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sábado, 24 de novembro de 2018

O REI DAS NUVENS



O REI DAS NUVENS

 "A partir duma crónica do escritor Lobo Antunes surgiu esta história exaltando o valor da água, da vida e do conhecimento. As várias perspectivas do conhecimento do mundo ganham outro sentido quando tem o amor a ...abraçá-lo" 
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quinta-feira, 8 de novembro de 2018

A guerra


Saio de casa, sen vontade de mirar cara atrás.
Sei que hei de volver, por iso, non me despido de ninguén.
Nin de nada.
Vou alí dar un recado, matar ou ser morto nesta guerra - o que é a guerra? - pero volverei.
Claro que levo o corazón preso nunha sombra negra
e as pernas pesan co temor de non saber executar ou fuxir.
Nacín en 1896 e teño 22 anos.
Sei que volverei para ti.
Levo o teu retrato.
Non precisaba, pero teño medo de ser gaseado e perder a memoria.
Se che perder que me atope
e se non me atopas, que non me perda.

Vou á guerra ... matar e ser morto.

...

Saio de casa, sem vontade de olhar para trás.
Sei que hei de voltar, por isso, não me despeço de ninguém.
Nem de nada.
Vou ali dar um recado, matar ou ser morto nesta guerra – o que é a guerra?- mas voltarei.
Claro que levo o coração preso numa sombra negra
e as pernas pesam com o receio de não saber correr ou fugir.
Nasci em 1896 e tenho 22 anos.
Sei que voltarei para ti.
Levo o teu retrato.
Não precisava, mas tenho medo de ser gaseado e perder a memória.
Se te perder que eu me encontre
e se não me encontrares, que não me perca.
Vou à guerra...matar e ser morto.



Manuel Rodas
no centenário do final da I Grande Guerra (1918-2018)

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Manuel de Amorim

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Todos os dias Manuel de Amorim, soldado do 4.º Batalhão de Infantaria* guardava aqueles instantes para sozinho conversar consigo próprio, a pretexto de limpar a sua arma, a inglesa Lee-Enfield.
Bem sabia que agora na Flandres, a vida era diferente. Havia a urgência da guerra e poucos eram esses momentos. Mas hoje era outra coisa. Hoje era o perfume doce da memória, o manto terno da saudade.
Tinha recebido carta de Portugal e a Lee-Enfield de 7,7 mm ganhou outro brilho. A patilha de segurança enrolava-se-lhe nos dedos, como as mãos dela, depois da desfolhada. A culatra, hoje, não era tão fria. Fria tinha sido a despedida, não a culatra.
Com o trapo sujo de óleo e ferrugem, voltou afagar a coronha e a mira, limpando-lhe as lágrimas que a arma não sustinha. Espreitou por ela e lá ao fundo já não havia inimigos. O que ontem seria um campo revolvido de balas e bombas, parecia-lhe hoje um prado acabado de lavrar nas veigas dos Arcos de Valdevez e amanhã um campo de flores de linho, onde se dissolvia o perfume doce das suas liberdades no fim da romaria. O corpo a dar-se e as almas a fundirem-se. Era a ode do amor que atirava para longe a nudez crua da morte.
Lá ao fundo da trincheira, mas bem próximo de si, o sorriso dela apertava-lhe a mão e o dedo no gatilho disparava abraços.
Sorriram-lhe os olhos em volta.
Alheados da sua rotina, alguns soldados vigilantes, mantinham-se de pé, enquanto os outros descansavam.
..........
Desde que ele tinha partido, as tarefas da lide doméstica mantinham-se inalteradas para Avelina da Conceição:
lavrar, esfregar, limpar, cozinhar.
Coser, ferver, mexer, arder.
Sair, decidir, resistir, repartir.
Por, sobrepor, transpor, dispor.
Conjugava a vida toda num único verbo: morrer.
Morria quando pegava na vassoura e quando a arrumava.
Morria com a roupa suja nas mãos.
Morria a olhar para o forno, a descascar as batatas, a dormir, a olhar pela janela a ver quem passa, a suspirar, a lavar-se de vermelho, no riacho.
O corpo renegava as lides e as lides questionavam o corpo com murros na alma.
Maldito campo de flores de linho, onde se dissolvia o perfume doce das tardes soalheiras.
Maldita guerra!

Manuel de Amorim, soldado do 4.º Batalhão de Infantaria; nascido a 25 de Dezembro de 1895 no lugar da Tavarela, freguesia de Santa Maria de Távora, filho de Domingos António de Amorim e de Avelina da Conceição; embarcou para França a 22 de Abril de 1917; faleceu em combate a 9 de Abril de 1918, na I Guerra Mundial.


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Manuel Pereira


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Manuel Pereira estava há 12 meses na Flandres. A vida na front, nas toupeiras ou nas trinchas,  era um imprevisto diário, ou bombas, tiros, frio e terra ou a mesma coisa mas por ordem inversa. Era de ir aos arames!
Feito prisioneiro numa emboscada pelos alemães, na Avenida Afonso Costa, tinha fugido e ao fim de vários dias a deambular pelas veredas e margens do Lys, foi parar ao Batalhão de Infantaria 23, onde aguardava ser recambiado para a 4ª Brigada, Batalhão Inf. n.º 8, a que pertencia.
Os boches não eram como os lãzudos, ou como os bifes, eram pontuais. Disparavam a mesma hora e paravam o ataque na hora certa. Intercalavam com  bombas de gás e tiros esporádicos.
Dormitava-se quando se podia e podia-se muito quando se dormia.
Ao seu lado esquerdo dormia João Augusto Ferreira de Almeida, solteiro, filho de João Ferreira de Almeida e de Angelina Augusta, natural da Foz do Douro. Para trás tinha deixado um emprego na casa de um cidadão alemão, que vivia na zona da Foz do Douro.
Ao seu lado direito dormitava António Rei. Ambos tinham  embarcado para a Flandres, a 16 de Março de 1917  e chegado a Brest, França, a 21 de Março de 1917.
Era nas poucas horas de pausa, cedidas pelo alferes e pelos alemães,  que cada um discorria sobre a vida e a saudade das suas terras.

 Na recoca, Ferreira de Almeida falava do pai e da mãe o suficiente para se perceber que o pai tinha uma ou duas faltas, isto é, dependia dos dias, mas na generalidade, era meio doido.
Naquela noite Manuel Pereira pensava no vale do Vez, enquanto observava no céu escuro uma salsicha. Fechou os olhos, uma mão pousada no cantil, a outra na Luísa e deixou a alma voar sobre os campos verdes da sua terra até mergulhar nas águas ternas e cintilantes do rio Vez e...nos olhos negros de Gracinda!
Tinha saudades de casa.
Uma sardinha assada e uma malguinha de tinto com uma fatia de pão era o que ele mais desejava e, só depois, ver a família e namorada. Era uma fraqueza que lhe subia do estômago ao coração, mas faltava-lhe a coragem para o reconhecer. Para isso teria de desertar e essa era uma fronteira ainda mais perigosa que a guerra!
Fechava os olhos e deixava-se estar á espera do próximo ataque. Eu vou-me safar, ai isso é que vou, rezava baixinho, invocava a Srªa da Peneda, S. Bentinho, de mistura com a imagem das festas e foguetes.
Ao seu lado, Ferreira de Almeida contava que estava cheio daquela maldita guerra e apetecia-lhe fugir. Fosse para onde fosse, mas tinha de fugir. Queria saber o caminho para os boches, até já tinha oferecido dinheiro a um camarada para que lhe fornecesse essa informação. Apontava para dois mapas, dobrados no bolso, e dizia que ia mostrar aos alemães as posições portuguesas. Deste modo, eles iriam tratá-lo bem. Acolhê-lo-iam e quem sabe lhe dessem emprego lá atrás das linhas. Já tinha trabalhado com um alemão no Porto e dava-se bem. Eram ambos exigentes: o alemão mandava e ele cumpria, sem precisar de pensar muito. Tudo normal. A pena de sessenta dias de prisão a que fora condenado é que ele não ia cumprir. Tivessem juízo. 60 dias a um soldado que sempre cumprira as ordens e apenas naquele dia tinha cometido um pequeno deslize? Nunca! O chauffeur 502 tinha-se ausentado  sem autorização, por 24 horas, quando estava colocado na secção automóvel, encarregue do transporte de água para as tropas do CEP.
A pena tinha sido a incorporação na 1.ª Companhia do Regimento de Infantaria 23, colocada na linha da frente e em risco de ataques do inimigo. Era igual a uma condenação à morte. Não, ele não queria morrer e muito menos ali, de barriga esventrada e as tripas cheias de moscas, morto por um boche qualquer! Ele tinha um plano diferente...

 Manuel Pereira nem queria acreditar. O homem estava a alucinar. Estava doido. Devia ser o efeito dos gases e daquela maldita guerra. Mas mesmo assim não se mexeu, deixou-se ficar a ouvir o companheiro ex-chaufer, no trilho entre a inquietação e o cansaço, o dever e a deserção.

Soube no dia seguinte, a 30 de Julho, que António Rei tinha denunciado o colega, ao capitão Mousinho de Albuquerque, mas manteve-se calado. Fingiu não saber de nada. Estava de passagem à espera do seu pelotão e de passagem haveria de continuar, até chegar às margens do seu querido Vez.
 O tempo passara mais lentamente que desejava. Foi com espanto que soube da sentença: o Ferreira de Almeida foi condenado à morte, por traição à pátria.
Não queria acreditar. Então não tinham visto que aquilo era um desabafo de quem se sente perdido e não sabe porque está ali, naquela guerra, maior que qualquer outra injustiça!
Ele também não sabia muito bem e nem por isso seria justo ser fuzilado.

O pelotão de fuzilamento, formado por quatro soldados, quatro cabos e quatro sargentos, fora incumbido, naquela madrugada de 16 de Setembro de 1917, de cumprir a sentença proferida dias antes pelo Tribunal de Guerra. Todos eram do Batalhão de Infantaria nº 14, ao qual João de Almeida pertencera antes de ir para a unidade de automóveis, e, convocados de véspera, tinham sido escolhidos entre os menos impressionáveis e recebido conselhos sobre a forma de proceder.
Às 6,30 horas da manhã o capitão vem ter com Manuel Pereira e diz-lhe, Prepara-te. Falta um soldado para o pelotão. Conto contigo. O que tens a fazer é seguir os outros e fazeres o que eles fazem. Estás pronto? Vamos embora!
Manuel Pereira sabia que se queria voltar a Pugido não podia contestar as ordens que lhe davam.
Faltavam cerca de 15 minutos para as oito da manhã. Por isso, os lábios mexeram-se num arraite imperceptível. 

Manuel Pereira reconhece Ferreira de Almeida. Este enverga o fardamento de chauffeur, dólman e calção à chantilly. Acompanha-o um capelão militar. Uma espécie de terror no seu olhar triste, espalha uma angústia pungente em seu redor.
As armas estão apontadas e Manuel Pereira treme pela primeira vez na sua vida. A vista fica-lhe turva e na cabeça tocam os sinos dobrados da torre de Gondoriz, de S. Tomé, da Lapa e do Espírito Santo. Todos duma vez só.
Que vais fazer, Manuel Pereira? Que vais fazer tu? Colaboras nesta desgraça ou manténs-te silencioso e ficas impune perante a tua alma? S. Bento e Nossa Senhora da Guia me ajudem, que isto não é guerra nenhuma, isto é mas é o inferno! Agora já é muito tarde para o cavanço!

Das doze armas que compunham o pelotão de execução, apenas onze dispararam. Apenas se ouviriam onze balázios, se alguém se desse ao trabalho de os contar. Se alguém o fez também o não contou a ninguém.
Na cabeça de Manuel Pereira ficou registado uma salva contínua sem parar, tempo infinito, num cemitério de guerra, próximo do lugar do suplício, do lado de lá da Estrada de Bacquerot, num campo de cultura, cercado de arame farpado, vendo descer à cova o cadáver sangrento daquele que a justiça condenara a morrer sob a infamante acusação de traição à Pátria.
Onze tiros num peito jovem e com desejo de fugir da insuportável realidade.
Ouvira comentar que fora o primeiro (e único, dizemos nós) fuzilamento consumado entre as tropas portuguesas, em França. Mesmo à noite, ainda os tiros ecoavam na sua cabeça, sem um grito de condenado. Apenas dizia baixinho para si próprio: o homem morre, para afirmar o poder absoluto de uns tantos, sobre a vida de cada um. Para servir de exemplo e vivermos assustados. Obedecer e morrer como carneiros! Maldita vida esta! O que acontece aos cachapins e aos palmípedes? E aos básicos? Nada. O que eles precisavam era dum bom porco!

Manuel Rodas

Vocabulário e termos utilizados pelos soldados portugueses, na Flandres na I Grande Guerra!

"Front" (linha da frente), 
"Ir aos arames" (ir de encontro ao arame farpado), 
"Arraite" (do inglês all rigth), 
"Avenida Afonso Costa" (terra de ninguém), 
"Balázio"(tiro de pistola ou metralhadora) 
"Bife" (soldado inglês), 
"Boche" (soldado alemão, derivante do francês caboche), 
"Cachapin" (oficial ou soldados que conseguiram ser transferidos para a retaguarda, ou que tendo ordem de ir para as trincheiras nunca lá chegaram), 
"Cavanço" (fuga para a retaguarda), 
"Lãzudo" (soldado português),  
"Recoca" (serviços de apoio na primeira linha, cozinheiros, tratadores de gado, condutores, etc. longe do parapeito), 
"Toupeira""Trincha" (soldado das trincheiras), 
"Porco" (projéctil de morteiro pesado), 
"Salchichas" (balões de observação ou drachens),
 "Luísa" (metralhadora inglesa Lewis), 
"Básicos" (oficiais da base), 
"Palmípedes" (oficiais do Estado – Maior que anda de carro e dorme debaixo de telha), entre muitos mais que ficaram.