quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Manuel de Amorim

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Todos os dias Manuel de Amorim, soldado do 4.º Batalhão de Infantaria* guardava aqueles instantes para sozinho conversar consigo próprio, a pretexto de limpar a sua arma, a inglesa Lee-Enfield.
Bem sabia que agora na Flandres, a vida era diferente. Havia a urgência da guerra e poucos eram esses momentos. Mas hoje era outra coisa. Hoje era o perfume doce da memória, o manto terno da saudade.
Tinha recebido carta de Portugal e a Lee-Enfield de 7,7 mm ganhou outro brilho. A patilha de segurança enrolava-se-lhe nos dedos, como as mãos dela, depois da desfolhada. A culatra, hoje, não era tão fria. Fria tinha sido a despedida, não a culatra.
Com o trapo sujo de óleo e ferrugem, voltou afagar a coronha e a mira, limpando-lhe as lágrimas que a arma não sustinha. Espreitou por ela e lá ao fundo já não havia inimigos. O que ontem seria um campo revolvido de balas e bombas, parecia-lhe hoje um prado acabado de lavrar nas veigas dos Arcos de Valdevez e amanhã um campo de flores de linho, onde se dissolvia o perfume doce das suas liberdades no fim da romaria. O corpo a dar-se e as almas a fundirem-se. Era a ode do amor que atirava para longe a nudez crua da morte.
Lá ao fundo da trincheira, mas bem próximo de si, o sorriso dela apertava-lhe a mão e o dedo no gatilho disparava abraços.
Sorriram-lhe os olhos em volta.
Alheados da sua rotina, alguns soldados vigilantes, mantinham-se de pé, enquanto os outros descansavam.
..........
Desde que ele tinha partido, as tarefas da lide doméstica mantinham-se inalteradas para Avelina da Conceição:
lavrar, esfregar, limpar, cozinhar.
Coser, ferver, mexer, arder.
Sair, decidir, resistir, repartir.
Por, sobrepor, transpor, dispor.
Conjugava a vida toda num único verbo: morrer.
Morria quando pegava na vassoura e quando a arrumava.
Morria com a roupa suja nas mãos.
Morria a olhar para o forno, a descascar as batatas, a dormir, a olhar pela janela a ver quem passa, a suspirar, a lavar-se de vermelho, no riacho.
O corpo renegava as lides e as lides questionavam o corpo com murros na alma.
Maldito campo de flores de linho, onde se dissolvia o perfume doce das tardes soalheiras.
Maldita guerra!

Manuel de Amorim, soldado do 4.º Batalhão de Infantaria; nascido a 25 de Dezembro de 1895 no lugar da Tavarela, freguesia de Santa Maria de Távora, filho de Domingos António de Amorim e de Avelina da Conceição; embarcou para França a 22 de Abril de 1917; faleceu em combate a 9 de Abril de 1918, na I Guerra Mundial.


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