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segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Moinho de vento II






Eleutério, acabada a obra na Coroa, Adrão, almoçou, despediu-se do guarda, que entretanto tinha sido nomeado pelos serviços florestais, disse adeus aos carpinteiros que no largo construiam as janelas, portas e mobília para  a casa e outros trabalhadores presos ao amanho das obras do quintal. 
Arrumou os poucos trastes que tinha – a mulher e os filhos já tinham levado o resto para Soajo – e meteu pés ao caminho, em direção à Cascalheira.
Tanto do lado norte, onde ficava a sua aldeia, como deste lado, a serra era-lhe familiar, as pedras no caminho, as giestas e tojos, urzes e carrascos, o cheiro das flores aquecidas pelo intenso calor, o piar dalgum passaroco e o estremecer dum arbusto, perante a fuga dalgum coelho ou perdiz. 
Quem anda muito tempo sózinho pela serra e a isso não está habituado, vai pela mão do pensamento que o arrasta para locais reconditos da imaginação e recordações mais íntimas do ser. É uma forma de o caminhante solitário se esquivar à solidão da serra e ao esforço do caminho. Essa visita às áreas mais obscuras do pensamento, para além de fazer o tempo passar, sem dele se dar conta, favorece a reflexão e o auto-conhecimento. 
Para os mais imaginativos, pode descambar em paisagens tão intimimanete coloridas e impossíveis que só um reparo da razão o pode trazer de volta à realidade deste mundo adverso e desta serra carregada de urzes e tojos que se agarram às perneiras das calças trespassando-as de tempo a tempo. São os tojos que trespassam as calças e os pensamentos, a alma. 
Eleutério tinha-se metido por estes últimos caminhos. Os filhos crescidos, a mulher com terras para amanhar e dias para trabalhar para fora, a subsistência garantida – salvo alguma doença má e algum vizinho ruim – que sentido fazia a vida dele longe da sua família? O que o fazia andar perdido por estas serras, as costas curvas e as mãos calejadas? A maior parte do tempo sózinho, a falar com as pedras? Porque fazer casas para os outros e não ter uma casa própria, condigna e espaçosa? A casa onde viviam, quer dizer, onde vivia a mulher e os filhos era pequena e sombria, cozinha e uma divisão para duas camas, tinha sido dos pais da esposa. E lá se criaram todos desde o tempo dos bisavós. Porque não fazia um intervalo nos seus trabalhos e ia para junto da família e melhorava a sua própria casa?  O que tinha amealhado garantia-lhe uns anos de descanso.
Porque tinha saído de Riba de Mouro? Porque viera assentar casa e pé posto em Soajo?
É verdade que a mulher era linda e tinha um peito farto, umas ancas largas e uns olhos como a lua cheia em noite de S. João. Aquilo foi um fogo que os ateou e teima em arder, ainda hoje. 
A minha Teresa...
Os soajeiros tinham-no acolhido bem. Segundo diziam, parece que acolhiam melhor os forasteiros que os da terra. Mas isso eram coisas lá deles. Havia quem explicasse que era um costume que vinha dos antigos e se enraizara nos hábitos de todos. 
Já tinha passado pela Chã da Porca, Châ dos Pinheiros, Portela do Galo para os da Várzea e Poulo para os de Paradela.  Caso curioso, como o mesmo local pode ter dois nomes diferentes, mas  prestar-se a confusões. 
Diz um, Vou à Portela do Galo. 
Diz outro, Não vou contigo, que tenho de ir ao Poulo. 
Quando lá se encontrarem ainda podia haver barulho e chamarem-se nomes de zangados, porque um acusava o outro de mentiroso. 
Mas eu disse a verdade, disse que vinha ao Poulo. 
Mas não disseste que vinhas à Portela do Galo? 
E não vim, eu vim ao Poulo. 
Estão a ver a confusão? - pensava ele, a pedir ajuda a um sorriso irónico. A vida tem tantas destas confusões...
Olhou em redor e a vista já cansada de ver tanto verde, em Portugal e na Espanha, foi desviada pela sua preocupação profissional, pedras. Um monte de pedras grandes e pequenas e de bom corte – pensou para si a sorrir. Aqui é que se podia fazer um castelo. 

Antes de começar a descer para os Garfos sentiu um ruído e de imediato um leve eriçar na espinha. Ainda lhe faltava  um bom bocado até à Mina Nova.
 Não havia notícia de algum lobo ter atacado um homem. Mas esse receio tinha-se alojado no mais fundo da alma serrana e havia sempre um estremecimento quando a hipótese surgia com alguma probabilidade de acontecer. Não que fosse fraco de braços. Rijos eram eles e com eles tinha partido tanta pedra que se sobrepusessem, poderia ombrear com as escadas da senhora da Peneda ou fazer sombra ao Outeiro Maior. Mas um lobo não é apenas um lobo. Um lobo é também aquilo que eu penso dele. E ouvi tantas histórias de lobos... e nenhum era bom. Eles atacavam, eles comiam, eles vinham de noite, eles eram os lobisomens. Sorriu. Bem isso eram histórias antigas que a modernidade não confirmava.
Mas um lobo ou vive sózinho ou traz outros atrás. Traz fome e quem sabe, lobetes na toca, para alimentar. 
Tal como ele.

Chegado à vista da Mina Nova, já mais tranquilo, deixou cair os pertences, soprou uma pedra centeia a meia altura e sentou-se,  desapertou a bota do vinho, bebeu um golo longo, para sossegar o que durante o caminho tanto o tinha desassossegado. 
Voltou a suspender os pertences ao ombro, levantou-se e passados poucos minutos  nem teve tempo de suspirar, quando a vista se alegrou,  surpreendendo-o,


Tinha chegado a Paradela.


quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O moinho de vento I



Eleutério

Se havia um homem capaz de construir uma casa toda em pedra, em granito, de baixo até cima, esse homem era Eleutério, Lautério como lhe chamava o povo.
Desde as fundações, até ao telhado, parede por parede e divisão por divisão formava-se-lhe uma imagem na cabeça, só constituída por linhas e retas e depois era só segui-la. 
Claro que era preciso escolher a pedra, escolher o corte, e como caixas de fósforos montá-las umas sobre as outras, compondo num lado, rematando no outro e ajustando com a régua de madeira e o fio do prumo.
Mas não estava sozinho nessa tarefa. 
Os serviços florestais tinham contratado uma série de pedreiros e carpinteiros, ferreiros e duas cozinheiras, para construírem a casa de Adrão. Os primos Caturros tinham vindo com ele e dedicaram-se a fazer o carvão na serra. Subiam à floresta e desciam aos infernos a carbonizar os troncos de urze e giesta, soterrados por terra e pedras.
Já se tinha decidido o local onde iria ficar a casa, acima da aldeia, o distante necessário para que não existisse familiaridade com o povo e perto da serra para controlar a floresta e seus inimigos, os gados e os fogos e pior ainda, as pessoas. Para o engenheiro dos serviços florestais, todo o mal estava nas pessoas que não respeitavam, cortavam e abusavam da floresta.
O engenheiro mostrava os planos a Eleutério. Aqui a entrada, a cozinha, à esquerda as arrecadações e à direita um quarto. Em frente a casa de banho e outro quarto à direita e mais duas divisões à esquerda, um escritório e outro quarto de visitas. Portas e janelas e uma chaminé. O telhado viria mais tarde.
A partir daquele momento, o pedreiro gravava essa imagem da casa na sua mente, inventava uma história, imaginava a mulher do guarda na cozinha, o guarda no escritório e os filhos, uns a dormir nos quartos, alguém na casa de banho. Nas arrecadações guardavam alfaias e outros trastes necessários. Em volta da casa via as crianças a correrem e a brincarem.
Ele ainda não conhecia o guarda, mas imaginava-o. Também ele gostaria de ser guarda-florestal, se fosse mais novo, mas a vida não calhou. Por este meio, dando significado aqueles espaços desabitados, o desenho ganhava vida e dali até à casa erguida em pedra, era um salto na cabeça e muito trabalho nas mãos e braços e esforço no corpo todo.
Sim, fazer uma casa de raiz até ao teto, com tantas divisões, tudo a poder de braços não é obra para qualquer um. É preciso muito querer, muita vontade e fé.
Desde cedo começou a trabalhar com o pai e o avô nas pedras, na reconstrução duma igreja em Riba de Mouro, onde nascera, casas nas aldeias vizinhas e foi o guarda de Monção que o indicou ao engenheiro. E ele ali veio parar. A serra era a mesma, a serra de Soajo, apenas no lado oposto onde tinha nascido.
Os outros traziam as pedras ainda em bruto e ele com o martelo e ferro acabava-lhe os contornos, definia-lhe as feições e determinava o local onde iriam repousar. Na periferia da porta, nas agruras do vento norte, nos contrafortes do lado sul ou nos contornos da janela.


Era domingo e festa no Senhor da Paz, o padroeiro daquelas redondezas. 
Eleutério tinha desafiado a mulher e dois filhos a virem à festa. Já tinha sido a missa, procissão e rematação. Este ano o arraial estava abonado e os lances renderam bom dinheiro para o padroeiro. Tudo desapareceu, até uns tamancos e uma albarda dum burro que uma mulher ofereceu em paga duma promessa.
Algumas vacas já tinham sido transacionadas mas ainda faltavam umas três ou quatro que resistiam aos ânimos dos regatões e à desilusão dos donos. E duas éguas a quem o comprador tanto desejava, mas o dinheiro não crescia.

 Os habitantes levavam os convidados para almoçarem em suas casas; os outros romeiros estendiam as mantas à sombra dos carvalhos e depois de abrirem seus açafates, disfrutavam o que tinham trazido, ovos de cor castanha cozidos, com cebola, chouriço, presunto e galinha estufada. Tudo acompanhado com boa broa de milho e centeio e vinho da bota. 
Mais logo será o baile e os ajustes de contas, para quem tem contas atrasadas; o Senhor da Paz a todos ouvirá e neste terreiro se fará o que tiver de acontecer, gritos de mulheres, escaramuças e algumas cabeças rachadas, tudo fruto de amores contrariados e malquerenças de vizinhança por resolver.
José da Eira aproxima-se do grupo onde estava Eleutério e depois das apresentações iniciais e cordiais de quem está interessado numa aquisição, fica a saber que a Casa da Coroa, da Guarda Florestal está prestes a acabar. As suas artes de pedreiro afamado serão requisitadas para outras bandas, quem sabe pra Vila de Soajo ou arredores.
De pé, cabelo penteado ao lado esquerdo e cara lisa, brilhante do sabão da barba, encostado à sua vara de marmeleiro, conta José da Eira o seu projeto, um moinho de vento, redondo do cimo ao fundo, como naquelas redondezas nunca se vira antes. Dum lado estende-se a vista da Várzea à Peneda e ao Olelas. Do outro, Paradela e as serranias desde Espanha, Lindoso e Amarela até Viana. 
Será Eleutério homem para uma coisa igual?
De pé, com a mão esquerda caída e a direita a afagar as curvas dos queixos, o cabelo revolto, franze o sobrolho e vai dizendo para si próprio, 
é uma casa em redondo… espeto oito estacas no chão e faço um circulo. Se todas as pedras tiverem a mesma altura e largura só lhes acrescento a redondeza… e depois é subir por ali arriba, deixando espaço para uma porta e duas janelas.
Adivinhando-lhe os pensamentos acrescenta o outro,
 E escadas no interior para subir ao primeiro andar 
Claro, claro, diz Eleutério. Bem nunca fiz uma coisa assim, mas não sou homem para recuar. Sou de Riba de Mouro e não volto a cara a um desafio. Eu e os meus dois ajudantes faremos esse palácio.
Palácio? Bem, não é um palácio, é antes um mirante do palácio. O palácio é esta serra toda, cheia de verde, é este azul que nos protege, estes barrancos que nos escondem e revelam. A serra é o palácio onde sou mais livre e donde grito aos outros a alegria que tenho de estar vivo.
E o telhado?

O telhado fica por minha conta. Virá da Póvoa de Varzim, dizia o contratante, enquanto muda a vara de marmeleiro da mão esquerda para a mão direita e olha a serra, desde Outeiro Maior até à Cascalheira. Ainda não sabe, ou finge que não sabe, porque os mistérios da mente são difíceis de adivinhar, mas é na memória dos moinhos da Ajuda, em Lisboa que vai buscar todo esse encanto, essa fantasia prestes a tornar-se realidade. Um olhar que do alto da Ajuda sobrevoe Belém e atravesse o rio para a outra margem.

MRodas

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Fomos às Marchas de Lisboa

ONTEM FUI A ÀVENIDA DA LIBERDADE

Fui ver as marchas.
Há 36 anos que estou em Lisboa e só fui ver as marchas nos dois primeiros anos que vim para Lisboa, 1980 e 1981. Depois – pergunto-me o que aconteceu – nunca mais lá fui. Mas este ano voltei. E porquê?
Porque eu tenho uma amiga belga, a Jacqueline. Ela admira Portugal. Admira é pouco: ela ama Portugal. A Jaqueline, numa conversa demorada, como costumamos ter, contou-me que desde há 10 anos que aluga um hotel perto da Avenida, em Lisboa e há 10 anos consecutivos que vai ver as marchas, à noite. No final volta para o hotel e dorme abraçada às marchas, à cultura e ao povo de Lisboa.
Tive um rebate de alma. O coração inquietou meio cérebro com perguntas sem resposta. Porque não gostas de ir às marchas?
O cérebro acendeu luzes em compartimentos fechados, procurou respostas em todas as circunvalações e sinuosidades e ... ao fim de algum tempo surgiu um titubeante, Vamos lá!

A lente da máquina fotográfica estava avariada, pelo que tive de levar uma máquina pequena, com pouca resolução. Ainda arranjamos lugar sentados e por fim, começou o desfile para o povo. Para a Televisão era mais abaixo. Na nossa bancada havia um televisor e deste modo, podiamos voltar a ver na tv as marchas que minutos antes tinham desfilado à nossa frente.

Depois de duas horas de espera, começaram a desfilar as marchas convidadas.
A Marcha infantil da Voz do Operário veio a seguir. Reconheci o Vitor Agostinho, o Diretor Geral da Voz do Operário. Mais gordo, mais branco, mas os mesmos gestos decididos e eesclarecidos a orientar as crianças.
Fiquei a recordar o tempo em que pertenci à sua Direção. Foi nesse ano que se inicou a colaboração das crianças das escolas da Voz do Operário. A princípio hesitei, era adverso à utilização das crianças em espetáculos de adultos, mas não me opus. Hoje vejo que me enganei. Todos estes anos eles abrem o desfile. Todos reconhecem a sua importância e deste modo, as crianças podem integrar a cultura da sua cidade e transformá-la em energia criadora.

O desfile continuou.

A ponte sobre o Tejo e o aniversário de Rafael Bordalo Pinheiro são os dois motes para a festa deste ano.  
Pelos vistos quase todas as marchas tinham um patrono, figura ligada à TV. Vi o Baião, a Teresa Guilherme e uns outros que não reconheci, mas uma velhota encostada ao gradeamento ia gritando os seus nomes e estes vinham e abraçavam-na. Ela papou-os a todos! Depois virava-se para a bancada e exibia um sorriso triunfante, a dizer-nos que por instantes tinha estado no paraíso a abraçar os anjos!

Achei piada aos noivos de Stº António, a exibirem a felicidade e a consternação do seu espetáculo, dentro do espetáculo. Porque se meteram nisto?
Como se pode ver nas fotos, ( muito más) foi uma festa do povo do bairros para o povo de Lisboa e arredores.


































































A minha amiga Jacqueline estava encantada. Este ano foi muito bonito! Também achei. Como terá sido o ano passado?
Olha o que tenho andado a perder! Para o ano vou voltar e aconselho-vos a fazerem o mesmo.

Soube agora, que Alfama ganhou. Não era a minha preferida. Eu achei muita graça ao Bairro Alto, mas pelos vistos só eu achei graça pois não ganhou nenhum dos prémios em disputa.
Devo ser eu que percebo pouco de marchas. Mas para o ano…vou estar mais atento.

Conclusão e evidências para o próximo ano

1-   Não esperar que sejam os estrangeiros a dizer-me o que é bonito. Ser eu a valorizar mais o que é nosso.
2-   Preparar o material fotográfico com mais antecedência e não deixar para a última da hora, à portuguesa.
3-   Ir um pouco mais cedo e levar farnel
4-   Levar uma camisola mais aconchega. À noite faz frio!
5-   Quando estiver a ver diretos na tv recordar que esta manipula a realidade, desfigurando-a e colorindo a seu gosto, condicionando os figurantes e atores.
6-   Ver mais telenovelas para não fazer fraca figura! ( Não consigo!)

Até pró ano!

Manuel Rodas

13 junho, 2016