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quarta-feira, 12 de junho de 2013

Alunos e professores, o saber e o poder


Até que ponto é que essa capacidade de acreditar que tudo é possível, o livre pensamento, a criatividade, são transmitidas pelo sistema de ensino que temos?
O nosso sistema de ensino tem uma matriz oposta a essa e esse é um dos seus grandes problemas. É absolutamente anacrónico desse ponto de vista. Falo do ensino básico e secundário, onde as coisas melhores acontecem fora da sala de aula, como se não conseguíssemos mudar a sala de aula e fizéssemos umas flores à volta dela, projectos com a comunidade, actividades artísticas. Não inovamos no coração da pedagogia. A questão é como é que construímos uma escola que não seja à volta das aulas, mas sim do estudo? E o estudo implica uma dinâmica de autonomia, de liberdade, de cooperação, que é uma coisa que falta imenso nas nossas escolas e na sociedade portuguesa. E nos últimos anos, pior ainda.

Entrevista de António Nóvoa à revista do Pública, 26/05/2013



Alunos e professores, o saber e o poder


Em Portugal corria o ano de 1990.
Os fundos da CEE inundavam as oportunidades de investimento fácil, desorientando todos, porque não sabiam onde investir, ou porque sabendo, queriam aumentar de imediato a sua conta bancária. Para outros, era a oportunidade definitiva de comprar frigorifico, televisão ou o modelo de carro e Jeep tão desejados e tão anunciados em todo o lado, como se de uma urgência inadiável se tratasse.

Muitos acreditavam que tínhamos chegado ao paraíso prometido desde a revolução de Abril. Cavaco era primeiro ministro e o governo, braço armado da União Europeia, inflamava-se a mandar abater os barcos de pesca, arrancar as oliveiras, derreter dinheiro nos centros de formação profissional, esbanjar apoio às grandes empresas.

As autarquias queriam resolver o problema do emprego aos eleitores mais influentes, alguns caminhos e candeeiros e acabar com os bairros de lata, obedecendo aos ditames dos empreiteiros, dos bancos e técnicos do Instituto de Reabilitação Urbana! Foi preciso esperar muitos anos para alguns estudiosos virem dizer já em 2013 que o realojamento foi injusto e segregador.

Eu tinha passado os dois anos anteriores, 1987 e 1988, a trabalhar num organismo regional (Lisboa) do Ministério da Educação. Tinha como função coordenar as equipas de professores de educação especial das cidades de Lisboa, Amadora e Sintra. Continuando os esforços de integração das crianças e jovens com necessidades especiais de educação, iniciados com a revolução de Abril, os professores de Educação Especial apoiavam estas crianças e jovens, os professores das turmas, davam ainda apoio e aconselhamento aos pais e encarregados de educação. Desenvolviam ainda esforços de colaboração e inter ajuda com vários serviços locais de saúde, segurança social e autarquias. Eram situações de grande necessidade, com poucos recursos mas, muita sensibilidade social.

O trabalho de apoio educativo exigia uma grande disponibilidade de vida dos professores de educação especial, para gerir situações de tão grande stress e desgaste emocional.
A triangulação constituída por três vértices, (Pais, Prof’s e alunos) com forças de atração e oposição, gerava muita tensão, alguns conflitos e muito desconforto e ... alguns êxitos. Os pais queriam mais aceitação e valorização para os filhos; os professores das turmas queixavam-se de tudo, das dificuldades provocadas por estes alunos, da falta de colaboração dos pais, do Ministério da educação, da falta de formação, da falta de condições materiais e profissionais, do excesso de alunos por turma, dos inspetores, dos programas, etc... ; os alunos queixavam-se da falta de atenção e cuidados dos pais,  violência dalguns colegas, e ainda das suas dificuldades de integração na escola. As auxiliares de educação protestavam  contra o baixo salário, as prepotências dos diretores e o aumento de trabalho com estes alunos. Até as autarquias se queixavam do governo que não atribuía as devidas dotações orçamentais.

Apesar destes problemas, muitos professores de educação especial eram verdadeiros missionários, intervenientes e criativos, mobilizando recursos na comunidade, atores e arautos no apoio a estes intervenientes no processo educativo.

Eu próprio tinha trabalhado como professor de educação especial durante 9 anos,  desde 1978 e senti todas estas dificuldades, desde construir uma profissão diferente, dentro do espaço pedagógico, que até aí não existia, como contribuir para a mudança da escola e das suas práticas tradicionais. Quando aceitei a coordenação destas equipas de professores pensava que poderia ajudar na mediação entre as suas necessidades profissionais e as possibilidades de resposta do serviço coordenador do Ministério da Educação.

Ao mesmo tempo trabalhei exaustivamente com a coordenação do 1º ciclo na Direcção Regional de Lisboa, na preparação de ações de formação e na sua execução em todo o distrito de Lisboa. Isso levou-me a terras desconhecidas, aldeias remotas desde a Lezíria até Torres Vedras, a norte e a sul. Conheci colegas desiludidos com a profissão e zangados com a vida, conheci pessoas muito interessantes, verdadeiros profissionais para quem a sua vida era o seu trabalho e outros que era fácil fazê-los re-acreditar e arrancar um “brilhozinho no olhar”! Espero que lhes tenha servido de alguma coisa para a sua atividade. Foi numa destas sessões  que um dia em Vialonga, vi uns olhos, negros brilhando a cada palavra que ouvia...
Eu pensava que era preciso tratar dos peixinhos doentes, feridos, diferentes, mas também era necessário ir despoluindo as águas onde viviam. Daí o ter contribuído no esforço conjunto da formação, a partir da reflexão sobre a escola!

Estes dois anos passaram e recolhi material suficiente para algumas reflexões:
·      Os governados têm um uma grande capacidade de fantasiar as potencialidades do poder e esperam tudo dele, mesmo o que não está na natureza do poder fazer (pelo menos nestas circunstâncias).

·      O poder está muito mais dependente dos governados do que estes próprios imaginam. Qualquer abaixo assinado por dois ou três pais duma escola deixavam a tremer vários serviços, com medo que este protesto alastrasse na escola, e pior ainda, a outras escolas. Pior ainda se havia eleições próximas...

·      Na sala de aula, os professores têm mais poder que qualquer ministro.

·      A capacidade de intervenção do poder na mudança de práticas  e concepções tradicionais é muito fraca e condenada ao fracasso, se este não for capaz de mobilizar os intervenientes, partindo do principio que o poder quer alguma mudança!

·      O poder tem uma dificuldade tradicional em mobilizar forças da mudança. O poder não quer a mudança. O poder quer estabilidade, continuação do ontem, manutenção da situação, quer seja justa ou injusta. 

·      O poder aparenta desenvolver áreas de liberdade e de justiça, desde que daí decorram dividendos para a sua permanência, auto-justificando-se  e auto-legitimando-se.

·      Quem detém o poder tenta a todo o custo mantê-lo, para continuar a beneficiar dos seus privilégios, ou como meio para atingir os seus fins.

·      Quem não tem poder aspira tê-lo. Muitos, para beneficiar dos seus privilégios, poucos para o utilizar para o bem de todos.

·      A mudança só muito raramente resulta da ação individual, mas um pequeno grupo coeso, com ideias, princípios e valores comuns, pode aproveitar as fragilidades dos sistemas, para evoluir e fermentar um conjunto de ações estruturadas, desafiantes e alternativas.

·      O grupo funciona melhor, em torno duma liderança aceite como vantajosa para todos e assente em princípios e valores consensuais.


A minha passagem pela direção regional do Ministério da Educação, obrigou-me a refazer o meu percurso profissional e ... nada melhor que voltar ao princípio. Eu também era professor primário! Desejei voltar a uma turma e re-experimentar conduzir uma classe, ao longo dum ano lectivo, numa escola primária. E depois logo faria o balanço, se queria regressar à educação especial, ou manter-me numa turma.
Andava eu de volta destas reflexões quando dei comigo a assinar os boletins de tomada de posse do lugar de professor na escola primária nº 124 em Benfica.

A escola fazia-me lembrar o modelo do Plano dos Centenários do Estado Novo. Mas vim a saber mais tarde que era um modelo do Estado Novo para servir as habitações construídas e entregues aos funcionários do Estado e  classe média.

Encostada ao Jardim municipal Silva Porto, em Benfica, era constituída por dois grandes blocos, com rés do chão e 1º andar, cozinha, refeitório, ginásio e um espaço exterior muito agradável.
Na entrada de  cada bloco existiam grandes salas de entrada, com informação nos placards aos pais e alunos.
O corpo docente era constituído por mulheres (23, ou 24...) sendo eu o único homem. As colegas já tinham bastante idade e tinham sido colocadas nesta escola, antes da revolução, ainda por nomeação ministerial, por pertencerem a famílias ou grupos sociais influentes.
A diretora da escola tinha-me entregue a turma dela (4º ano) e assumira a direção da escola, pela primeira vez, a tempo inteiro. Disse-me: Tem quatro alunos a mais, mas como são ciganos só vêm no principio do ano e depois... nunca mais aparecem.
Mais um desafio! Fazer com que eles não faltassem! E não faltavam!

A cultura da escola era não fazer ondas, nada de atividades que mexessem muito com o que era tradicional fazer-se. No natal fazia-se o presépio, na Páscoa, os coelhos punham ovos, e na Primavera os pássaros faziam lindos desenhos. Os alunos, não.
O horário era em regime normal, das 9h às 15,15h, com intervalo de 1,30h para almoço. Havia ainda um intervalo na parte da manhã. Todos cumpriam este horário, saíam, voltavam para suas casas e no dia seguinte lá estavam. Quase todos. Uns mais bem dispostos que outros.

As ordens que chegavam, eram predominantemente administrativas e eram aceites como definitivas e inquestionáveis. Não havia discussão, nem reflexão. Pedagógica. Era assim porque a administração dizia. Ponto. Cavaco era primeiro ministro e havia como um consenso social que proclamava: agora acabou-se a discussão!
Ficava a pensar como estas ilhas pedagógicas tinham permanecido no seu isolamento, na sua solidão, silenciosas e no remanso da quietude do conforto e do marasmo. O tempo não tinha passado. Ainda cheirava a Estado Novo, desde o crucifixo por cima das ardósias, os estrados junto à ardósia, até o ar bafiento dos corredores e dos mapas.

Contaram-me que algumas experiências de modernização e atualização tinham sido condenadas ao fracasso. Ou por cansaço e desistência dos atores, ou pela pressão inexorável dos que querem mudar... para que fique tudo na mesma.
Eu acreditava nos direitos das crianças, na expressão livre, no seu papel ativo e na sua participação nas aprendizagens na sala de aula, na planificação e avaliação das atividades, no valor da cooperação e da ajuda mútua.
Eu obrigava-me a organizar a minha turma, em obediência a estes princípios morais e éticos duma moderna pedagogia, para uma sociedade mais justa!
Sabia que estava sozinho naquela escola, mas confiava que os meus alunos seriam tocados pelo meu querer e boa vontade. Eles seriam os porta vozes deste vento novo, junto das famílias, e essa alegria interior e entusiasmo juvenil, por mim esperado,  deveria chegar para convencer os pais.

Os colegas sabiam que eu tinha estado no Ministério  e isso era suficiente para respeitarem as minhas opções pedagógicas. Eu vinha iluminado pela aura do poder... Era assim que eu pensava e desejava que eles pensassem, para me deixarem em paz, pois os instalados e desconfiados podem ser muito atrevidos.
A diretora tinha bom senso e era simpática comigo. Viemos a ficar amigos. Viúva, mãe dum filho de 19 anos com problemas graves de saúde, manifestei-lhe o meu reconhecimento pelo seu profissionalismo, e pela sua vida cheia de tristeza, dor e sacrifício.

A minha turma de 4º ano era composta por um número semelhante de rapazes e raparigas. Alguns repetentes, 3 ciganos e 3 negros. Eram provenientes das camadas populares em volta da escola. Havia um aluno, filho duma mãe solteira que vivia num autocaravana no Parque de campismo de Monsanto. Diogo? Penso que sim. Havia outros filhos de retornados das ex colónias, alguns filhos de alentejanos radicados na capital e os restantes ... de Benfica!
Como em todos os grupos sociais, representados através duma curva de distribuição normal, havia um pequeno número dos que tinham progredido muito nas aprendizagens, um grande grupo, mais ou menos homogéneo e uns pouco que estavam muito atrasados, havendo 2 ou 3 que soletravam e uma aluna, cigana que não sabia ler.

Em assembleia, e como tinha lido nos pedagogos modernos e aprendido na cooperativa de professores da escola moderna, (MEM) comecei por planificar as atividades semanais na 2ª feira de manhã e fazer a sua avaliação na 6ª feira de tarde. À medida que avaliamos o que tínhamos feito, relançávamos a atividade para a semana seguinte, prevendo tempos para trabalho em conjunto, trabalho de grupo, trabalho a pares e trabalho individual.

Distribuímos tarefas, de modo que o maior nº possível participasse. Marcar presenças, distribuir cadernos e material, manter o quadro e a sala limpos, instituindo como regra que quem sabe deve ajudar quem não sabe.
Como foram surgindo alguns pequenos conflitos, escrevemos num cartaz dividido por 3 colunas, o que gostamos, o que não gostamos e sugestões, onde todos poderiam escrever, elogiar e criticar os colegas e a escola. Na sexta feira, em assembleia, afastados da emoção do momento, analisaríamos este material, já com a distância necessária para achar ridículo o que era ridículo e valorizar o que deveria ser valorizado e assim regulando e gerindo a nossa vida, construirmos um pensamento moral e ético a partir das situações reais de vida.

Organizamos grupos de trabalho, de constituição equilibrada e diversificada, de modo a se poderem ajudar uns aos outros, desenvolvendo projetos de investigação em volta dos temas de Estudo do Meio e da Língua portuguesa e agendamos a sua apresentação à turma, prevendo para isso alguns tempo ao longo da semana, acrescidos do trabalho de pesquisa, sempre que possível, em casa com os pais.

Eu andava radiante e fascinado! A atividade docente era tão gratificante, mas tão exigente, que durante o horário lectivo, me esquecia de tudo o resto, preocupações particulares, recados, etc. Os meus alunos exigiam-me a tempo inteiro, para construírem a sua autonomia!
Poder organizar este grupo duma forma coerente com o que eu acreditava, dava–me uma satisfação tão grande ... que contagiava os alunos. E o entusiasmo deles retornava e contagiava-me a mim!

Contagiava? Não todos.
Um dia numa assembleia, o melhor aluno da sala pediu para falar e disse que já tinha falado com alguns colegas e não queriam continuar nesta escola nova. Tinham saudades da escola antiga, tal como fazia a antiga professora. Não imagino como teria ficado a minha cara. Com certeza com muito espanto. Não era evidente para todos as vantagens da escola nova? Como era possível?
Nunca ninguém me tinha relatado, quer nos diversos encontros de professores, quer na literatura da especialidade, uma situação semelhante.
Perguntei se havia mais colegas a pensar assim e constatei que um grupo constituído pelos melhores alunos, mais alguns, na sua dependência, levantaram o braço, assumindo a sua discordância. Eram pelo menos um terço do total da turma.

O espanto não foi só meu. Os restantes alunos também manifestaram a sua admiração e declararam de imediato, que não estavam dispostos a voltar atrás. Percebi que tinha uma turma dividida. Um pequeno grupo reclamava os seus direitos e uma maioria não estava disposta a cedê-los.
Como era já no final do dia, tentando ganhar tempo, disse que continuaríamos a reflexão no dia seguinte. Passei o resto do dia e da noite, às voltas, a perguntar-me sobre onde tinha errado, que tinha feito de mal? Aqueles anos afastado da turma tinham provocado falhas e corrompido as minhas competências profissionais? Que alunos eram estes, que heroicamente tinham desafiado a figura do professor... para voltar atrás? O que era para eles voltar atrás? Quem eram os que queriam ir para a frente? O que era voltar atrás e ir para a frente? Donde vinha essa força para uns quererem continuar e outros desistirem? Quais eram as suas motivações?
Na verdade, depois de ter recuperado do embate inicial, dei comigo a admirar e a respeitar este grupo. Tinha força, coesão, era corajoso e ia à luta, afrontando mais de metade da turma e o próprio professor!

Durante algum tempo na sala de aula poder-se-ia ver dois grupos. Um, mais pequeno, com as carteiras alinhadas, umas atrás das outras. Outro grupo, com as carteiras distribuídas em U, permitindo deste modo a ajuda, a interação, a colaboração e olhos nos olhos, a expressão livre.

Com este grupo continuamos a nossa organização cooperativa. Plano de trabalho e avaliação semanal, distribuição de tarefas, trabalho individual, em pares e de grupo. Começamos a planear o trabalho de grupo, baseados no programa oficial do estudo do meio. Deste modo, cada grupo iniciava a recolha de materiais, informação diversa e dispersa recorrendo aos manuais escolares, da biblioteca da escola e recorrendo aos pais. O entusiasmo era grande , mesmo entre os que não sabiam ler ou tinham muitas dificuldades. Era com gosto redobrado que os via entusiasmados, os olhitos a brilhar, fazendo-me acreditar que o caminho seria por ali.

Com o outro grupo, perguntava-lhes o que se fazia na escola antiga. Mais como barómetro da sua obstinação, do que por desconhecimento meu. Cópias, ditados e correspondentes erros, leitura em voz alta e respectiva correção, redações com tema dado e fichas de resposta às várias disciplinas. De vez em quando um desenho e respondiam às questões postas pelo professor.
- Assim faremos!
Mas sorrindo baixinho para mim, interrogava-me, quanto tempo iriam resistir?
E tentava estar presente com eles quando o outro grupo tinha atividades mais autónomas. E deixava-os mais sozinhos, quando estes faziam cópias, ditados ou leitura silenciosa!

Só havia uma atividade que tinham de fazer em conjunto: Educação Física. E nesse dia fazíamos o aquecimento a correr no jardim da Mata  e  continuávamos com algum jogo coletivo: Andebol, voleibol e futebol. Ainda pensei no râguebi, mas não houve oportunidade, ou disponibilidade dos recursos ou minha!

A escola não se apercebia desta luta no interior da minha turma e eu também não tinha interlocutor. Fui gerindo a situação na minha solidão de professor, com a turma em ebulição contínua!
Os pais também não reagiam. Alguns achavam graça ao entusiasmo dos filhos. O pai do Rúben tinha mandado dizer que este ano já tinha assinado mais papéis do que nos outros 3 anos de escolaridade. E ainda não tínhamos chegado ao Natal! Esperei que a situação se definisse, para depois fazer a reunião com os pais.

Um dia recebi numa carta, uma declaração de amor da mãe duma aluna! Recém chegada do Alentejo, divorciada com uma filha na turma, a solidão da capital empurrou-a para mim, que era terno para  a filha e simpático para ela.  Conversamos e mostrei a minha indisponibilidade para uma relação mais afetiva, um possível enamoramento, pois nesse tempo estava numa relação muito envolvente! Ela iria com certeza encontrar alguém que a amasse e iria sem dúvida relançar o seu projeto de vida. Entendeu o que lhe disse e sempre nos tratamos cordialmente! No final do ano veio dizer-me que estava enamorada e ia viver com um homem que tinha conhecido e agradecer-me ter sido compreensivo com a filha e com ela. Fiquei contente por ela e pela filha! Uma história de amor que ia começar bem!

A atividade do grande grupo democrático crescia a olhos vistos. O seu entusiasmo não parava. Às vezes até me sentia arrastado por eles e tinha de recomendar calma e paciência.
O pequeno grupo, dos pequenos iluminados, não cedia, o que sinceramente fazia aumentar a minha admiração e alguma inquietação, pela sua necessidade de marcar terreno e não sair das trincheiras.

Mas havia zonas de sobreposição. Nas Assembleias, onde só participava o grupo da escola nova, rapidamente perceberam o seu funcionamento e a sua natureza reguladora da atividade na turma. Mas muitas vezes havia queixas de algum elemento da escola antiga. Nesse caso pedíamos autorização à assembleia, através de votação, se admitia a participação do referido elemento, tendo este o direito a esclarecer a situação e poder defender-se. Várias vozes se levantaram contra a sua participação. Não querem ser da escola nova, não têm que participar! Mas com algum tacto e bom senso as questões lá se iam resolvendo!

Nas assembleias foi emergindo uma menina cigana, tornando-se muito respeitada e temida por todos. Porquê?
Porque a Maria conhecia muito bem as cumplicidades entre eles e desmascarava as jogadas e combinações deles. Por exemplo, se um aluno defendia outro que não tinha razão, logo a Maria levantava o dedo, fazia-se silêncio e dizia:
- O Ivo está a defender o Miguel porque este lhe dá o lanche no intervalo.
Ou porque o deixa jogar à bola, ou ainda porque ele o defende doutros alunos doutra turma.

A Maria conhecia os esquemas, argumentava com seriedade, corajosa e denunciava todos as tramas, combinações, falcatruas e demais nuvens negras das relações humanas!
A Maria copiava e não escrevia. Mas desenhava, recortava, era responsável nas tarefas, fazia contas, sabia a tabuada, não fosse ela cigana experimentada na ajuda aos pais nas feiras. Que pena a Maria não saber ler!
Finalmente para mim era claro porque o pequeno grupo resistia. Detentores do conhecimento escolar, e por isso mesmo, respeitados pelos outros e pela forma como se vestiam e comportavam, não estavam dispostos a ceder parte desse poder aos pobres coitados, sujos, despenteados, sem saber ler, silabando, hesitando, gaguejando...
Qual era a piada de terem de se calar, para deixar o João falar? Que poderia o Moisés, negro, dizer de interessante que eles não soubessem explicar muito melhor? Quem dominava os instrumentos da cultura e do saber? Eles sentiam-se até humilhados, não reconhecidos. Por isso, foi tão difícil sermos uma só turma.

O Zé Luís, recém chegado de Angola ainda disse: Obrigue-os a serem da escola nova!
“Não, Zé Luís. Não os posso obrigar. Quero que eles percebam e sintam o que aqui se passa, e sejam eles a decidir da coerência das coisas, da amizade e solidariedade, da ajuda mútua, da justiça, dos direitos e deveres e da liberdade de viverem em sociedade. É uma oportunidade para todos podermos refletir e vivenciar esta situação. Não só o que tenho de aprender, mas também como estou a aprender, com quem aprendo e o meu contributo para o crescimento dos outros.”

O podermos decidir sobre o que vamos fazer e como nos organizamos tinha um impacto muito cativante e sedutor em toda a turma. Mas foi preciso tempo, respeito pela posição do outro, muito bom senso, sentido de justiça, muita coerência! Sentia que pisava um terreno escorregadio e a qualquer altura podia descambar e fazer ruir o que acreditava!
Sobre mim pesavam a possível descrença dos alunos, as criticas e desconfiança dos pais, e a mais que evidente ironia dos colegas: “São muito espertos lá nas direções e coordenações, mas aqui no terreno é que se vê como elas são...”

Com todos estes cuidados e precauções, com a ajuda da educação física e a apresentação dos projetos de trabalho à turma, foram-se abrindo brechas naquele muro humano e regressou alguma tranquilidade. Eles foram cedendo, também porque se sentiram respeitados. Foram momentos de partilha e grande emotividade e visibilidade social. Nós fizemos este trabalho que agora vos apresentamos, para que aprendam connosco e possam ajudar a enriquecê-lo.

Só passados aí uns três meses, mais ou menos, é que começaram a debandar. Primeiro um, depois o outro anunciavam que queriam pertencer à escola nova e por fim foi a debandada geral. Foi um momento de grande emotividade para todos. A família tinha-se reunido, eram agora um grupo, um corpo, respeitando as diferenças, mas reunificado, e decididos a enfrentar o futuro.... vamos lá ao trabalho!  A tensão foi ultrapassada e as forças da coesão tinham superado as da distensão!

Projeto a projeto, assembleia a assembleia, grupo a grupo, par a par, tarefa a tarefa, dia após dia, êxito após erro, dei comigo no final do ano tão surpreendido a ver alguns alunos a despedirem-se de mim, sorrindo com o êxito da experiência escolar, mas de tristeza pela separação definitiva, e alguns com lágrimas nos olhos. Aí percebi como o professor faz tudo para deixar de ser preciso! Para que eles sejam autónomos, o professor tem de desaparecer, auto-destruir-se!

Nunca os esqueci e por isso estou a recordá-los. Estejam onde estiverem, Sara e Zé Luís, Zé Manel, Rosário, Camilo... todos, obrigado por me ajudarem a gostar tanto de ser professor. Graças a vocês, eu tive a melhor profissão do mundo!

Oeiras, Maio de 2013



terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A Observação

       A Observação



Parecia que a minha vida tinha entrado numa roleta sem saída. Por mais que andasse voltava sempre ao mesmo lugar!
Era naquela escola que tinha feito a instrução primária, era àquela aldeia que tinha regressado dois anos antes, e agora... voltava ali outra vez.
Para trás tinha deixado os colegas em Viana do Castelo, uma experiência pedagógica de articulação com a Escola do Magistério, interrompida pelo então Ministro da Educação, Sotto Maior Cardia.
Voltava a casa dos meus pais, voltava à aldeia para ser monitor de Telescola.
A Telescola era um sistema que permitia aos alunos fazer o 5º e 6º ano e que não poderiam frequentar a escolaridade obrigatória, por residirem em aldeias e locais muito afastados de povoações com escolas preparatórias. Desde 1973 que o Ministro Veiga Simão tinha alargado a escolaridade obrigatória para 6 anos, mas só agora, passados 5 anos, os alunos da aldeia iam beneficiar desse direito.
Eu nunca tinha sido monitor de Telescola. Não recebi preparação para tal e desde logo percebi que se pretendia que o meu papel fosse diminuto, pois os professores das várias disciplinas planificavam as aulas e transmitiam-nas pela tv, a partir do Monte da Virgem, no Porto.
Esperavam que eu fosse um monitor. Abria e fechava a escola, fazia a chamada, marcava as presenças e ausências, distribuía as fichas das respectivas disciplinas e depois da transmissão pela tv, tirava dúvidas e apoiava a realização das fichas de consolidação de conhecimentos. Fiscalizava os testes, que remetia pelo correio e mais tarde recebia a classificação. Regularmente fazia os mapas de controle dos lanches para o IASE e comunicava aos pais a evolução da aprendizagem dos alunos.
A aldeia, apesar de ter cedido gratuitamente baldios para a barragem elétrica D'el Lima, ainda não possuía electricidade.
O delegado escolar informou-me que além dum pequeno gerador, ainda teria por mês, direito a 25 litros de gasolina e 5l de óleo. Os alunos teriam direito a um pão com queijo ou marmelada, um quarto de litro de leite, por dia e de resto... boa sorte!
Além da televisão a preto e branco, havia ainda um estojo de carpintaria para apoio às aulas de Educação Visual e trabalhos práticos.
A escola era uma única sala e estava igual aos meus tempos de primária. Subia-se por uns degraus de pedra. Uma janela e uma varanda, as carteiras em fila, a secretária junto do quadro, uma luz difusa e as recordações da infância a emergirem da minha memória, à mistura com o cheiro a giz e o ar viciado pela falta de oxigénio e excesso de respiração.
A minha professora continuava a exercer da parte de manhã, partilhando, pela primeira vez a sala, à tarde, com outro colega e ex-aluno, que era eu. Nas paredes já não existiam os retratos de Salazar e Américo Tomás, mas o crucifixo, mas as paredes nuas erguiam-se frias, como ameias dum castelo.
Os alunos já me conheciam e esperavam-me com afecto e muita ansiedade. Era a primeira vez que na aldeia ia funcionar a telescola. Eles iam ser os primeiros alunos!
Era um grupo de 18 alunos, mais rapazes que raparigas, à volta de 12 e 13 anos. Três vinham a pé duma povoação a 4 Km, dois eram gémeos. Havia dois alunos ( o Pedro e a Maria) que tinham regressado de França e falavam melhor francês do que eu. Todos tinham feito a 4ª classe no ano anterior e possuíam as aprendizagens básicas para enfrentarem o 5º ano com alguma serenidade.
Eu adorava a minha profissão de professor e tinha de provar a mim mesmo que independentemente das circunstancias, continuaria a gostar da minha profissão e a minha opção estava confirmada. Fosse ali ou em qualquer outro local. Ali, na minha aldeia tinha a oportunidade de continuar a ser um bom profissional. E aquelas crianças precisavam ter um bom estímulo para progredirem. Que melhor exemplo, do que um natural da aldeia, que regressava como professor e motivado para ensinar?
Após o desconforto inicial, arregacei as mangas e deitamos mão à obra. Eu não seria um monitor qualquer. Eu era o professor e como tal, comecei por organizar o espaço, com os alunos. Ao fundo da sala do lado esquerdo, improvisamos uma bancada com fogão para aquecer o leite e distribuímos a tarefa a uma equipa de três. Aquecer, distribuir e lavar a panela e os copos.
Ao fundo da sala, do lado direito, organizamos uma pequena oficina com os utensílios, martelos, serras, esquadros, berbequim, tesouras, serrotes, etc. e uma bancada de trabalho. Outra equipa de três alunos ficava responsável pela sua organização, arrumo e sistema de requisição destes materiais, para fim de semana.
No armário lateral, organizamos os materiais e fichas das disciplinas a distribuir diariamente. Outra equipa de três alunos responsabilizava-se por manter arrumado o material, seleccionar diariamente as fichas de apoio e distribuí-las aos colegas.
Fiz ainda um duplicador de gelatina, num tabuleiro de alumínio, o que permitia tirar rapidamente 30 a 40 cópias dum documento.
Outra equipa de três alunos era a responsável pela manutenção e funcionamento do sistema eléctrico. Transportavam o motor para o exterior, num abrigo, verificavam o nível do óleo e da gasolina, atestavam o depósito, punham-no a funcionar e nos intervalos enquanto houvesse luz suficiente vinham a correr desligar o motor, para deste modo, poupar gasolina, o que permitia prolongar no final do dia, mais meia hora de funcionamento, para ver.... desenhos animados, como me tinham pedido.
Era neste cantinho que o motor Honda trabalhava para nós!


Havia ainda dois alunos responsáveis pela marcação das presenças e faltas e outros dois com a tarefa de manutenção da limpeza da sala e arrumação geral.
À sexta feira fazíamos o balanço das actividades e do desempenho das tarefas, mudávamos de equipas e espreitávamos a programação da semana seguinte, no manual da telescola.
Com estas quatro equipas a funcionar e tarefas distribuídas sentia-me o capitão dum navio a velejar a toda a vela...
Atenção aos alunos a precisarem mais de apoio, atenção aos pais, que por natureza são mais conservadores, atenção ao delegado escolar, atenção ao Inspector, atenção a tudo o que mexe e põe em causa este empreendimento.
Sentia que os alunos andavam muito motivados e eufóricos com esta organização. Tentavam corresponder com o melhor que sabiam e podiam e como se conheciam todos, persuadia-os a desenvolverem relações de camaradagem, amizade, respeito mútuo e inter-ajuda.
Um dia, quando achei que a máquina estava no auge do seu funcionamento, entreguei a chave da sala um aluno e disse que não demoraria muito. Eles que começassem a trabalhar. Demorei-me intencionalmente, interrogando-me: Serão eles capazes? Estou a pedir muito?
Que alegria e satisfação poder confirmar, que eles tinham alcançado um nível de autonomia tão grande, que conseguiam desempenhar todas as tarefas responsavelmente.
Tinham posto o leite a aquecer para o lanche, tinham visto o nível do óleo e da gasolina, tinham selecionado as fichas do dia, tinham marcado as presenças e as ausências e sentados, em silêncio ouviam a transmissão pela tv.
Era verdade! Cada professor transporta em si o desejo de se anular e deixar de ser imprescindível! A autonomia dos alunos impõe a diminuição da "presença" do professor.

Em Janeiro ou Fevereiro recebemos a visita do Inspector. Um homem mais velho do que eu, de bigode e “pêra”, a surgirem os primeiros cabelos brancos, na casa dos trinta... baixo e entroncado.
Após as apresentações gerais, à frente dos alunos e lamentações por só agora ter podido visitar-nos, o semblante foi-se desanuviando e deixou marcada a data de posterior visita para observação da aula de francês. Entretanto foi dizendo que discordava da exposição do material da Educação visual e trabalhos práticos, pois se desaparecesse algum objecto eu seria o único responsável.
Que sim, não havia problema, eu assumia toda a responsabilidade e os meus alunos mereciam-me toda a confiança.
Após a sua saída os alunos manifestaram a sua revolta para com o Inspector, pois,
                   Quem é que ele pensa que nós somos?
                   Nós não tiramos nada a ninguém!
- Concerteza, concerteza, deve ter-nos confundido com outras escolas.
Mas... a juventude irreverente (minha e dos alunos) a sussurrar: porque não aproveitar e pregar uma partida ao Inspector?
Mas como?
Fazemos assim:
Nesse dia a aula decorre normalmente. A equipa distribui as fichas, sentamo-nos, ouvimos a emissão, e depois eu faço as perguntas de compreensão, ás quais vocês respondem naturalmente, “oui” ou “non”. Ao Pedro e à Maria faço perguntas mais desenvolvidas, estilo, O que pensas sobre a importância dos frutos? E eles falam, falam até eu dizer que já chega. E pronto. Desta forma ele fica a pensar que todo falam muito bem francês.
Isto foi fogo que deu na estopa. Não falavam noutra coisa, enquanto eu me interrogava se seria boa ideia, ou tinha deixado o barco bater em rochedo. Pelo menos, permitia-me ir recuperando alguma energia, avisando: Vamos aprender francês, para fazer boa figura!
E se o Inspector descobrisse? E se eles não aguentassem a pressão e se desmanchassem? E se contassem em casa e os pais me viessem perguntar o porquê dessa agitação? E que andava eu a ensinar? O engano? O fingimento? Eram esses os meus valores?
Esta aventura teria de seguir em frente, já era tarde para voltar atrás, mas prometi a mim mesmo, que não me meteria noutra, tão cedo.
No dia aprazado, após os cumprimentos iniciais, sentou-se o Inspector ao fundo da sala e eu a seu lado. Sentia no ar a agitação dos olhares e as palpitações daqueles pequenos corações, que um ou outro suspiro atraiçoava.
A colega no Monte da Virgem iniciava a aula a preto e branco no monitor da nossa sala. Um pequeno filme de desenhos animados, uma pequena história, e depois algumas frases de gramática. Fim de emissão. Tinha chegado a minha vez. Levantei-me fui para a frente dos alunos e comecei o ensaio. Perguntava a dois ou três alunos e a reposta surgia comprometida: “Oui”
-Trés bien, merci!
E agora uma pergunta mais difícil a requerer uma resposta mais elaborada!
E mais duas ou três perguntas a pedirem um “non”. Outra pergunta dirigida à Maria, intercalada por outras a solicitar o “oui “ e uma difícil ao Pedro, permitindo-lhe parler, parler...
A turma vibrava com o desempenho de todos. Eu olhava o Inspector e confirmava que ele não se apercebia do engano. Ele olhava a floresta e não via a árvore. Comecei a sentir pena dele. Não gostava de estar no seu lugar. Era melhor acabar com aquilo. Para os alunos era um momento de glória, tínhamos pregado uma partida ao “Perinhas”, mas eu iria recordá-la como uma acção menos feliz. Esperava não ter de me arrepender.
Por fim, o Inspector perguntou-me se utilizava alguma metodologia diferente do habitual, porque estava admirado com o desempenho dos alunos, em tão pouco tempo de aulas. A minha consciência não me permitiu gozar o efeito da aventura! Eu queria despachar aquilo com urgência. Aproveitei para os elogiar, dizendo que eram muito inteligentes e aprendiam depressa.
Ainda me perguntou se achava razoável o pedido doutros colegas sobre a necessidade de dicionários. Claro, que não ia contradizer os meus colegas e que sim, com dicionários eles teriam aprendido ainda mais.
Quando ele se foi embora, ficamos na sala a festejar a nossa representação. Tentei baixar o entusiasmo, dizendo que todos tinham estado bem, mas essencialmente porque eles tinham estudado muito e eram bons rapazes.
Mais tarde, quando fui formador em vários cursos e seminários de formação e professor na Escola Superior de Educação em Lisboa, contei esta história, para realçar a importância do professor e da sala de aula, como elemento fulcral e essencial do sistema educativo (em cada sala de aula, o professor tem mais poder que o ministro).  Salientei a aprendizagem que tinha feito com os colegas da Escola Moderna, na organização cooperativa do trabalho e chamei atenção para a necessidade dos instrumentos de observação que nos permitem ver as árvores e não somente a floresta! Foi Maria Montessori, (1870-1952) quem primeiro chamou atenção para a importância da observação na educação e o Prof. Albano Estrela, quem em Portugal, primeiramente criou um conjunto de instrumentos de observação, primeiro passo, para o desenvolvimento duma ciência da educação!
Saiu de lá o Inspector sem uma palavra para a nossa organização! E se ele tivesse construído uma grelha de análise dos comportamentos verbais verificava, numa planta da sala, que somente dois alunos respondiam elaboradamente e a todos os outros correspondiam respostas curtas e breves, OUI ou NON.
Faz muita falta sabermos observar!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

SORRISOS


Eu era um jovem professor primário, colocado numa aldeia do Alto Minho, Grade, freguesia do concelho de Arcos de Valdevez.
Era o meu terceiro ano de trabalho e as minhas convicções políticas, sociais e pedagógicas davam-me a segurança possível, para ultrapassar as dificuldades do dia-a-dia, com entusiasmo e alegria.
 Eu sabia que era um pouco estranho para aquela comunidade a vinda dum professor, homem, de barba crescida, que se deslocava de mota. Mas aquela comunidade não era assim tão diferente da minha aldeia. Eu conhecia os ritmos anuais do trabalho, o ciclo das festas e os costumes básicos do nascer até à morte. Conhecia o espírito de sobrevivência dos agricultores e assalariados de minifúndio, dos pequenos comerciantes e emigrantes. Sabia qual a importância que davam à educação e ao estatuto do professor. A vida não era fácil para ninguém.
Também sabia que tanto como as minhas aptidões técnicas e científicas, também o saber estar e ser eram fundamentais para captar a confiança dos alunos, pais e restante comunidade.
Tinha as quatro classes num total de 23 alunos, em número semelhante de rapazes e raparigas.
A escola era pobre, sem material didático, nem aquecedores. Os alunos pertenciam a famílias rurais, assalariados, pequenos agricultores e vários emigrantes.
Ao fim de algum tempo, já se notavam mudanças na relação dos alunos comigo e na afabilidade com que os pais e elementos da comunidade se me dirigiam, sempre com consideração e de forma respeitosa, à qual nem precisava esforçar-me muito para corresponder.
O problema foi quando, após frequentar um minicurso de râguebi, quis introduzir esta atividade no currículo dos alunos. A Direção Geral dos Desportos tinha custeado o curso e deu-me duas bolas. O resto seria comigo e com os alunos.
Com o ímpeto da minha pouca experiência mas muito entusiasmo, pedi autorização a um proprietário local se permitia o abate de três pinheiros para fazer umas balizas no recreio da escola.
Com a ajuda dos alunos mais velhos lá cortamos, alisamos e aprontamos os troncos que serviriam de balizas para a prática do futebol e de postes (que sobressaíam das balizas) para o râguebi. Estava a aprender a rentabilizar os parcos recursos!
Eu já tinha surpreendido alguns alunos a sorrirem à socapa. Perguntei-lhes o que se passava, mas eles não adiantaram muito, pelo que pensei que fosse o resultado duma atividade diferente que permitia mais informalidade e à vontade.
O recreio ficou enfeitado com novas balizas e dois postes.
Passámos a aprendizagem das regras: Passe, bloqueios, faltas, reposição da bola em jogo, pontuação, etc.
De início, as raparigas mostravam-se mais inibidas e comedidas nas placagens, mas aos poucos ganharam o seu espaço e respeito. E se corriam menos e placavam pior, tinham de longe mais visão de jogo e sentido de equipa.
Um dia… o Artur *, repartido entre o apoio ao professor e a aceitação da aldeia, levantou o dedo para pedir a palavra e disse:
 - Na aldeia todos se riem. Dizem que o professor não sabe fazer balizas!
Alguns riram e outros em minha defesa disseram que as pessoas não sabiam para que serviam os postes. Percebi que eles tinham entendido a inovação como um progresso de que os mais velhos estavam arredados.
Sorri. No lugar deles também me havia de rir. Mas não me importei. Confiava que com o tempo, eles próprios diriam aos pais o que era o râguebi e isto serviria de aprendizagem de como as pessoas reagem à inovação.
E o râguebi lá fazia o seu caminho alternado com o futebol e ganhando mais popularidade entre as raparigas que entre os rapazes.

Noutro dia, o Custódio* apressou-se e ansiosamente colocou em cima da secretária um rolo feito com papel castanho de embrulho e disse de sorriso rasgado:
- Foi a minha mãe que mandou. É para si.
Surpreso, sorri. Abri o pequeno embrulho e um aroma a chouriço caseiro saltou do tampo da secretária para as minhas narinas.
Condescendente, sorri e voltei a embrulhá-lo, enquanto silenciosamente pensava que devia ser gostoso, e disse-lhe para o levar de volta e dissesse a mãe que eu era funcionário público, recebia todos os meses o meu salário, pelo que não precisava dessa oferta.
O Custódio mostrava algumas dificuldades na aprendizagem, mas era pontual e assíduo. Vinha a pé duma aldeia distante, Carralcova, e pelo aspeto descuidado podia perceber que os pais teriam algumas dificuldades económicas.
Sorri interiormente pela oportunidade de mandar recado a toda a comunidade, através desta mãe, que eu professor, era diferente, não era suscetível de qualquer tentativa de suborno.
Mas eu não ia esperar muito pela resposta e pagar caro este sorriso de superioridade moral.
No dia seguinte, o mesmo Custódio abeira-se da secretária, com o mesmo embrulho e perante a minha surpresa disse:
- A minha mãe pergunta se não aceita por ser pouco.
Percebi a força do argumento e do recado, engoli em seco, era preciso alguma flexibilidade neste caso, tentei sorrir e disse-lhe:
- Diz a tua mãe que obrigado, mas que não mande mais nada porque eu não aceito.
Quando mais tarde em minha casa, partia o chouriço e o comia com broa e vinho, pus-me a imaginar que ela sorriu quando o filho lhe deu o recado, que deve ter pensado, ou até comentado com alguma vizinha, “Não queria, não queria, mas teve de aceitar”!
E voltei a sorrir! O chouriço era mesmo bom!

*O nome referido é inventado