Mostrar mensagens com a etiqueta RAMIL. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta RAMIL. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Os mouros


Havia um rio onde tomavam banho nos dias quentes de agosto. Havia um pessegueiro que dava pêssegos carecas e ali a vida parecia ser calma e o sol punha-se sempre com tristeza, no final do dia.
- Deixa lá, amanhã já volta outra vez!
E se um dia não volta? Seriamos capazes de viver às escuras?
Um dia apareceram lá em casa um homem e a mulher com ares estranhos de naturistas. Não comiam carne, nem bebiam vinho. Traziam pouco pertences, uns panos e… um livro de S. Cipriano. Dormiram em casa e toda a noite falaram, falaram com o guarda e com a mulher. Incendiaram-lhes a alma na promessa de tesouros, fadas e mouros e mouras. Eles sabiam o sítio, o local exato, assinalado no livro. Também sabiam as palavras e rezas, ou orações para desencantar o que estava encantado. Precisavam de braços e enxadas para desenterrar o enterrado e prometido. Mas as crianças não podiam ir.
Às crianças tudo lhes acontece. As únicas que acreditam em tesouros escondidos e são as únicas que não podem ir…
- Conte mãe, como foi?
- O homem levava um papel na mão com uma cruz. Quando lá chegaram, voltou a ler o livro e depois de muito olhar em redor, em silêncio, fez uma cruz no chão descampado e disse: É aqui!
- Disse só é aqui? Não disse mais nada? E como sabia que era ali?
- Via no livro. Os outros dois homens que foram connosco, começaram a escavar, enquanto ele lia baixinho o livro e a mulher dizia coisas que não se percebia. Passado algum tempo apareceram quatro ramos de árvore com as pontas viradas para o centro.
- Quem as virou, mãe?
- Sabe-se lá! Depois de escavarem mais, com o homem a ler o livro e a mulher a rezar, apareceu um sapo.
- Um sapo? O sapo pode viver assim debaixo da terra?
- Parece que sim. Ele estava lá e atiraram-no para longe. E continuaram a escavar. E só apareceram uns cacos de barros, duns pratos ou coisa parecida.
- E o tesouro?
- Não apareceu nada, mas que há coisas há!
Benzia-se a mãe, enquanto o pensamento lhe fugia para outros tesouros.
- Podem já outros terem descoberto e levado o tesouro?
- Se calhar é o mais certo, mas como eles sabiam que era ali? Há cada coisa…
Afastava-se para tratar da roupa ou da comida.
Mas os filhos ficavam a pensar nos tesouros perdidos. Seriam de ouro e prata, mais prata ou mais ouro? Diamantes, pérolas e rubis… E os mouros que lá o deixaram. Fugiram à pressa, perseguidas por cavaleiros. Teriam tempo de levar os filhos e as mulheres? Teriam voltado e levado o tesouro às escondidas?
Não sabiam. Mas à noite depois de calcorrearem a serra e ingerido uns bons quilos de medronhos vermelhinhos, de sabor a mel, as pernas trémulas e amaldiçoadas pelo espírito dos mouros traíam o equilíbrio. Na cama voltavam os mouros, às risadas, em confraternização com os pais, na cozinha. Só os arrotos a medronho embalavam estes sonhos. Até de madrugada. Novo sol, novo dia, novas promessas. De quê? 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O Tone Do Vale e a Maria Tola



O homem andava descalço no verão e no inverno. Sabia de cor as nervuras das pedras do caminho, a profundidade das poças de água, enquanto as giestas do caminho lhe fustigavam as pernas, por baixo das calças rotas. Trazia às costas um saco de pano sujo, que segurava com uma mão fechada e a outra presa a um varapau, a prever as arestas das pedras. Já tinha pouco cabelo e o que permanecia era muito raro, por isso a testa brilhava até ao alto da cabeça. Ele quase não falava, só fazia um esgar, não sei se a rir para fora ou a chorar para dentro. Às vezes, incitado pelas gentes, de braços abertos e de olhos revirados ao céu gritava,
Meo deos, meo deos !...
Ninguém sabia se era um grito ou uma súplica. As mães sustinham o leite nos seios, enquanto se persignavam e as mulheres faziam uma cruz no pão que levedava na masseira, enquanto murmuravam,
Ai nossa senhora, valha-me deus.
Ele babava-se, uma baba que vinha de dentro e afastava a gente para trás. A aba do casaco ou da gabardine que lhe tinham dado estava escura da baba e sarro. Tudo o que tinha era lhe dado. As calças desfeitas a meio da canela, a camisola suja de todas as gorduras do mundo, só o cheiro tinha sido conquistadas pelo suor dos caminhos e a incompreensão das gentes.
Corria as aldeias todas em redor e pelas contas do Ti João Martins demorava seis meses a voltar. Quer dizer, só aparecia lá duas vezes por ano, uma no outono e outra no final da primavera, como se fosse um cometa, com a sua linda cauda, diria a Bela! Nas outras estações calcorreava outros caminhos, outras aldeias, recolhia o que lhe davam e as pessoas agradeciam não ser como ele e não ter ninguém na família como ele.
Nas outras estações aparecia a Maria Tola. Assim, a aldeia tinha todas as estações o seu espetáculo, o seu divertimento, as risotas e a lembrança dos temores e desgraças.
Ai Jesus, valha me Deus!
As mães benziam-se, mas se não eram mães riam-se e desafiavam a Maria Tola,
Dança Maria! Então canta!
A Maria animada por fios e vontades invisíveis dançava e fazia esvoaçar as saias rotas e os pés descalços. E cantava numa voz esganiçada, uma oitava acima e ria-se ria-se…
De que te ris, Maria?
Alguém havia de trazer um bocado de pão, oferecer um caldo de farinha, um chouriço ou uma malga de vinho para o caminho. A Maria Tola também tinha uma saca e muitos trapos escuros como a vida que levava, que esvoaçavam quando dançava ou quando corria atrás da criançada que lhe chamava Maria Tola Maria Tola! Tola, Tola!
Ele ficava a olhar quando ela abria as pernas, puxava a saia com a mão para a frente e uma fonte, cascata, rego de água precipitava-se num ruído e no chão claro e seco regurgitavam as bolhas amarelas cheias de ar.
Tola? Quem não ficaria tola depois de ficar sem filhos e ver o marido morrer-lhe nos braços? Tola era a possibilidade de continuar a respirar sem respirar, a andar parada e dormir acordada. Corre Maria, corre Maria, acode aos filhos e ao marido… acode Maria. Bebe Maria. Corre Maria!
Às vezes ensaia uma gritaria a ralhar com Deus e o destino, que lhos tinha tirado. Atira com palavrões e demais palavras ríspidas que só terminavam quando ouvia,
Pronto Maria, vá acalma-te, já passou, já passou.
Mas baixinho ele ouvia-a dizer,
nunca passa, por mais que ande e grite nunca passa. Eu vejo-os a morrer á minha frente e o homem no colo a esvair-se, a revirar os olhos a pedir ajuda e eles mortos com a face branca e uns bugalhos brancos nos olhos e uma pontinha de sangue no canto da boca. Mortos. Não passa. Nem os gritos, nem as lágrimas e o choro. Não passa, mas eu aguento, isto é, grito para dentro e rio para fora e outras vezes, quando ninguém vê, faço ao contrário, grito para fora e nunca rio. Choro sempre esta mágoa que não me sai do corpo e me arrasta de caminho em caminho, de aldeia em aldeia, de grito em grito.
Eles não eram de lado nenhum. Passavam pela aldeia e só se demoravam enquanto queriam. No resto do tempo apanhavam sol, esqueciam o passado e corriam os caminhos, fios da serra, à espera de alguém que os libertasse da maldição. Eles nada tinham, apenas eram. Eles já não queriam ser libertos, eles já eram a maldição. Eram livres.
Quando passavam por ele, sorriam, mas ele tinha um medo que só passava quando ouvia,
O Tone do Vale já não anda aí, não o tenho visto! Então já foi embora! Coitado!
Também não a tenho visto, a Maria Tola! Coitada!
Livres, andar pelos caminhos sem destino e todos os dias ver o sol a nascer e a água a correr nos rios e riachos que haveriam de ver… sempre de olhos nos olhos. Afinal era possível…

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Os funileiros



Ao ver o amolador na minha rua não pude deixar de pensar nos funileiros, que chegavam sem serem convidados. Era assim:
Ao Eiró chegaram os funileiros. Uns saltimbancos andarilhos, uns burros sujos e de pelo comprido, num passo lastimoso de quem vem de longe, vai para outro sítio e volta aos sítios por ainda há-de passar, ou ainda ninguém esteve.
Os quatro homens e várias mulheres com roupas sujas, que lhes tapam o corpo e escondem a miséria. As faces são escuras de fumo e os cabelos sujos do pó do tempo. O Ti Diogo empresta o curral para as bestas e a arrecadações para os donos. A criançada deles não vai à escola, anda por ali a apanhar uns gravatos pró lume e a olhar com curiosidade tudo que mexe.
Os homens assentam arraial no Eiró. As mulheres trazem-lhes os pratos partidos, as asas deslocadas das panelas ou cântaros, os garfos tortos, as colheres rotas e as carteiras vazias. Eles concertam e consertam com “gatos”, dão um jeito no jeito das gentes. Assim pudessem eles apaziguar as almas e as vidas. Nunca dizem não ou é impossível. Só,
Vamos ver dona, vamos ver.
E com fogo, uns alicates, corta folhas, furador, esticador e o lábio inferior preso contra os dentes do maxilar superior, o olho direito mais cerrado, a força faz o engenho e o engenho faz a sorte de endireitar a peça. Com “gatos” nos pratos? Sim com gatos, admira-se ele, que pensava que gatos eram só aqueles que andavam pelos caminhos a miar, espiando os cães e os ratos.
Trocam-se as mãos nas moedas dadas e recebidas, mas não se cruzam os olhares. Eles não são daqui. Estão aqui e logo partem para outro sítios onde hão-de voltar e assim sempre, até os filhos e os netos continuarem a peregrinação ou maldição. Sabe-se lá até que geração!
Ele fica a olhar o tempo todo. Partiria com eles, de boa vontade, a ver o mundo. Aprenderia a concertar o partido e o rachado, daria brilho ao ofusco, e faria rir todos os tristes. Mas não pode. Ele agora tem um plano.
Queres um apito?
Faz que sim com os olhos. Um apito faz sempre falta a quem não tem nada e não sabe assobiar. O homem dobra um resto de lata, acrescenta-lhe o bocal e diz,
Põe os dedos de lado para tapar o ar. Sopra!
Soprou e nasceu o som. O som cresceu dentro dele, passou o Eiró, a Lage do Caminho, desceu ao Cruzeiro e ao Santo e foi preciso mandá-lo calar. Nunca mais o som se calou. Quando o som voltou ao Eiró, já os almocreves tinham partido. Não teve tempo de se despedir.
Foi à Laja da Coca e soprou, soprou na esperança de que o ouvissem na Portelinha. Ainda quis ir à Boucinha mas chamavam da escola e ia começar a fila interminável de letras e sons, em silêncio. Muito silêncio!
Precisava pensar no plano! Ele tinha um plano!
Oeiras, Jan 2012

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O BOI DO POVO



A aldeia tem um boi. É o boi do povo. O boi não é de ninguém, é de todos. Quando ele olha para o boi não sabe se deve sentir tristeza, por o boi não ser de ninguém e não ter cuidados particulares de ninguém, nem afagos, nem promessas ou esperançasde ouvir dizer,
Aquele é omeu boi… é bonito o meu boi!
Quando lhe deitam a palha, atiram-na com desprezo,
come boi!
O melhor épara as suas vacas e outros animais e só por fim, os restos é que são para oboi! Se adoecesse quem trataria do boi? Quem diria ao boi que o dia seguinteiria ser melhor que o passado? Quem faz festinhas nos cornos do boi?
Quando fecham a porta, não vão segunda vez verificar se a porta está fechada. Empurram a taramela e pronto, viram costas, apanham o gávedo e amanhã outro que o trate. É um dia cada um. Não é o meu boi. É só o boi dopovo! Quando estão na cama a olhar para a vida e a fazer contas aos animais, o boi do povo não entra nos sonhos. O boi do povo não é de ninguém. É do povo.
Ele não sabe se devia ficar contente por o boi do povo não ser de ninguém. Assim, o boi vai para onde quer, fala com quem quer, não tem que dar contas a ninguém. Come oque lhe dão, não é obrigado a trabalhar para ninguém, não sofre maltratos de ninguém, não chora por ninguém e ninguém chora por ele. Não pertence a ninguém!É só o boi do povo!
Para queserve o boi do povo?
Para fertilizar as vacas e os sonhos de prosperidade dos donos. Se a Bonita andar ao boi em janeiro vai parir em setembro e nessa altura com as primeiras chuvas nascem ervas novas. É mais um vitelo a vender em fevereiro ou março. Ou a criar,se for uma cria bonita.
A minha vaca não anda ao boi. O raio do boi não presta. Já lhe deu três saltos e não pega.Muda de boi. Ou muda de vaca.
No Eiró, nocurral do ti Diogo a vaca já olhou para o boi. Agora já não olha. Quem olha são as mulheres do povo com um ar lascivo e inquieto, ruborizado, inchado, húmido.O boi olha para as mulheres e para a vaca. O boi vê os olhos das mulheres, mas não vê os olhos da vaca, que está virada para a frente a rasgar uma cana de milho,nervosa,
Eh! Boi, vai lá boi!
O boi sabe o que esperam dele. Ele sabe porque é o boi do povo! Com o focinho pousado em cima do rabo da vaca, o boi dá um salto e fica com o peito apoiado na vaca que não se mexe! O boi flete os quadris, e faz ondular a espinha, uma, duas, três vezes.
As mulheres do povo, mais ruborizadas, riem-se nervosas, cada vez mais inchadas e mais húmidas!
Eh! Boi, vai lá boi!
O boi vai lá. Faz-lhes a vontade. A elas e á vaca, que parou de rasgar a palha e agita a cabeça nervosa. O boi do povo ainda volta lá e lentamente deixa-se descair ao lado da vaca, com o pescoço a escorregar devagarinho, a acariciar com ternura esquiva a barriga da vaca, a olhar para as mulheres, que aos poucos vão deixandode rir, com este salto deve ter ficado. Vamos ver, se continuar a correr luas, vendo-a na feira de Soajo.
De pé, emcima do muro do Ti Diogo ele olha para o Ti João Martins, sentado nas escadasdo Ti Curto, a apreciar o boi do povo e as mulheres do povo em silêncio, a enrolarum cigarro, enquanto um sorriso maroto se desenha na cara, que se mantém até àterceira baforada e esmaece na quarta, quem sabe a pensar nos tempos que passouem Sintra!
Ao boi dopovo ninguém o vende, enquanto continuar a fertilizar as vacas e os sonhos dasdonas das vacas, que têm os maridos longe, em Lisboa ou em França!
João, anossa Bonita trouxe uma linda cria. Quando vieres decidimos se a vendemos ou acriamos! Beijos e abraços desta que mal aguenta com saudades tuas!







quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O TEU NOME



Deves ter um nome, pelo qual te reconheça e os outros te saibam.
Um nome que diga quem és. 
Um nome que evoque em mim o que sinto por ti, de cada vez que sussurrar o teu nome a tua imagem me apareça delineada num contorno de luz, azul ou de todas as cores. 
Um nome que me ligue a ti através de sons e imagens, como vem nos livros.
Os nomes estão lá e nós vamos direitos a uns e não paramos noutros. E só os que lemos nos fazem falta, só eles querem ser lidos e se oferecem de dedo no ar, olhos ansiosos á espera que eu repita os nomes, os olhos a oferecerem-se e as mãozinhas no ar a dizer, aqui, aqui ! E eu a sorrir, a afastar uns e a procurar o teu nome.
O teu nome sobrepõe-se pela definição dos contornos, pela luz que brilha sempre da mesma forma, de noite ou de dia. 
O teu nome. Soletrado baixinho para não me enganar. Sussurrado na minha almofada, a olhar para a nogueira, que a minha mãe há de mandar cortar. 
O teu nome nasce-me, vem lá de baixo e com pinças invisíveis sustem as pregas da minha boca e num bailado solta o ar que me vem de dentro e o teu nome sibila nas arestas secas dos meus lábios frios frios e o bafo faz figuras de dança nas vidraças do meu corpo, enquanto pronuncio o teu nome, ele escorrega docemente, poisa em mim, de volta a mim. 
O teu nome vai voa, borboleta e volta sempre a mim. Eu tenho o teu nome comigo e ele dorme dentro de mim. Basta-me acordá-lo e sentir as caricias do teu nome. 
O perfume do teu nome. 
O silabar do teu nome. 
Não estarei mais sozinho. Doravante o teu nome acompanha-me. 
Eu sou o teu nome, o teu nome sou eu. 
Temo-nos. E quando alguém disser o teu nome é o meu que sinto. Ainda que ninguém saiba. 
É o teu nome que se alerta em mim. 
Eu tenho-o e ele tem-me.
E ninguém mo pode tirar ou tão pouco separar-nos! E de agora em diante o teu nome permanecerá e viverá sempre comigo. 
Dentro da minha vida. Dentro da minha eternidade. 
O teu nome!

MRodas