Deixo aqui mensagens e as minhas reflexões sobre os percursos por onde vou passando..."caminhante, não há caminho, o caminho faz-se caminhando..."
segunda-feira, 22 de outubro de 2018
quinta-feira, 18 de outubro de 2018
Caravana XVIII
É a necessidade que
nos move e empurra para a fala
Quando fomos atacados
Cada um gritou o seu
nome
Os atacantes não resistiram e fugiram
MRodas
Manuel de Amorim
Todos os dias Manuel de Amorim, soldado do 4.º
Batalhão de Infantaria* guardava aqueles instantes para sozinho conversar
consigo próprio, a pretexto de limpar a sua arma, a inglesa Lee-Enfield.
Bem sabia que agora na Flandres, a vida era
diferente. Havia a urgência da guerra e poucos eram esses momentos. Mas hoje
era outra coisa. Hoje era o perfume doce da memória, o manto terno da saudade.
Tinha recebido carta de Portugal e a
Lee-Enfield de 7,7 mm ganhou outro brilho. A patilha de segurança
enrolava-se-lhe nos dedos, como as mãos dela, depois da desfolhada. A culatra,
hoje, não era tão fria. Fria tinha sido a despedida, não a culatra.
Com o trapo sujo de óleo e ferrugem, voltou
afagar a coronha e a mira, limpando-lhe as lágrimas que a arma não sustinha.
Espreitou por ela e lá ao fundo já não havia inimigos. O que ontem seria um
campo revolvido de balas e bombas, parecia-lhe hoje um prado acabado de lavrar
nas veigas dos Arcos de Valdevez e amanhã um campo de flores de linho, onde se
dissolvia o perfume doce das suas liberdades no fim da romaria. O corpo a
dar-se e as almas a fundirem-se. Era a ode do amor que atirava para longe a
nudez crua da morte.
Lá ao fundo da trincheira, mas bem próximo de
si, o sorriso dela apertava-lhe a mão e o dedo no gatilho disparava abraços.
Sorriram-lhe os olhos em volta.
Alheados da sua rotina, alguns soldados
vigilantes, mantinham-se de pé, enquanto os outros descansavam.
..........
Desde que ele tinha partido, as tarefas da
lide doméstica mantinham-se inalteradas para Avelina da Conceição:
lavrar, esfregar, limpar, cozinhar.
Coser, ferver, mexer, arder.
Sair, decidir, resistir, repartir.
Por, sobrepor, transpor, dispor.
Conjugava a vida toda num único verbo: morrer.
Morria quando pegava na vassoura e quando a
arrumava.
Morria com a roupa suja nas mãos.
Morria a olhar para o forno, a descascar as
batatas, a dormir, a olhar pela janela a ver quem passa, a suspirar, a lavar-se
de vermelho, no riacho.
O corpo renegava as lides e as lides
questionavam o corpo com murros na alma.
Maldito campo de flores de linho, onde se
dissolvia o perfume doce das tardes soalheiras.
Maldita guerra!
Manuel
de Amorim, soldado do 4.º Batalhão de Infantaria; nascido a 25 de Dezembro de
1895 no lugar da Tavarela, freguesia de Santa Maria de Távora, filho de
Domingos António de Amorim e de Avelina da Conceição; embarcou para França a 22
de Abril de 1917; faleceu em combate a 9 de Abril de 1918, na I Guerra Mundial.
terça-feira, 9 de outubro de 2018
El camiño
Do amigo Carlos Silveira mais uma excepcional produção
https://vimeo.com/293482547
Amigo, mais uma vez, muitos parabéns! As imagens, a música e as personagens ocasionais dão me um colorido das tuas expectativas, um regresso às origens...então aquele nevoeiro, a chuva acrescentam o mistério do caminho que há em cada um de nós. Uma viagem ao principio e no principio era o verbo e a imagem.
Abraço
Região desconhecida
Este mês verifiquei o aparecimento dum novo país, onde existem vários leitores (43) deste blogue: REGIÃO DESCONHECIDA.
Como vêm ainda há muita terra a descobrir!
Obrigado amigos leitores!
Como vêm ainda há muita terra a descobrir!
Obrigado amigos leitores!
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Região desconhecida
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domingo, 7 de outubro de 2018
O baú do meu avó
O meu avô, Firmino da Piedade Barbosa, guardava nesta caixa amarelo sujo de castanho e branco,
Guardava documentos, testamentos e escrituras, declarações débitos e créditos e cartas de amor.
Tinha um fundo falso, onde escondia adivinhações, presságios e lengalengas de cortar a dada.
A caixa tinha ido vazia com ele para Cuba e regressou com ela cheia de dólares e papéis. Ficava em cima dum armário na sala. Todos olhavam, mas só o meu avô a via.
A caixa do meu avô, apesar de estar vazia, nunca deixou de estar cheia.
A caixa sobreviveu-lhe.
Deve andar por aí!
MRodas
Oeiras 7 out.
Velharias
Desperdiço o tempo de agora, à procura do tempo ido. Apenas encontro o supérfluo, às vezes curioso,...
Observo a história dos objectos, as soluções encontradas, propostas ousadas e algumas ridículas.
São os filhos e os netos que vendem o supérfluo dos avós. Os avós não eram supérfluos, o tempo dos avós é que era supérfluo, porque não está presente. Não é um agora.
Da mesma forma o meu tempo e os meus objectos serão supérfluos, quando o sol se puser e...começar a chover o frio.
Será de esperar algum dia pela vingança dos objectos supérfluos?
Boff diz que sim!
MRodas,
7 out. Carcavelos
7 out. Carcavelos
sábado, 6 de outubro de 2018
Caravana XVIII
O cego estava sentado numa caixa escura e feia. Sentava-se nela de madrugada e levantava-se à noite para ir dormir.
As pessoas passavam na indiferença da rua. Apenas as crianças e os velhos se demoravam a olhar.
Um dia o cego morreu sentado mesmo em cima da caixa. Foi um dia igual aos outros naquela rua, onde passava muita gente, mas apenas os velhos e as crianças olhavam.
Uma criança abriu a caixa, mas foi um homem gordo que gritou: Ė ouro! Está cheia de ouro!
Foi neste momento que a caravana chegou!
MRodas
6-10
sexta-feira, 5 de outubro de 2018
quarta-feira, 3 de outubro de 2018
domingo, 30 de setembro de 2018
sábado, 29 de setembro de 2018
quinta-feira, 20 de setembro de 2018
Os figos na lua
Os figos na lua
Um dia estavam todos à mesa e quase no final, o pai disse:
“Pelas minhas contas hoje devia chover” - e sorriu. Aliás sorriram
todos, uns mais que outros, pois ouviram-se até gargalhadas da mãe.
- Tás maluco, Zé! Hoje, em agosto com este dia de sol? Falta fazia, lá
isso fazia...
“Pois sim, devo ter-me enganado - disse o pai. Devo ter tirado mal as
têmporas”.
- As têmporas? O que é isso? –perguntaram todos.
O pai lá explicou que de Santa Luzia ao Natal, assim vai o ano de igual
a igual. A cada um desses doze dias, corresponde um mês do ano seguinte. A cada
manhã, a primeira quinzena e a cada tarde a segunda quinzena e assim até se
chegar à previsão de cada dia do ano. E insistia que devia chover de tarde.
Mais riam todos com a previsão tresloucada do pai.
O dia ia passando e ainda antes da merenda já o céu estava todo cheio
de nuvens. Na cara do pai ia aumentando o ar vitorioso, em contraste com a mãe
que meio desconfiada, não percebia bem o que se estava a passar, mas já olhava
para o marido com alguma admiração. Mesmo que não chovesse, a confirmação da
previsão do marido, com o céu carregado
de nuvens, no inicio de agosto, era obra.
Dali a pouco todos tiveram que fugir para dentro de casa. Chovia que
deus a dava.
- É uma bênção, dizia mãe.
“ Afinal a têmpora estava certa, dizia o pai.
E assim ia ganhando créditos perante a esposa e os filhos.
Já no primeiro dia de agosto o pai dizia, primeiro de agosto, primeiro
de inverno.
Ele barafustava perante semelhante ameaça, não diga isso, pai, não diga
essas coisas.
Era das piores coisas que lhe podiam dizer, não tanto pela entoação,
mas mais pelo significado. O fim do verão representava o regresso à aldeia, ao
fim do sol, dos banhos no rio, da serenidade natural da vida, O inverno, pelo
contrário, era o regresso ao mundo das trevas, das ameaças, dos castigos, do
isolamento, da separação, do frio.
Desde que o pai assim falava, todos os dias perscrutava nas nervuras
das folhas das árvores, ou arbustos, algum sinal que indicasse alteração da
cor. O amarelo das folhas, e mais tarde, em setembro, toda a variação de
amarelos, castanhos e vermelhos, significavam a concretização do dito, ou
ameaça do pai, era o inverno que se anunciava.
Não valia a pena empurrar o tempo para trás ou impedir que avançasse.
Era uma luta perdida e inexoravelmente, ele percorria-nos a todos,
arrastava-nos com ele, não valia a pena insistir. O melhor era mesmo ignorá-lo.
Bastava olhar a alteração progressiva das cores, nas plantas, nos
caminhos, até na roupa.
Dum dia pra o outro estava na aldeia em casa dos tios. O verão tinha
terminado. Todos se admiravam, tinha crescido, as férias tinham-lhe feito bem e
parecia outro.
Ele não via diferença nenhuma, tudo se mantinha igual. Tudo.
Os tios, em conluio com a natureza, esperavam que os figos
amadurecessem ao mesmo tempo que ele regressasse à escola. Em outubro, os figos
reluziam com o mel a chamar por quem os comesse.
Subia à figueira grande, junto à casa e sobranceira à fonte. Levava
numa mão um balde de plástico, o primeiro que se tinha visto por aquelas
bandas, e ouvia com um sorriso, o que o tio lhe dizia. Tem cuidado, olha onde
pões os pés, não andes na lua, segura-te bem, olha que se cais não há quem te
salve!
Ele subia do muro para o tronco, agarrava-se aos ramos e sabia que
naquele instante era o herói da história. Eles não podiam subir, não podiam
fazer o que ele fazia, subir aquele castelo verde, cheio de figos, olhar o
horizonte, que se espraiava desde o Cubão, na serra de Soajo, à serra Amarela. Não
podiam ver o que ele via, nem sentir o que ele sentia. Não havia quem o
salvasse.
Apanhava os figos, ouvia o tio dar-lhe conselhos de segurança, mas já
ia nas nuvens dos desejos, rei daquelas paragens, herói destemido das montanhas
a voar com um balde de figos, em direção à lua. E se não voltasse?
Quando regressava de balde meio, sabia que a experiência se ia repetir
mais 3 ou quatro vezes. Da próxima vez, havia de voar mesmo e quem sabe, ficar
na lua para sempre, ou entrar-lhe pela janela dentro e assustá-la. Ou somente
dizer-lhe, queres vir aos figos? Definitivamente, não havia quem o salvasse.
A tia estendia os figos na mesa da sala e mais tarde na varanda da porta
rasa. Ali iam secando os que restavam do desejo, a conta gotas.
E tinha a certeza que o olhar deles era de reconhecimento e de dádiva.
Tinha feito o que se esperava dele, subir à figueira e apanhar figos.
Havia algo de que os tios não eram capazes e o pai não tinha previsto, apanhar
figos na grande figueira e viver na lua.
Oeiras
MRodas
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