAJO.
Não viajou muito, os locais mais distantes de Soajo foram os Açores e Paris. Mas como lia muito e era ouvinte diário das emissoras nacionais e da BBC e Voz da Alemanha, com as quais mantinha correspondência, enquanto leitor, tinha muita informação sobre o que se passava no mundo.
A minha mãe contava que uma vez ele lhe disse que vinha aí a febre-amarela.
- E donde vem, Zé?
- Vem da China!
- Então não chega cá! - afirmava peremptória minha mãe.
- Olha que qualquer dia está aí! ­­- retorquia meu pai.
Ria-se a minha mãe perante o ar grave e sério do meu pai. A China era longe. Não haveria de chegar a Soajo, quanto mais a Ramil, no meio da serra.
Mas a febre ia-se alargando. Vietname, Indochina, Costa oriental, Costa ocidental de África e o meu pai a repetir:
- Qualquer dia está aí! Já chegou a Moçambique… a Angola, à Guiné…
- Qualquer dia está aí! Norte de África. Já só falta atravessar o mar para chegar cá!
Ria-se a minha mãe. Atravessar o mar? A febre? Não, isso eram histórias da rádio.
Mas a coisa ficou séria. Tinham aparecido os primeiros casos no Algarve, depois Alentejo, Lisboa, Porto, Braga…
-Qualquer dia está aí!
A minha mãe hesitava. Mas … como chegaria a Ramil, lá no meio da serra? Que asas tinha essa febre-amarela?
… E um dia o meu pai tossiu, suava, tinha temperatura e a febre tinha chegado a Ramil, mesmo no meio da serra.
O meu pai e a rádio tinham marcado pontos na consideração da minha mãe.
O meu pai era Guarda-Florestal e vivíamos no meio da serra, numa casa com 3 quartos, um escritório, uma cozinha, 2 arrecadações e uma casa de banho. Havia ainda um sótão misterioso e as gateiras sob a casa por onde entrava o ar e se escondia um coelho doméstico, mas que resolvera viver em liberdade, até que um dia…um cão estranho…o comeu.
Em volta da casa havia um grande largo, onde, quando nos deixavam corria de manhã à noite. O terreiro para além de ser sala de estar e de visitas, era verdadeiramente o coração da casa. Nada acontecia na casa que não se soubesse primeiro no largo e nada acontecia no largo que não se soubesse primeiro em casa.
Do lado de baixo (sul) do terreiro e num patamar inferior havia o quintal. Do lado este, a 40 metros, a ribeira, o cortelho dos porcos, o caminho para Soajo e Adrão. Foi neste caminho, junto ao pau do fio (poste com fio do telefone), que o meu pai, de cabeça perdida perante a recusa persistente do nosso burro “Cadete” em ir a Soajo trazer 2 garrafas de gás, disse ao Tio Chico da Florinda :
- Vá lá a casa e diga à minha mulher que lhe dê a pistola, que eu vou matá-lo!
Quando o Cadete ouviu isto, começou a andar, disposto a ir onde fosse preciso! Grande burro, o Cadete, ah!
Do lado Norte, o caminho para a Várzea e Paradela, o cortelho dos pitos, o caniço de varas, depois o dos cães à esquerda, a seguir, o das ovelhas à direita, a corte das vacas, galinheiro e o forno ao fundo, e por fim, lá no alto, sobre a esquerda, o dos burros. Era aqui que a burrinha branca do meu avô vinha parar quando o peso dos netos era excessivo. O primeiro fazia força com as mãos na padieira da porta e os detrás iam caindo uns por cima dos outros, enquanto ela se refugiava lá dentro, resguardada de nós, pelas pedras.
A oeste, o tanque, onde minha mãe lavava e estendia a roupa e nós tomávamos banho, bifurcando-se este, para a Mina e para o caminho de Cunhas e de Soajo.
A água era extraída duma mina, mesmo do interior da serra. Às vezes, às escondidas eu e meus irmãos aventurávamo-nos a descobrir-lhe as origens, mas quando ficava mesmo muito escuro e já não havia fetos e ervas e só se ouvia a água a correr pelas pedras, gritávamos a ouvir o eco, mas este era tão real que nós fugíamos dali, com medo. Mas saíamos de lá com a certeza que havia mais mundos e nós tínhamos entrado lá… Para mim foi sempre um espaço mágico e sedutor, que me enchia de admiração e respeito, aquela entrada no volumoso corpo da serra, rodeada de ervas e fetos, donde brotava água límpida e fresca… onde apenas se ouvia a água e uma leve brisa, ao fim da tarde…
Era no sótão que o meu pai tinha colocado o motor e as baterias, a nossa central eléctrica! O motor aquecia a gasolina mas continuava a roncar a petróleo, por ser mais barato. Como se enchia de carvão, muitas vezes o meu pai tinha de o limpar. Desmanchava as peças todas, parafusos, velas e bielas carburadores e filtros, limpava-as com petróleo e por fim, fazia o caminho inverso, voltava a montá-las, perante o ar duvidoso e divertido da minha mãe e a minha mais completa admiração. O que é certo é que quando ele puxava a corda e o motor arrancava um uivo ou um rugido, o meu pai exibia um sorriso de triunfo, semelhante ao de Deus quando a terra começou a girar pela primeira vez!
Nesta fase, o meu pai era um mágico eloquente! Uma vez deixou cair um pouco da água das baterias no meu braço. Admirado senti a irritação na pele. Como pode a água arder? Como pode a água subir numa mangueira e esvaziar o poço? Como faz para acender as lâmpadas, como sabe ele fazer sabão? Quem lhe ensinou a bater o ferro e a cortar a madeira? A fazer dobradiças e portas? E a crestar as colmeias? A fazer regos e plantar as couves e alfaces? A escavar o barro e fazer compressas? A escolher as ervas e fazer chá? A matar a ovelha e esfolá-la, a matar o porco e salgá-lo? Quantas histórias sabe ele? Como pode, como sabe… dar ao pé e ensinar a minha mãe a costurar na máquina, bater tão certinho nas teclas da máquina de escrever e ler as linhas que lá estão? Como sabe o nome de todos os trabalhadores? Eram tantos! A quem reza? Porquê? Como faz para desenhar aquele sorriso na face da minha mãe?
Como sabe o nome de todos os trabalhadores? Eram tantos! Porque lhe obedecem e o tratam por senhor?
Quando “davam o salto” para França, alguns homens confiavam-lhe o dinheiro, que entregaria aos passadores, mediante a apresentação duma carta recebida pela família, em como a viagem tinha corrido bem.
O meu pai sabia quem ia para França, ou para a América e ficava a olhá-los, seguia-lhes as pegadas com um sorriso … de esperança e de admiração. Alguns vinham despedir-se, alguns pedir dinheiro emprestado e outros confiavam-lhe o pagamento aos passadores. E gostava de ouvir os relatos deles quando vinham de férias. Aquilo era tudo à grande… e à francesa. O problema era a língua, os documentos, que eles apelidavam de “papéis” e o serviço militar. Aí o meu pai discordava : Primeiro faziam o serviço militar e depois de pagar essa dívida à nação, depois sim, podiam ir para onde quisessem. Alguns não podiam entrar legalmente e havia notícias que a GNR os tinha ido buscar a casa, mas só tinham encontrado gatos e aranhas…
Enfim, traziam muitas histórias, muitas aventuras dum povo tresmalhado por essas cordilheiras dos Alpes e pelas ruas de Paris, muitos francos e eu só me perguntava porque tinham de voltar e deixar outra vez a família, a mulher e os filhos…
Quando uns de Soajo foram para o Canadá, as mulheres, que costuravam na beira do largo em volta da casa em Ramil, sorriam duma forma brejeira, com olhares cúmplices e eu não sabia que terra era essa que só o nome arrancava sorrisos disfarçados, mas o meu mundo alargava-se para outros mundos… mesmo sem ter ido ao Canadá!
Ainda hoje me pergunto, porque não há mais histórias escritas, mais filmes, mais produção cultural e artística desse povo que deixou tudo e foi procurar uma vida melhor. Onde estão os autores dignos desta enorme aventura colectiva? Terá de ser a próxima geração a redescobrir esta gesta? Alguma vez foram homenageados nas festas do concelho, por exemplo? Quem sabe um dia ainda vamos ver a Casa das Artes com uma programação focada na emigração, ou um grupo de emigrantes de mala na mão, à noite, a descer o Vez, por baixo da ponte velha, pela mão do Mocuna?
Se os emigrantes fossem provenientes doutras classes sociais teriam o mesmo tratamento? Mas afinal foram os mais insatisfeitos e inconformados com o que a sociedade e a vida lhes reservava, os mais audazes e construtores de futuros, que partiram. Tomaram o destino nas mãos e participaram na construção doutras terras, doutras paragens e com isso re-inventaram-se enquanto pessoas e cidadãos, duma cidadania mais universal e geral.
Portugal tem vindo desde o sec. XV a ficar sangrado destes homens inconformados que arriscaram tudo, à procura do sonho duma vida melhor. Foi gente com ideias novas, iniciativa, projecto, missão, vontade de arriscar, coragem, que partiram e … poucos voltaram! Primeiro a carreira da Índia, depois o Brasil, África e finalmente a Europa e América!
Portugal seria concerteza um país diferente se este fermento, tivesse levedado cá, neste torrão pobre e isolado e tivesse produzido afinal … o milagre dos pães! Porque de milagre precisamos para re-inventar uma outra forma de nos olharmos, viver e construir uma sociedade onde comprar por 10 e vender por mil seja um roubo e ter um bom emprego não seja um local onde não se faz nada e se ganha bem, onde a justiça se entretém com os ladrões de galinhas e pune os que roubam as bicicletas. Onde a corrupção impera e cada um fica a pensar “ Se fosse eu, fazia o mesmo”. Onde no exame de admissão à Magistratura, os 170 candidatos copiaram descaradamente e no final têm 10 valores, porque não há tempo para repetir a prova!
Como ultrapassar esta doença que nos aflige?
Já julguei saber, mas hoje não sei. Cheguei a pensar que a Escola e a Educação poderiam ajudar a mudar a sociedade. Ingenuidade minha! Quem muda a escola é a sociedade. E a escola que temos cada vez mais se parece com a sociedade.
A sociedade pede à escola valores ou “canudos”?
Talvez os novos imigrantes dos países centrais da Europa, nos tragam outros valores, outra forma de estar mais próxima da cultura protestante, onde trabalhar e criar riqueza foram sempre valores! Sangue novo, sangue novo…
E se por um cálculo errado do destino de mãos dadas com o avolumar da crise mundial, os nossos emigrantes decidissem voltar? Como seria a vida neste cantinho à beira-mar, pobre e às vezes, mal frequentado?
6 - O meu tio António, filho do avô Marujo e da minha avó Ana, e portanto irmão de meu pai, também tinha frequentado a escola primária com o meu pai em Paradela. Fizeram o exame da 3ª e 4ª classe e frequentaram o Seminário de Godim, na Régua. Mais tarde, abandonou o seminário e fez o serviço militar, tendo ido com o meu pai para os Açores. Lá se enamorou, e casou com Maria Luísa, com quem teve 4 filhos, Cecília, Manuel, André e Ana. Seguiu a vida militar e chegou a Sargento Ajudante, posto em que se reformou. Era muito divertido e bem disposto, pregando grandes partidas aos amigos e à família. No intervalo das suas deambulações por Goa, Moçambique, Angola e Açores, visitava-nos e contava histórias fantásticas, quer com os “turras”, quer com animais da selva. Para mim ficou sempre a ser, o meu tio dos Açores.
Quando o visitei há uns 15 anos, no Faial, Horta, ficou muito contente e mostrou-me a ilha da Horta e os sítios pitorescos nos montes vizinhos. A muitos tinha renomeado, ou baptizado com nomes da serra de Soajo:
- Ali é a Saramagueira, acolá as Ínsuas, depois o Fojo da Cabrita, além o Fojo, o Alto da Pedrada, etc.… Lá morreu a olhar o mar e embalado pelas recordações da sua terra natal… o meu tio dos Açores!
O meu primo André vive na ilha das Flores! O meu primo Manuel foi militar, apoiante do “Grupo dos Nove” e hoje reparte a sua reforma por Mafra e pela ilha de S.Jorge. Ainda trabalhou 2 anos em Macau, como comandante da Polícia.
As minhas primas Cecília e Ana vivem em Braga.
7- O meu irmão Firmino um dia contou-me a sua aventura de como chegou “a salto”, a França. Como muitos emigrantes, sem saberem francês e sem um mapa em quem confiarem, lá atravessaram a Espanha a ferro e frio e chegaram a Paris. Dos bidonvilles até Versailles, e muitos anos depois, Paradela.
O meu irmão José Oliveiros seguiu os mesmos passos e encontraram-se em França, mas depois de casado resolveu procurar guarida nos USA. Até parece que repetia a história do avô Firmino. Mora em St. Lodi 85, New Jersey, com a esposa e a sua filha Sara.
É esta a parte mais globalizada da minha família. Mas podia ainda falar do meu primo Manuel que trabalha nos USA e do meu primo Francisco que trabalhou no Qweit e tem uma filha em Lisboa e outra em Andorra. Que surpresa, quando outro dia no facebook descubro uma Vera Rodas! Onde ? Na Andorra!
E pronto. Penso que só na Austrália e na Lua é que não tivemos contacto, mas com o tempo lá chegaremos!
Obs.
Na Net procurei pessoas com nome Rodas! Fiquei surpreendido! Na América do Sul, há montes deles. Perguntei a um, que era funcionário bancário se conhecia alguma ligação da família ao norte de Portugal. Disse que tinha feito a arvore genealógica até ao sec. XVII e não havia relação nenhuma.
Paciência… mas que são Rodas, lá isso são!
Oeiras, 15 Dezembro 2010

1 comentário:

  1. Bom dia Manél, gostei de ver a discrição e com factos e actos tão reais.
    Adorei, força

    Carlos Belchior

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