segunda-feira, 4 de novembro de 2024

A vaca cachena e o garrano da serra de Soajo

 


I- a vacaAhena


A raça bovina Cachena é uma espécie autóctone de Portugal, originária das serras de Soajo, no norte do país, uma região integrada no Parque Nacional Soajo-Gerês. A raça possui uma rica história de adaptação a condições desafiadoras em ambientes montanhosos e é considerada uma das mais pequenas raças bovinas do mundo.


História


A Cachena tem origens que remontam a séculos, sendo uma raça tradicionalmente criada por pequenos agricultores que valorizavam a sua rusticidade e a capacidade de sobreviver em terrenos pobres e de difícil acesso. O isolamento geográfico das serras ajudou a manter a pureza da raça, protegendo-a de cruzamentos com outras espécies. Durante o século XX, especialmente em meados do século, a população da Cachena enfrentou um declínio significativo devido à modernização da agricultura, introdução do gado de raça barrosã e à migração das comunidades rurais para áreas urbanas. No entanto, nas últimas décadas, com o interesse crescente por raças autóctones e a importância da preservação da biodiversidade, a raça Cachena experimentou uma recuperação, destacando-se como símbolo da tradição e sustentabilidade da região.


Características Físicas


A raça Cachena é reconhecida pelo seu pequeno porte, com uma altura ao garrote que varia entre 110 e 120 cm nas fêmeas e pode chegar a cerca de 130 cm nos machos. O peso é igualmente reduzido, com as vacas pesando entre 300 e 400 kg e os touros podendo atingir até 500 kg. Esta raça apresenta uma coloração castanha avermelhada, com tonalidades mais claras nas extremidades, como no ventre e na parte interna das patas. As suas longas e curvas hastes são uma das características mais marcantes, formando um arco elegante que lhe confere uma aparência distinta e imponente.


O focinho é de cor escura e os olhos têm um contorno escuro, conhecido como “óculos”, o que dá à raça um aspecto expressivo e atento. O pelo é curto e resistente, uma adaptação natural ao clima das montanhas, que inclui invernos rigorosos e verões relativamente secos.


Características Ambientais


A Cachena é uma raça extremamente adaptada às condições ambientais da Serra de Soajo, caracterizadas por terrenos acidentados e vegetação composta por matos, urzes, carvalhais e pastagens espontâneas. Esta região é marcada por uma forte variação climática, com chuvas abundantes durante grande parte do ano e temperaturas que podem oscilar bastante entre as estações.


A resistência e capacidade de alimentação da Cachena em pastagens naturais e de menor qualidade nutricional são notáveis. Essa habilidade contribui para a manutenção de ecossistemas equilibrados, já que a presença do gado ajuda na gestão da vegetação e na prevenção de incêndios florestais. Além disso, a criação da Cachena tem um impacto ambiental reduzido em comparação com raças de maior porte, sendo um exemplo de prática agropecuária sustentável.


Em resumo, a raça Cachena é um testemunho vivo da adaptabilidade e da harmonia com o meio ambiente. Com seu porte pequeno, aparência distinta e resistência notável, ela representa a tradição e a capacidade de viver em equilíbrio com a natureza, mantendo viva uma parte importante da herança rural e cultural do norte de Portugal.


Além das características mencionadas, a raça Cachena desempenha um papel cultural e econômico importante para as comunidades da Serra de Soajo e regiões circunvizinhas. Historicamente, a criação dessa raça era não só uma forma de subsistência, mas também um elemento central das práticas e tradições agrícolas da região. A Cachena era usada para trabalhos no campo, como lavrar, gradar e transporte, aproveitando sua agilidade e adaptabilidade ao terreno montanhoso.


Alimentação e Criação


O manejo da Cachena é maioritariamente extensivo, o que significa que os animais são criados em liberdade nos campos e pastagens naturais. Essa prática permite que a dieta da raça seja baseada em ervas silvestres, arbustos e outras vegetações autóctones, o que contribui para a alta qualidade da carne. Este tipo de alimentação também favorece a saúde dos animais, minimizando a necessidade de suplementação com rações artificiais.


As técnicas de criação são de baixo impacto ambiental e refletem um modelo de agricultura sustentável que tem sido preservado ao longo dos anos. Essa abordagem não só garante o bem-estar animal como também protege a biodiversidade da região. A presença da Cachena nos campos ajuda a manter as paisagens naturais e impede a degradação do solo por meio do controle da vegetação excessiva.


Qualidade da Carne


A carne da Cachena é altamente valorizada por suas características organolépticas. Ela é conhecida por ser tenra e ter um sabor distinto, resultado da dieta rica em vegetação natural e do crescimento lento dos animais. Isso confere à carne um perfil nutricional superior, com um equilíbrio entre gorduras saudáveis e proteínas de alta qualidade. Nos últimos anos, o interesse gastronômico pela carne de raças autóctones tem crescido, com a Cachena ganhando destaque em restaurantes e mercados que promovem produtos regionais e sustentáveis.


Conservação e Proteção


Apesar dos esforços de conservação e da crescente valorização da raça, a Cachena ainda enfrenta desafios relacionados à manutenção de populações estáveis. Projetos de preservação e parcerias com entidades públicas e privadas têm sido fundamentais para garantir a continuidade da raça. A designação de Denominação de Origem Protegida (DOP) para a carne da Cachena ajudou a promover o reconhecimento e a autenticidade do produto, incentivando a criação da raça e apoiando os produtores locais.


Iniciativas de conservação muitas vezes incluem programas de sensibilização para os agricultores, incentivos à criação extensiva e ações de promoção da carne de Cachena em mercados especializados. Tais projetos têm mostrado eficácia em atrair atenção e recursos para a preservação da raça, reforçando o vínculo entre tradição, ecologia e desenvolvimento econômico sustentável.


Importância Cultural


A Cachena transcende o valor econômico e ecológico, ocupando também um lugar de destaque no património cultural da região. Ela está presente em festividades locais, feiras rurais e celebrações que destacam as tradições agrícolas e pecuárias. As comunidades rurais veem a Cachena não apenas como uma fonte de renda e sustento, mas também como um símbolo de identidade e orgulho regional.

A minha tia Adelina não conseguia comer carne de vaca, porque ela entendia que eram animais amigos, da família. 

Na aldeia da vila de Soajo existia um seguro comunitário. Se uma vaca tivesse que ser morta, ou porque tinha partido uma perna, a espinha dorsal, ou por apresentar ferimentos graves do lobo, a comunidade comprometia-se a comprar alguns quilos de carne e, deste modo, memorizar o prejuízo do proprietário.

Lembro-me que ela escolhia ração dupla de palha de milho ou feno na noite de Natal e assim, também celebravam, acentuando a inclusão no círculo familiar.

Antes de colocar a canga, esfregava o pescoço das vacas com alho para afastar algum mau olhado e evitar que houvesse problemas durante a lavrada.


Monumentos, lendas e até contos populares mencionam essa raça, reforçando sua importância como parte da história viva da Serra de Soajo. Essa conexão entre o gado e a cultura local mantém viva uma herança que, de outra forma, poderia ser esquecida com o tempo.


Desafios Futuros


Apesar dos avanços, a Cachena enfrenta desafios, incluindo a concorrência com raças mais produtivas e a pressão da agricultura intensiva. As mudanças climáticas e a diminuição das áreas de pastagem também representam ameaças significativas. Contudo, o crescente reconhecimento do valor ecológico e da sustentabilidade associada à criação da Cachena tem trazido esperanças de que práticas mais conscientes e uma valorização contínua possam garantir o futuro dessa raça autóctone.


Em suma, a raça Cachena da Serra de Soajo é mais do que apenas um tipo de gado. Ela é um reflexo da interação harmoniosa entre o homem e a natureza, um testemunho de resiliência e uma peça vital do mosaico cultural e ambiental do norte de Portugal.


II-A transumância 


A prática da transumância, que se realizava durante séculos na Serra de Soajo, é uma tradição profundamente enraizada nas comunidades rurais dessa região, embora p, hoje, esteja em desuso. Trata-se de uma movimentação sazonal de animais, cachenas e e garranos, que consiste em levar o gado para pastagens na Serra, conforme as estações do ano. Essa prática é adaptada às variações climáticas e à disponibilidade de pastagens em diferentes altitudes, permitindo o uso sustentável dos recursos naturais e garantindo alimento suficiente durante todo o ano.


Como é Feita a Transumância


1. Planejamento Sazonal: A transumância é geralmente dividida em duas fases principais — uma de subida para as áreas de pastagem de maior altitude durante a primavera e o verão, e uma de descida para os vales e áreas mais abrigadas no outono e inverno. Isso assegura que os animais tenham acesso a pastos frescos e nutritivos durante a época de crescimento e proteção contra o frio extremo nos meses mais rigorosos.

2. Movimentação dos animais: Os criadores, muitas vezes em conjunto com familiares ou vizinhos, conduzia  a manada a pé pelas antigas rotas de transumância. Estas rotas eram bem definidas e foram transmitidas de geração em geração. Elas incluem caminhos tradicionais entre montes e vales, conhecidos por serem seguros e acessíveis para os animais. O trajeto pode durar de algumas horas a vários dias, dependendo da distância entre os pontos de partida e chegada. O gado era conduzido, desde Soajo até aos montes da Peneda, passando vários montes e ribeiros. Um dos habituais pastores, João Cucio, contou-me que era tão grande a manada que um dia, ao beberem, secaram o Ribeiro de Tibo.

3. Cuidados durante a Jornada: Durante o percurso, é necessário tomar cuidados específicos para manter o bem-estar dos animais. Isso inclui fazer pausas regulares para descanso e hidratação. As rotas muitas vezes passam por locais onde existem fontes naturais de água, permitindo que o gado se hidrate. Os criadores também verificam regularmente os animais para assegurar que nenhum esteja ferido ou debilitado.

4. Uso de Pastagens Comuns: Em algumas áreas, a transumância beneficiava da utilização livre dos baldios,  terrenos  comunitárias, onde vários animais de diferentes criadores pastam juntos. Essa prática tem raízes profundas nas tradições de cooperação entre as comunidades rurais, fortalecendo laços sociais e partilhando responsabilidades na vigilância e cuidado dos animais.

5. Alojamento Temporário: Durante a permanência nas áreas de maior altitude, os pastores podem usar abrigos rudimentares conhecidos como cortelhos, ou pequenas casas de pedra para passar a noite e se proteger das intempéries. Esses abrigos também servem de base para guardar ferramentas e suprimentos necessários para cuidar do rebanho.


Benefícios da Transumância


Sustentabilidade Ambiental: A transumância ajuda a preservar os ecossistemas locais, uma vez que promove o uso rotativo das pastagens, evitando o sobrepastoreio e favorecendo a regeneração da vegetação.

Conservação da Biodiversidade: A movimentação do gado contribui para a manutenção da biodiversidade, pois ajuda a controlar o crescimento de mato e previne incêndios florestais ao manter as pastagens limpas.

Saúde do Gado: A prática da transumância melhora a saúde geral da raça Cachena, pois proporciona exercício físico, ar fresco e uma dieta diversificada e natural. A mudança de pastagens e o movimento constante reduzem a incidência de parasitas e promovem o fortalecimento do sistema imunológico.


Desafios da Transumância


Embora seja uma prática tradicional com inúmeros benefícios, a transumância apresenta desafios, como a necessidade de trabalho árduo e a dependência de condições climáticas favoráveis. As mudanças climáticas e a alteração dos padrões de precipitação podem impactar a disponibilidade de pastagens e complicar o planejamento da transumância. Além disso, a modernização da agricultura e a migração de pessoas para as cidades reduziram o número de pastores e de famílias que mantêm essa tradição viva.


Preservação da Tradição


Nos últimos anos, houve um ressurgimento do interesse em práticas de transumância como parte de iniciativas para preservar o patrimônio cultural e a sustentabilidade ambiental. Programas de turismo rural e eventos festivos têm sido organizados para celebrar a transumância e educar o público sobre sua importância. Essas ações incentivam as novas gerações a participar e manter a tradição viva.


Em conclusão, a transumância da raça Cachena na Serra de Soajo é uma prática que combina tradição, conhecimento ecológico e cooperação comunitária. Essa movimentação sazonal dos rebanhos é um exemplo de como as práticas ancestrais podem se alinhar com a sustentabilidade moderna, garantindo tanto a preservação da raça quanto a proteção do ecossistema montanhoso em que ela vive.


IIi


Os cuidados de saúde e bem-estar da raça Cachena são fundamentais para garantir a longevidade e a produtividade desses animais, bem como para manter o equilíbrio dos ecossistemas em que são criados. A criação extensiva e a adaptação a um ambiente natural oferecem uma base saudável para a raça, mas ainda assim, os criadores devem estar atentos a várias questões de saúde e doenças comuns que podem afetar a Cachena.


Cuidados de Saúde e Bem-Estar


A Cachena é uma raça rústica e adaptada a condições ambientais adversas, o que contribui para uma robustez natural e resistência a muitas doenças. No entanto, a manutenção de uma boa saúde exige monitoramento regular e cuidados veterinários preventivos. Algumas das práticas essenciais de bem-estar incluem:


1. Vacinação: É importante seguir um cronograma de vacinação que proteja contra doenças infecciosas comuns, como a febre aftosa, brucelose e clostridioses. A vacinação ajuda a prevenir surtos e a manter a saúde coletiva do rebanho.

2. Controle de Parasitas: O pastoreio extensivo expõe os animais a parasitas internos (vermes intestinais) e externos (carrapatos, piolhos). A desparasitação periódica é essencial para evitar anemias, perda de peso e outras complicações associadas.

3. Nutrição Adequada: Embora a Cachena seja adaptada para se alimentar de pastagens e vegetação natural de menor valor nutritivo, é fundamental garantir que ela tenha acesso a alimentos que ofereçam os nutrientes necessários, especialmente durante períodos de escassez, como o inverno.

4. Água Limpa e Acesso a Abrigo: A disponibilidade de água fresca e limpa é indispensável, assim como a existência de áreas onde os animais possam se abrigar das intempéries, como chuvas intensas ou calor excessivo.


As vacas delimitavam um território, uma geografia do espaço preferido, quer durante os meses de inverno, onde todas as tardes procuravam o seu abrigo, nas cortes, quer durante os meses de verão, deslocando-se do sopé da serra para os locais preferidos no alto da serra. Elas podiam ir acompanhadas pelos seus donos, ou por sua opção. Memorizavam o caminho e o espaço de pastagem.Esse espaço era conhecido dos donos e deste modo servia como meio de comunicação. Durante o verão, os donos iam semanal ou quinzenalmente ver as vacas e saber se estavam bem, se já tinham vitelos e se mantinham agrupadas nesse território. 

Quando havia muitos vitelos os donos ficavam vários dias nos cortelhos construídos na serra com as pedras agrupadas em tição e com falsa cúpula.

Recolhiam pedaços de arbustos e paus com que acendiam o fogo para cozinhar ou para aquecerem o cortelho e afugentar o lobo.


Doenças Comuns


Embora a raça Cachena seja reconhecida por sua resistência, existem algumas doenças que podem afetá-la. A seguir, as doenças mais comuns e seus tratamentos:


1. Brucelose:

Sintomas: Abortos em vacas, febre, inflamações nas articulações.

Prevenção e Tratamento: A brucelose é uma doença bacteriana zoonótica que pode ser controlada com vacinação e testes regulares. Animais positivos devem ser isolados e eliminados, conforme as normas sanitárias. Não existe tratamento eficaz para a doença; a prevenção é a principal estratégia.

2. Parasitismo:

Sintomas: Perda de peso, anemia, fraqueza, pelagem opaca.

Prevenção e Tratamento: A desparasitação regular com produtos antiparasitários específicos é necessária. O manejo rotativo de pastagens também ajuda a reduzir a carga parasitária.

3. Doenças Clostridiais (como o Carbúnculo Hemático):

Sintomas: Inchaços dolorosos, febre alta, morte súbita.

Prevenção e Tratamento: A vacinação anual é crucial para prevenir essas doenças fatais. Uma vez contraída, a eficácia do tratamento é limitada, sendo os antibióticos uma opção somente em casos muito iniciais.

4. Dermatites e Infecções Cutâneas:

Sintomas: Lesões na pele, coceira, crostas.

Prevenção e Tratamento: Manter as áreas de pastagem limpas e minimizar a exposição a umidade excessiva ajuda a prevenir dermatites. Tratamentos tópicos com pomadas antibióticas ou antifúngicas, conforme o diagnóstico do veterinário, são comuns.

5. Doenças Respiratórias:

Sintomas: Tosse, secreção nasal, dificuldade respiratória.

Prevenção e Tratamento: Condições de frio e umidade aumentam o risco de doenças respiratórias. A vacinação contra pneumonia bovina e a melhoria das condições de abrigo ajudam a proteger o rebanho. Tratamentos incluem antibióticos e anti-inflamatórios, dependendo da gravidade da infecção.

6. Anaplasmose e Babesiose:

Sintomas: Febre, anemia, icterícia, letargia.

Prevenção e Tratamento: Estas doenças transmitidas por carrapatos podem ser prevenidas com controle rigoroso de parasitas externos. O tratamento envolve o uso de antibióticos específicos e agentes antiprotozoários.


Boas Práticas para o Bem-Estar


1. Monitoramento Regular: Inspeções frequentes ajudam a detectar sinais precoces de doença, como mudanças no comportamento, redução de apetite e perda de peso.

2. Higiene das Áreas de Pastagem: A remoção de resíduos e a manutenção de pastagens rotativas ajudam a prevenir o acúmulo de parasitas e doenças infecciosas.

3. Treinamento dos Criadores: Educar os criadores sobre as melhores práticas de manejo e saúde animal é crucial para manter um rebanho saudável.

4. Programas de Reposição de Minerais: Suplementos minerais ajudam a evitar deficiências nutricionais que podem predispor os animais a doenças.


Conclusão


Os cuidados de saúde e bem-estar da raça Cachena envolvem uma combinação de práticas preventivas, monitoramento regular e intervenção veterinária quando necessário. Embora sejam animais robustos e adaptados, os criadores devem manter um equilíbrio entre as tradições de criação extensiva e as modernas práticas de manejo, garantindo que a Cachena continue a prosperar como um símbolo de sustentabilidade e resiliência.




IV- O garrano das serras de Soajo e Gerês


A história dos garranos é rica e multifacetada, entrelaçando aspectos de sobrevivência, tradição e interação ecológica com o ambiente que habitam. A continuação dessa análise detalha como essa raça de cavalos interagiu com as comunidades humanas e o impacto que teve na moldagem das práticas culturais e sociais da região da Serra do Soajo e do Gerês.


Interação com as Comunidades Humanas


Durante séculos, os garranos tiveram uma estreita relação com as populações humanas das montanhas. Eram utilizados em diversas atividades essenciais para a sobrevivência e o desenvolvimento econômico das comunidades. Na agricultura, os garranos eram valorizados pelo seu trabalho árduo no transporte de lenha, pedras e outros materiais necessários para a construção de casas e muros de pedra típicos da região. Além disso, a sua resistência e agilidade tornavam-nos ideais para o pastoreio de gado em terrenos inclinados e pedregosos.


Essa interação não se limitava ao trabalho, pois os garranos também faziam parte de celebrações e rituais comunitários. Em certas festividades locais, era comum ver os cavalos participando de corridas ou demonstrações de força, simbolizando coragem e liberdade. Essa prática reforçava os laços comunitários e celebrava a importância desses animais na vida cotidiana dos habitantes das montanhas.


Mitologia e Lendas Locais


Os garranos ocupam um lugar de destaque na mitologia e no folclore das serras. Eles são frequentemente mencionados em lendas que misturam o mundo natural com o sobrenatural. Em algumas histórias, os garranos eram considerados os protetores das montanhas e vistos como seres quase mágicos, capazes de alertar os humanos sobre a presença de perigos, como tempestades iminentes ou a aproximação de predadores.


Uma das lendas populares conta que os garranos eram guiados por mouras encantadas, seres místicos que habitavam as colinas e protegiam tesouros escondidos. Diz-se que essas mouras apareciam em noites de lua cheia montadas em garranos, atravessando vales e montanhas com uma rapidez sobrenatural. Essa associação com figuras místicas reforçava a imagem dos garranos como animais especiais, dotados de uma espiritualidade que transcendia sua utilidade física.


O Garrano na Economia Local


Embora o papel dos garranos no trabalho agrícola e na economia das comunidades tenha diminuído com o passar do tempo, sua relevância para a economia local está sendo redescoberta através do turismo e de práticas sustentáveis. O turismo rural e o ecoturismo têm crescido na Serra do Soajo e no Gerês, e a presença dos garranos em estado selvagem é uma das atrações principais. Trilhas e passeios guiados são organizados para permitir que visitantes observem esses cavalos em seu habitat natural, promovendo a sensibilização para a necessidade de proteger a raça e seu ambiente.


Além disso, a carne de garrano tem sido um produto tradicional em algumas áreas e, embora o consumo tenha diminuído, a criação controlada e sustentável desses animais para a produção de carne de qualidade tem sido considerada por algumas comunidades como uma forma de valorizar a raça sem comprometer sua preservação.


Desafios na Preservação


A preservação dos garranos enfrenta vários obstáculos. Além dos desafios ambientais, como a degradação do habitat e a concorrência por pastagens com outras espécies, a falta de conscientização pública sobre a importância da raça contribui para sua vulnerabilidade. A caça furtiva e o abate ilegal para a venda de carne em mercados não regulamentados continuam a ser uma ameaça.


Esforços de conservação realizados por organizações locais e governamentais incluem a implementação de programas de monitoramento e criação de zonas de proteção no Parque Nacional da Peneda-Gerês. Projetos de pesquisa estão sendo realizados para estudar o comportamento, a genética e a ecologia dos garranos, a fim de apoiar estratégias de conservação que garantam a sua sobrevivência a longo prazo.


Contribuição Ecológica dos Garranos


A presença dos garranos tem um impacto positivo no equilíbrio ecológico das áreas montanhosas. Como herbívoros, contribuem para a manutenção das pastagens, ajudando a controlar a vegetação e a reduzir o risco de incêndios florestais, que são uma preocupação constante na região. O pastoreio natural que realizam limita a proliferação de plantas invasivas e permite que espécies nativas se desenvolvam.


Os garranos também fazem parte da cadeia alimentar local, servindo como presas naturais para o lobo-ibérico. A coexistência entre os garranos e os lobos reflete um equilíbrio delicado que existe há séculos, onde cada espécie desempenha um papel específico no ecossistema. Esse equilíbrio contribui para a preservação da biodiversidade e a saúde geral do ambiente.


Futuro dos Garranos


O futuro dos garranos dependerá de uma combinação de esforços de conservação, educação pública e estratégias de gestão sustentável. A promoção de atividades que incentivem o turismo ecológico e a conscientização sobre o valor cultural e ambiental dos garranos pode criar novas oportunidades para apoiar a sua preservação. Iniciativas comunitárias e colaborações com pesquisadores e conservacionistas são essenciais para manter viva a tradição e assegurar que esses cavalos continuem a ser um símbolo da resiliência e da beleza natural da Serra do Soajo e do Parque Nacional da Peneda-Gerês.


Em conclusão, os garranos são testemunhos vivos da história e do legado das comunidades serranas. Eles representam não só um elo entre o passado e o presente, mas também uma promessa de um futuro em que a convivência entre o homem e a natureza seja equilibrada e mutuamente benéfica.


Os garranos, embora sejam conhecidos por sua robustez e resistência natural às adversidades climáticas e ambientais, não estão isentos de enfrentar desafios de saúde. A vida em estado semi-selvagem e em áreas montanhosas expõe essa raça a uma série de doenças e parasitas, além de outros fatores que podem comprometer sua saúde e bem-estar. A seguir, é apresentada uma visão abrangente sobre as doenças mais comuns que afetam os garranos, os cuidados de saúde necessários e as estratégias de manejo para garantir a sua longevidade e preservação.


Doenças Comuns nos Garranos


1. Parasitoses Internas e Externas:

Endoparasitas: Vermes intestinais, como nematódeos, são uma ameaça comum que pode causar perda de peso, diarreia e anemia. A infestação pode ser mais prevalente durante os períodos de maior pastagem, quando os garranos têm acesso a áreas com vegetação densa.

Ectoparasitas: Carrapatos, piolhos e ácaros podem afetar a pele e a pelagem dos garranos, causando irritação, coceira e infecções secundárias. Esses parasitas também são vetores de doenças transmitidas por meio de picadas.

2. Doenças Respiratórias:

A exposição contínua a condições climáticas extremas e à umidade pode predispor os garranos a infecções respiratórias, como pneumonia e bronquite. As flutuações de temperatura e a exposição a ventos fortes nas montanhas também contribuem para o desenvolvimento dessas condições.

3. Doenças Gastrointestinais:

Problemas como cólicas, indigestão e enterites podem ocorrer, especialmente se os garranos consumirem alimentos contaminados ou inadequados. A ingestão de plantas tóxicas presentes em áreas montanhosas também é um risco que pode levar a intoxicações graves.

4. Laminites:

Embora os garranos tenham cascos fortes e adaptados para terrenos pedregosos, mudanças na dieta, especialmente o consumo excessivo de pastagens ricas em carboidratos, podem desencadear laminites, uma inflamação dolorosa que afeta os cascos.

5. Doenças Infecciosas:

Algumas doenças infecciosas, como a gripe equina e a rinopneumonite, podem afetar os garranos, principalmente em situações onde há contato com outros animais domésticos ou selvagens que podem ser portadores de patógenos.

6. Doenças Transmitidas por Vetores:

Os carrapatos e outros insetos hematófagos podem transmitir doenças como a babesiose e a anaplasmose, que causam sintomas de febre, letargia e anemia nos garranos.


Cuidados de Saúde e Manejo


Os cuidados de saúde dos garranos variam de acordo com o nível de contato que têm com os seres humanos. Nos casos de garranos em estado mais selvagem, os esforços de monitoramento e tratamento podem ser mais desafiadores. A seguir estão práticas de manejo que são essenciais para manter a saúde dos garranos:


1. Desparasitação Regular:

A desparasitação preventiva é crucial para controlar infestações de parasitas internos e externos. É importante que a administração de antiparasitários seja feita de forma periódica e rotativa para evitar resistência aos medicamentos.

2. Vacinação:

A vacinação contra doenças infecciosas, como a gripe equina e a rinopneumonite, deve ser considerada sempre que possível. Programas de vacinação em áreas de pastoreio controlado ajudam a manter a imunidade da população de garranos.

3. Monitoramento Nutricional:

Garantir uma dieta equilibrada é essencial para prevenir problemas como cólicas e laminites. Nos meses mais secos, a suplementação de feno de boa qualidade pode ajudar a manter a saúde dos garranos. O acesso a minerais e suplementos específicos é importante para reforçar o sistema imunológico.

4. Controle de Vetores:

Medidas preventivas, como o uso de coleiras antiparasitárias ou repelentes naturais, podem ser aplicadas em garranos que vivem em áreas sob gestão humana. O controle do habitat, eliminando locais propícios à proliferação de insetos, também é uma medida eficaz.

5. Avaliações de Saúde Periódicas:

Mesmo os garranos em estado semi-selvagem podem se beneficiar de check-ups veterinários realizados por especialistas em fauna silvestre. Inspeções periódicas ajudam a identificar sinais precoces de doenças e a implementar tratamentos em tempo hábil.


Tratamento de Doenças


O tratamento das doenças nos garranos depende da condição específica e da gravidade da doença. Em casos de doenças parasitárias, a administração de medicamentos antiparasitários é eficaz. Para infecções respiratórias e outras doenças infecciosas, antibióticos e anti-inflamatórios podem ser necessários. No entanto, é importante que os tratamentos sejam supervisionados por veterinários especializados em medicina de grandes animais ou de vida selvagem.


Para doenças mais graves, como a babesiose, o tratamento pode incluir o uso de medicamentos específicos que eliminam o parasita do sangue, além de cuidados de suporte, como hidratação e terapia nutricional.


Bem-Estar e Conservação


O bem-estar dos garranos está diretamente ligado às condições em que vivem. Garantir que tenham acesso a água limpa, sombra e áreas seguras de pastagem é vital. A proteção dos habitats naturais é fundamental para a sua sobrevivência e saúde geral. Esforços de conservação, como a criação de reservas naturais e o apoio a programas de preservação genética, contribuem para manter populações de garranos saudáveis e sustentáveis.


Concluindo, os garranos são uma raça de cavalos incrivelmente adaptada ao seu ambiente montanhoso, mas requerem cuidados e intervenções específicas para garantir sua saúde e bem-estar. A implementação de práticas de manejo responsável e programas de conservação é essencial para preservar essa valiosa raça, assegurando que continue a desempenhar seu papel no ecossistema e na cultura das serras de Soajo e do Gerês.


V-OS FOJOS E MONTARIAS


A importância dos fojos vai além de sua função prática original, estendendo-se para aspectos socioculturais e patrimoniais da Serra de Soajo e das comunidades vizinhas. Com o tempo, essas estruturas passaram a ser valorizadas não só por seu papel na defesa do gado, mas também como representações da capacidade humana de adaptação, resistência e cooperação diante dos desafios ambientais.


Impacto Social e Colaboração Comunitária


A construção e manutenção dos fojos eram realizadas em um contexto de forte colaboração entre os membros das comunidades. Em aldeias como as da Serra de Soajo, a dependência mútua era fundamental para garantir o sucesso de atividades como as batidas aos lobos. Este tipo de esforço comunitário fortalecia os laços sociais e promovia um senso de identidade coletiva.


A participação na construção dos fojos envolvia técnicas de engenharia rudimentares, mas eficazes, que eram transmitidas oralmente entre gerações. O conhecimento sobre onde e como construir essas armadilhas era estratégico, considerando fatores como a proximidade de rotas de lobo conhecidas e a acessibilidade da estrutura para os pastores durante as batidas.


Além disso, as batidas em si eram eventos marcados pela tradição e ritualismo. Em muitas comunidades, essas expedições eram precedidas por cerimônias que invocavam proteção e sucesso, incluindo preces, canções e a preparação de ferramentas específicas. Esse caráter quase cerimonial reforçava a importância simbólica do fojo como mais do que uma estrutura funcional, mas também um espaço de memória e resistência cultural.

Competia ao MonteiroMor, responsável pela Montaria Real, marcar a pedido dos lavradores e pastores, a montaria. O produto da caçada pertencia a Soajo e tinham de dar ao rei parte do valor da caçada. Os organizadores iam de porta em porta pedir pequenas contribuições para custear as despesas da montaria.


Estrutura e Tipologias Detalhadas


Os fojos podiam variar de tamanho e formato, mas todos eram projetados para manipular o comportamento do lobo, utilizando seus instintos naturais para levá-lo à armadilha. Os tipos principais incluem:


Fojo de cabrita (ou poço): Este tipo tinha um poço central profundo, onde o lobo caía ao seguir a falsa trilha deixada pelo animal ou o caminho forçado pela batida. Uma vez no poço, a profundidade e os muros altos impediam sua fuga.

Fojo de muros convergentes: Era uma estrutura com dois muros que formavam um ângulo e que se estreitavam até um ponto central. O lobo era conduzido ao longo dessas paredes até uma área fechada, onde ficava aprisionado. A construção exigia grandes blocos de pedra empilhados, formando barreiras resistentes e duradouras.

Fojo de armadilha oculta: Uma variação mais elaborada incluía fossas cobertas com galhos e folhas, escondendo a abertura para enganar o lobo. Quando o animal pisava na cobertura, caía na armadilha, impossibilitando a fuga.


Declínio dos Fojos e Mudança de Perspectiva


A partir do século XX, com o desenvolvimento econômico, a industrialização e a introdução de métodos mais modernos de manejo do gado, a utilização dos fojos começou a perder sua relevância prática. Além disso, com a expansão de políticas de proteção ambiental, como a proibição da caça indiscriminada de espécies protegidas, a captura de lobos passou a ser vista sob um novo prisma, que incluía a conservação da biodiversidade e o reconhecimento da importância ecológica do lobo-ibérico.


Este deslocamento de perspectiva levou ao abandono gradual das batidas e ao declínio do uso dos fojos. Muitos foram deixados à mercê do tempo, sendo engolidos pela vegetação ou danificados por erosão e intempéries. No entanto, o crescente interesse pela preservação cultural e a valorização das tradições rurais levou a esforços para documentar, restaurar e proteger essas estruturas como símbolos históricos.


Patrimônio e Conservação Atual


Hoje, os fojos são vistos como elementos patrimoniais importantes e são objeto de estudos arqueológicos e etnográficos que visam compreender melhor a relação entre humanos e lobos ao longo da história. Algumas iniciativas de turismo rural e programas de educação ambiental incluem visitas guiadas e explicações sobre o funcionamento e a história dos fojos, proporcionando uma visão mais completa das estratégias de sobrevivência das comunidades serranas.


A preservação dos fojos é também um lembrete da importância de um equilíbrio sustentável entre a coexistência humana e a vida selvagem. Enquanto os esforços de proteção do lobo-ibérico continuam em várias regiões da Península Ibérica, a história dos fojos serve como testemunho de uma época em que o manejo da fauna e a proteção do gado eram uma questão de sobrevivência. Hoje, em vez de serem símbolos de conflito, os fojos podem ser vistos como parte de um diálogo sobre conservação e respeito à herança cultural e ambiental.


Conclusão


Os fojos da Serra de Soajo representam um capítulo fascinante da história rural portuguesa, marcado pela engenhosidade e pela cooperação comunitária. Embora não sejam mais utilizados para sua função original, seu legado permanece vivo, contribuindo para o entendimento da adaptação humana ao ambiente e da interação histórica com a fauna local. A conservação dessas estruturas e a valorização de sua história ajudam a manter a memória de práticas que, em um passado não tão distante, foram cruciais para a subsistência de muitas comunidades rurais.